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Reportagem
Destaque e discriminação marcam cem anos das mulheres na química
Por Isabela Palhares
10/07/2011

Assim como nas demais ciências exatas, a química até há pouco tempo era praticada quase que exclusivamente por homens, apesar de já no início do século 20, Marie Curie ter dado início ao processo que deveria ter mudado há mais tempo essa situação. Ela teve que enfrentar muitos obstáculos, não apenas para realizar seus estudos, mas também para divulgá-los. Cem anos depois, Vanderlan Bolzani, hoje uma das mais proeminentes pesquisadoras da área da química, continua lutando para ter seu lugar reconhecido. Bolzani já não sofreu preconceitos para estudar, mas enfrenta a dificuldade de alcançar os postos de chefia num universo predominantemente masculino. As áreas da ciência estão cada vez mais ocupadas pelas mulheres, mas ainda há um longo caminho para alcançar a igualdade com os homens.

Os feitos científicos transformaram Marie Curie num ícone, não apenas da química, mas da ciência mundial. No entanto, sua trajetória foi marcada por discriminação e muitos preconceitos. Ainda no início de sua carreira, Curie teve de sair da Polônia para estudar na França – na Sorbonne – porque as universidades polonesas não aceitavam mulheres. Mesmo na França, as mulheres eram discriminadas. Ela não conseguia apresentar comunicações sobre seus trabalhos na Academia de Ciências, porque também nessa entidade as mulheres não eram aceitas. Apesar das dificuldades enfrentadas, a cientista recebeu dois prêmios Nobel, o primeiro em 1903, de física, junto com seu marido, Pierre Curie e Henri Becquerel, tendo sido indicada meramente como uma ajudante da pesquisa. Em 1911, ela novamente ganhou o Nobel, desta vez sozinha e na área da química. Mas como explica o antropólogo Gabriel Pugliese, doutorando em antropologia na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, “os prêmios não apagam uma trajetória cheia de dificuldades”, diz ele lembrando que, no mesmo ano que recebeu o Nobel de química, lhe foi negada uma cadeira na Academia de Ciências da França, além disso, suas pesquisas eram duramente criticadas por membros da academia, “cientistas famosos da época afirmavam que a radioatividade era coisa de mulher, porque ela não existia, então deveria ser estudada por mulheres”, diz ele.

Assim como Marie Curie, muitas mulheres que desejam trabalhar nas áreas dominadas por homens enfrentam algum tipo de discriminação, embora hoje as condições sejam bem melhores. Elas estão cada vez mais inseridas nos programas educacionais e no mercado de trabalho. Nas universidades, o número de mulheres na graduação ultrapassa o dos homens; até mesmo nas áreas consideradas “masculinas” elas já são maioria, principalmente na química, como mostra a pesquisa feita pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (ver tabela 1). Além disso, elas ultrapassam o número de homens nos programas de doutorado (ver gráfico 1). Como analisa Bolzani, “a mulher pesquisadora nas chamadas ‘ciências duras’, nas últimas três décadas, registra um aumento crescente na produção científica, bem como maior inserção em cargos e postos tradicionalmente ocupados por homens”. Ela mesma é um exemplo disso, pois em 2009 foi eleita a primeira presidente mulher da Sociedade Brasileira de Química.

Tabela1. Número de doutores titulados no Brasil por grande área e área do conhecimento, distribuição percentual por sexo, 1996-2008


Fonte: Coleta Capes (MEC). Viotti,  E.B.(coord). Doutores 2010: estudos da demografia da base técnico-científica brasileira. Brasília: CGEE, 2010.
Nota dos autores: Quando a soma de homens e mulheres é menor do que 100%, a diferença refere-se à percentagem de doutores sobre os quais não se dispunha de informação sobre o sexo.


Gráfico 1. Distribuição dos doutores titulados no Brasil, por sexo, 1996-2008


Fonte: Coleta Capes (MEC). Viotti,  E.B.(coord). Doutores 2010: estudos da demografia da base técnico-científica brasileira. Brasília: CGEE, 2010.

No entanto, se existem mais doutoras no Brasil, isso ainda não significa igualdade, uma vez que a maioria delas ainda realiza pesquisa nas áreas do conhecimento voltadas às ciências humanas ou ciências biológicas, (ver gráfico 2). As estatísticas sobre educação superior indicam as áreas científicas e tecnológicas como “núcleos duros” ou áreas de maior resistência à assimilação das mulheres. Como comenta Dorila Veloso, professora do Departamento de Química da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), “há mais mulheres na área de humanas do que nas outras e, como consequência, verifica-se maior repercussão do trabalho feminino na primeira área. Além disso, o fato de a sociedade tradicionalmente atribuir uma aptidão maior da mulher para a carreira das ciências humanas contribuiu para uma natural ascendência e prestígio feminino com cargos de destaque nessa área”.

Gráfico 2. Participação percentual das mulheres no número de doutores titulados no Brasil no período 1996-2006, que estavam empregados em 2008, por grandes áreas do conhecimento


Fontes: Coleta Capes (MEC) e RAIS 2008 (MTE). Viotti, E.B.(coord). Doutores 2010: estudos da demografia da base técnico-científica brasileira. Brasília: CGEE, 2010.

Em nossa sociedade estão arraigadas atitudes que há muito tempo foram incorporadas à nossa cultura, que não percebemos e, por isso, não as questionamos. Como explica a professora Bolzani, “o preconceito que eu sofria não ocorria de forma aberta, mas eram atitudes tão incorporadas à nossa cultura, que muitas vezes passavam despercebidas”. Existe uma visão de que a mulher deve estudar nas áreas de humanas e os homens nas de exatas. Mesmo dentro das exatas existe uma subdivisão, como Pugliese aponta em seu artigo sobre Marie Curie: “Segundo Stengers e Bensaude-Vincent a física é um trabalho concebido como mais reflexivo e de compreensão e por isso mais ligado ao masculino. A química é um trabalho concebido como mais motorizado, dependente dos trabalhos experimentais, e por isso mais ligado ao feminino”. O problema, ainda segundo o autor do artigo, é que essa divisão corrobora uma imagem de inaptidão das mulheres para o trabalho reflexivo, ou racional, parte do exercício do poder masculino.

Pugliese diagnostica que em nossa cultura os atributos mentais, como razão e objetividade, estão ligados ao homem o que o aproxima das ciências exatas e tecnológicas, enquanto que às mulheres são atribuídos os sentimentos e a subjetividade o que as torna antônimos dessas áreas científicas. Ele defende que “não existe nenhum determinante biológico para as mulheres gostarem mais das humanas e os homens das exatas, isso é uma construção cultural. À medida que isso for desfeito, haverá uma mudança nesse padrão de distribuição”. Para a professora Bolzani “essa cultura está sendo dissolvida, na iniciação científica. Até mesmo nas áreas de ciências exatas, existem muito mais mulheres do que homens. Na SBQ, também, o número de sócias é superior ao de sócios, mas se olharmos o número de professoras titulares, o número de mulheres ainda é muito menor do que o de homens”.

Pugliese confirma o que diz Bolzani, lembrando que hoje o preconceito é mais evidenciado na forma da distribuição dos cargos de chefia, pois as mulheres ainda têm dificuldades para alcançar postos mais altos. Elas são aceitas nas ciências, desde que não concorram aos cargos de destaque. Como é o caso da SBQ que pela primeira vez em 34 anos tem uma mulher ocupando o cargo da presidência. Bolzani conta que, no início da carreira, não sentiu qualquer preconceito, no entanto, ao galgar as posições acadêmicas mais altas, tradicionalmente ocupadas por homens, as dificuldades ficaram evidentes, como acontece de forma geral em um ambiente altamente competitivo e marcado pelo traço cultural de que as mulheres teriam menos agressividade competitiva.

Em outros lugares a presença feminina também é bastante reduzida, como na Academia Brasileira de Ciências, que tem inúmeras acadêmicas, cientistas excelentes com alto impacto no campo em que trabalham, no entanto menos de 10% dos membros da diretoria e dos conselhos são mulheres. Para Bolzani essa situação ocorre porque “alguns colegas, apesar de respeitarem, de considerarem o papel da mulher importante nas ciências, na hora da decisão ainda preferem votar nos homens”. Marília Goulart, professora do Instituto de Química e Biotecnologia da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), exemplifica que no caso da química “o número de mulheres cientistas é maior, mas sua visibilidade científica ainda é minoritária, talvez por escolha própria ou por outras questões mais complexas. Entre os membros da Academia Brasileira de Ciência, em Química, encontramos 16 mulheres para 77 homens. Ao todo, em 2011, são 106 mulheres. Eram 21 no ano de 1989. Dos 160 Prêmios Nobel em Química (159 ganhadores) apenas 4 são mulheres”.

E é esse sexismo automático que ocorre atualmente, preconceito camuflado. Como explica Gabriel Pugliese “na nossa sociedade ainda predomina aquele pensamento de que quando uma mulher faz algo bem-feito, se é destacado, ela se torna uma exceção” e muitas vezes as mulheres bem sucedidas acabam sendo masculinizadas por isso. A professora Dorila Veloso conta que “um professor muito conceituado, e que me tinha em alta conta, comentava que eu era ‘como um homem’ na minha atuação acadêmica, considerando isto um elogio”.

Esse tipo de comparação evidencia o preconceito, como se somente os homens fossem capazes de pensar, e ter sucesso na carreira científica, em especial na área de exatas. O mesmo ocorria com Madame Curie como conta Gabriel “ela era tratada como uma exceção, chegaram até mesmo a dizer que ela era uma aberração, uma mulher com cérebro de homem. Porque ela, tal como mulher, não poderia fazer as coisas que fazia”.

Além da menor agressividade da mulher no ambiente de trabalho, outro fator que prejudica a ascensão feminina é a maternidade que, muitas vezes, interfere no desenvolvimento de sua carreira. Como explica Marília Goulart “as tarefas familiares são motivo de preocupação e ansiedade por parte da mulher o que as impede de atingir o grau de disponibilidade necessário para realizar uma tarefa criativa plena, como na área científica. Há falta de infraestrutura de apoio à mulher fora do lar, como creches, desigualdade na divisão dos serviços domésticos e na formação dos filhos. Devido à gravidez, há interrupções na carreira, com isolamento científico temporário e isto pode, às vezes, tornar o processo de destaque na carreira, irreversível”. Curie não permitiu que a vida pessoal a afastasse das pesquisas e mesmo problemas familiares, como a morte precoce de seu marido Pierre, não a fizeram desistir de provar os avanços que estava conseguindo na área da radioatividade.

Novamente, as vivências de Marie Curie e de Bolzani, cem anos depois, mostram alguma semelhança. Bolzani, mãe de dois filhos e tendo passado por problemas familiares, nunca abandonou seus ideais e seu trabalho na pesquisa de produtos naturais. Essa obstinação tem garantido a ela uma posição de destaque na área de química. Bolzani recebeu recentemente o prêmio “Distinguished Women of Chemistry or Engineering Chemical”, concedido pela Sociedade Química Norte-americana (ACS), sendo a única brasileira entre as 24 mulheres homenageadas. Ela conta sobre as dificuldades pelas quais passou: “pelos filhos que tenho, acredito que o ambiente de estudos, discussões e correrias intrínsecas de um curso de pós-graduação não foram encarados como ruins para eles. Mas muitas vezes me questionei sobre a divisão do trabalho feminino: fazer pesquisa, lecionar, cuidar dos filhos. Com certeza os meus filhos entenderam o quanto era importante para mim o trabalho”. Além desse prêmio recente, ela já havia sido outorgada membro honorário da instituição The Royal Society of Chemistry, uma das mais antigas e prestigiadas sociedades científicas do planeta. Goulart defende que “seriam necessários mais exemplos de mulheres de sucesso, o aprendizado em liderança e a participação em processos decisórios em instâncias superiores. Tornar-se um verdadeiro líder científico exige preparo”.

O reconhecimento do trabalho de Bolzani e de outras químicas em todo o mundo demonstra que as perspectivas de participação feminina nessa área são muito promissoras. Bolzani destaca que, em 2009, o prêmio Nobel de Química foi dividido entre pesquisadores norte-americanos e a israelense Ada Yonath, do Instituto Weizmann, (leia entrevista com a pesquisadora) demonstrando a marca da mulher, depois de décadas, na maior premiação que um cientista pode almejar”. Ela ainda afirma que “as conquistas femininas são evidentes hoje. As mulheres vão galgando espaços cada vez mais competitivos em todas as atividades, liderando com menos vaidade e mais sensibilidade, elas se ressentem menos das barreiras impostas pelo modelo masculino”. Anita Marsaioli, professora do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também diagnostica que a situação brasileira é bastante positiva. “Na química brasileira as mulheres estiveram mais presentes, comparativamente, do que em países como a Alemanha, Japão e Estados Unidos e essa presença continua aumentando. No setor produtivo a participação das mulheres como pesquisadoras nas indústrias e em cargos de chefia sempre foi menor que na academia, porém esse panorama também vem se modificando”, diz ela.