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Reportagem
Os conflitos pela terra no Brasil
Por Maria Teresa Manfredo
10/11/2011

O tema da divisão da terra evoca uma questão recorrente no Brasil: os conflitos fundiários que, no decorrer da história do país, adquiriram diferentes contornos. De acordo com a doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Marina Machado, muitas vezes esses conflitos aconteceram por envolverem divisões territoriais administrativas, construção de limites e de fronteiras. Para ela, é fundamental, também, considerar que tal discussão é atravessada pela questão das disputas entre terras latifundiárias. A expansão - ou não – de uma fronteira explora diferentes aspectos e interesses, de diferentes grupos envolvidos em um mesmo processo (fazendeiros, moradores, grupos indígenas, agentes do governo, representantes da igreja etc.), lembra a historiadora.  

Num período mais recente, a partir da segunda metade da década de 1990, após a fase de reestruturação e modernização da produção agrícola, as questões econômicas relacionadas a esses conflitos ganharam maior grau de complexidade. De acordo com a economista Viviam Souza Nascimento, que desenvolveu pesquisa sobre o tema junto à Universidade de São Paulo (USP), nos últimos anos a complexificação dessas disputas se deu em função “do aumento das demandas sociais criadas com a crise econômica da década de 1980, da modernização do setor agrícola e das significativas mudanças institucionais que alteraram o ambiente de negócios brasileiro”.

Por outro lado, Nascimento relembra o percurso histórico dessa questão, sinalizando que convencionalmente atribui-se a raiz desses conflitos no Brasil ao problema da concentração de terras, que teria suas origens no modelo de ocupação territorial adotado no século XVI pela Coroa Portuguesa, durante o período da colonização. Contudo, para ela é “a falta de regulamentação e fiscalização na distribuição de terras no país que efetivamente contribuiu para a concentração fundiária”.

Carlos Alberto Feliciano, geógrafo da Universidade Estadual Paulista (Unesp, campus de Presidente Prudente), reforça que entre as principais causas dos conflitos fundiários no Brasil está a concentração de terras. Esses conflitos são bastante antigos no Brasil, com maior evidência a partir do século XIX, tendo se agravado ainda mais no século XX.

Entre os principais conflitos no início do século XX estão Canudos e Contestado, que “embora muitas vezes sejam lembrados como episódios que envolveram questões religiosas, estão diretamente voltados para uma questão de luta pela terra”, afirma a historiadora Marina Machado. Nesse sentido, Feliciano ressalta que o assunto em nosso país ultrapassa a questão das fronteiras legais das unidades federativas, mas ao mesmo tempo é movido pelas relações sociais de poder e disputa que nelas são materializadas.

Em comparação aos séculos anteriores, é possível afirmar que no século XX houve, ao mesmo tempo, uma redução na concentração fundiária e uma valorização da terra no país. Isso se deu, por um lado, devido ao fato de os agricultores brasileiros passarem a investir em atividades urbano-industriais – em decorrência, sobretudo, da desvalorização mundial do café durante a Primeira Guerra Mundial e a crise econômica de 1929. Por outro lado, houve um aumento do valor de uso da terra, gerando maior produtividade em propriedades de pequeno e médio porte em algumas regiões do país – como é o caso da região Sul.

Para o geógrafo da Unesp, além da concentração de terra, a construção da propriedade privada no Brasil trouxe consigo o significado de terra como reserva de valor, “onde boa parte dos ditos ‘proprietários’ vivem da renda que ela pode lhes auferir, mesmo sendo improdutiva.”

Foi na década de 1960, que surgiu com maior intensidade a discussão sobre a necessidade de reforma agrária no Brasil, principalmente nas regiões Norte e Nordeste que sofriam mais com a concentração fundiária. No mesmo período, seguiu-se a criação da organização das Ligas Camponesas e muitos outros conflitos, como o episódio de Trombas e Formoso, em Goiás (das décadas de 1950 e 1960). Ocorreu também nessa época a discussão sobre terras devolutas – “um tipo de terra pública que deveria estar sob o domínio do Estado, mas que está na esfera privada, seja ligada a proprietários, ou então, a grandes empreendimentos, como bancos ou indústrias”, explica Feliciano.  

Em meio a esse contexto, em março de 1963, foi aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural, regulando as relações de trabalho no campo, que até então estavam à margem da legislação trabalhista. Contudo, com o golpe militar de 1964, as ideias foram revistas e a reforma agrária realizada nesse período foi concentrada na fronteira agrícola do Centro-Oeste, visando sobretudo a ocupação do território.

Entre 1980 e 1990, surgiram várias organizações em defesa da reforma agrária como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, Ligas Camponesas e a Pastoral da Terra.

Em 1993, o Congresso Nacional estabeleceu que a improdutividade das terras caracterizava o não cumprimento do caso previsto pela Constituição de 1988 de função social da propriedade; ficou estabelecido por Lei que a improdutividade procederia à desapropriação. Atualmente, por parte dos movimentos, as ocupações de terra tornaram-se o principal mecanismo de pressão sobre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para a execução dos processos de desapropriação e assentamentos.

Para Viviam Nascimento, um caminho para minimizar o conflito neste sentido é fortalecer as políticas de controle e fiscalização da propriedade agrícola, “organizando a titulação, acompanhando o mercado de terras (incluindo a compra por parte dos estrangeiros), além de fiscalizar e agir com rapidez nas resoluções de conflitos”.  

Segundo Carlos Feliciano, “a solução para esse impasse é a realização de uma reforma agrária ampla, baseada em critérios legais melhor definidos”, de acordo com o pesquisador, só assim o Estado cumpriria o que a Constituição Federal estabelece como função social da propriedade: ser produtiva, respeitar as leis trabalhistas, ambientais, gerando desenvolvimento para a região a que pertence. 

Mapeamento dos conflitos

Em abril deste ano, a Comissão Pastoral da Terra lançou um relatório sobre conflitos no campo a partir de dados coletados em 2010. Dos 638 conflitos neste último ano, mais da metade refere-se a posseiros (antigos donos de pequenas áreas sem títulos da propriedade) e a povos e comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, extrativistas etc.) - totalizando 57% das violências ligadas à terra, no ano. A maioria tem sua causa ligada a grandes projetos, como barragens, ferrovias, rodovias, parques eólicos, e mineração.

Mas o que mais marca o ano de 2010 nesse quesito é o crescimento do número de assassinatos em conflitos no campo: 34 assassinatos, um número 30% maior que em 2009, quando foram registrados 26. O estado do Pará mantém a liderança quanto ao número dos assassinatos, 18, número 100% maior que em 2009, quando foram registrados 9 mortes. Além dos assassinatos, em 2010 foram registradas 55 tentativas de assassinato, 125 pessoas receberam ameaças de morte, 4 foram torturadas, 88 presas e 90 agredidas.

Com relação aos conflitos de terra propriamente ditos, o total permaneceu muito próximo ao de 2009, passando de 854 para 853, em 2010. Os embates protagonizados pelos movimentos sociais do campo caíram 38%; por outro lado, os conflitos gerados por expulsões, pistolagem, despejos e ameaças cresceram 21% - passando de 528, em 2009, para 638, em 2010. A região Nordeste teve o maior número de conflitos, com 43,7% (279), seguido da região Norte com 36,7% (234). As demais regiões concentraram 9,6% (61) no Sudeste, 5,8% (37) no Centro-Oeste e 4,2% (27) no Sul.

A chamada Amazônia Legal concentra 65% dos conflitos de terra, sendo que Maranhão, Pará e Tocantins concentram 46,2% desse total.

Ao analisar as categorias sociais que foram vítimas das 604 ocorrências de ações violentas em conflitos no campo, 57% envolveram populações tradicionais, como comunidades indígenas ou ribeirinhas. Outros 43% atingiram setores que eram considerados protagonistas da luta pela reforma agrária, como os sem-terra (182 conflitos), os assentados (61), pequenos proprietários (9) e outros.

Para a Pastoral da Terra, esses dados “deixam evidente que não é por causa da ação dos sem-terra que a violência no campo persiste, mas sim devido à violência sobre a qual se alicerçou todo o processo de ocupação territorial brasileiro desde o tempo da Colônia até os dias de hoje.”