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Artigo
Exercícios de zooliteratura
Por Maria Esther Maciel
10/12/2011

Nas últimas décadas, mais precisamente a partir dos anos 1970, o debate sobre a questão animal e as relações entre humanos e outros viventes tem mobilizado pensadores e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, em várias partes do mundo. Esse crescente interesse pelo tema possibilitou, inclusive, o surgimento de um novo campo de investigação que, sob a denominação de estudos animais, vem se afirmando como um espaço de entrecruzamento de várias disciplinas oriundas das ciências humanas e biológicas, em torno de dois grandes eixos de discussão: o que concerne ao animal propriamente dito e à chamada animalidade, e o que se volta para as complexas e controversas relações entre homens e animais não-humanos. O que evidencia a emergência do tema como um fenômeno transversal, que corta obliquamente diferentes campos de conhecimento e propicia novas maneiras de se reconfigurar, fora dos domínios do antropocentrismo e do especismo, o próprio conceito de humano. 

Nesse espaço híbrido têm sido referências teóricas importantes os escritos de Jacques Derrida sobre o animal, as análises de Michel Foucault sobre animalidade e loucura, o conceito de devir-animal de Gilles Deleuze & Félix Guattari, as reflexões de George Bataille sobre a animalidade, as abordagens bioéticas de Peter Singer, a noção de companion species de Donna Haraway, os estudos etnológicos de Eduardo Viveiros de Castro, além das instigantes contribuições de John Berger, Giorgi Agamben, Dominique Lestel e Cary Wolfe, entre outros. Mas foi Michel de Montaigne quem prefigurou esse pensamento, ainda no século XVI, através de seu ensaio “Apologia de Raymond Sebond”, no qual, com propósitos de desqualificar a presunção humana, empreende um longo elogio aos animais. Muitas das considerações apresentadas por ele se fazem presentes, hoje, nos estudos sobre as relações entre humanos e outros viventes. 

No que tange aos estudos literários, as discussões relativas ao problema dos animais começaram a se delinear mais efetivamente nos últimos anos. É notável o crescente interesse crítico-teórico pela temática, fora das circunscrições metafóricas que quase sempre marcaram os enfoques literários dos animais não-humanos. O que se justifica, não apenas pelas preocupações de ordem ecológica que têm movido a sociedade contemporânea, mas também por uma tomada mais efetiva de consciência, por parte dos escritores e artistas em geral, dos problemas ético-políticos que envolvem nossa relação com as demais espécies viventes. Não são poucos os escritores/artistas que hoje têm explorado, sob um enfoque liberto das amarras alegóricas, diferentes categorias do mundo zoo. Feras enjauladas nos zoológicos do mundo, animais domésticos e rurais, bichos de estimação, seres vivos classificados pela biologia, cobaias de laboratórios, animais confinados e abatidos em fazendas industriais e espécies em extinção têm ocupado, cada vez mais, um visível espaço em livros, telas de cinema, palcos e salas de exposição. Para não mencionar as imbricações entre humanidade e animalidade, natureza, cultura e técnica, presentes em diversas produções simbólicas contemporâneas. Muitos escritores e artistas buscam, dessa forma, investigar a complexidade que os animais representam para a razão humana, buscando deles extrair, inclusive, um saber alternativo sobre o mundo e a humanidade.  Autores como o sul-africano, ganhador do Nobel, John M. Coetzee, o inglês John Berger, a australiana Eva Hornung, o francês Jacques Roubaud, os mexicanos Juan José Arreola e José Emílio Pacheco, o italiano Alessandro Boffa, a americana Patricia Highsmith, entre vários outros, são alguns nomes exemplares. 

Pode-se afirmar que Franz Kafka foi um marco nesse processo, ao inserir em seus contos – no início do século XX – figuras animais fora da circunscrição antropocêntrica, inscrevendo na zooliteratura ocidental uma nova forma de compreender o animal e as manifestações da animalidade. Nesse sentido, a novela A metamorfose, de 1915, é um marco para o surgimento de uma linhagem literária voltada para os processos de identificação/entrecruzamento de humano e não humano, sob um viés crítico, capaz de desestabilizar as bases do humanismo antropocêntrico. Ela pode ser considerada, assim, uma obra precursora no horizonte da literatura moderna e contemporânea que problematiza as fronteiras entre humanidade e animalidade. Fronteiras essas que demandam, mais do que nunca, uma abordagem pautada no paradoxo: ao mesmo tempo em que são e devem ser mantidas – graças às inegáveis diferenças que distinguem os animais humanos dos não-humanos –, é impossível que sejam mantidas, visto que os humanos precisam se reconhecer animais para se tornar humanos. 

No Brasil, verifica-se que a miríade de escritores voltados para um enfoque mais matizado e consciencioso dos animais é expressiva, remontando à segunda metade do século XIX, com Machado de Assis, que dedicou memoráveis contos, crônicas e passagens de romances à situação dos animais no mundo dominado pela ciência e pelo triunfo do racionalismo moderno. Vale dizer que ele foi um dos primeiros escritores nacionais a fazer o elogio do vegetarianismo, numa crônica sobre a greve de açougueiros acontecida no Rio de Janeiro em 1893, além de ter se manifestado contra as touradas e abordado criticamente a crueldade das práticas de vivissecção, comuns nos laboratórios científicos do tempo. Para não mencionar o uso paródico que o escritor fez das fábulas, ao dar voz e palavras aos animais em alguns textos como o conto “Ideias de canário”, no qual ele mostra ser a ave bem mais sábia do que o ornitologista que a estuda, ou a crônica “Conversa de burros”, de 1892, em que relata uma interessante e filosófica conversa entre dois desses animais sobre a possibilidade de ficarem livres da exploração humana por causa da expansão do uso da tração elétrica nos bondes do Rio de Janeiro. A diferença com relação à fabula tradicional é que os animais, neste caso, não são antropomorfizados e nem estão a serviço da edificação humana, mas aparecem como animais-animais que expressam o que o autor imagina que eles falariam se pudessem fazer uso da linguagem verbal. 

Já no século XX, autores como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Clarice Lispector e João Alphonsus também se ocuparam do universo animal, sem se renderem ao mero fascínio da fábula e da alegoria. A esses se somam também alguns escritores atuais, como Wilson Bueno, Nuno Ramos, Regina Redha, Astrid Cabral, Rubens Figueiredo e Eucanaã Ferraz, que, atentos à situação do mundo neste início do século XXI, adotam uma postura mais incisiva e radical diante da questão, assumindo uma posição mais engajada em relação ao problema dos animais na sociedade contemporânea. Basta dizer que Regina Redha publicou o primeiro “romance vegano” brasileiro, em 2008. 

No caso específico de Guimarães Rosa, pode-se dizer que ele se destaca como o grande animalista das letras brasileiras. Desde seu primeiro livro de contos, Sagarana (1946), Rosa nunca deixou de conferir aos animais uma especial atenção, tomando-os quase sempre como sujeitos ativos, fora do amansamento antropomórfico e moralizador que constitui grande parte da zooliteratura ocidental. Nas páginas de quase todos os seus livros “fervilham bichos” de todas as espécies.  Além disso, os embates, as interações, o corpo-a-corpo dos homens com o mundo animal são bastante frequentes em suas narrativas, indiciando o vivo interesse do escritor em abordar as afinidades e os limites que há entre humanos e não humanos. Isso se dá a ver especialmente nos textos em que o autor enfoca a convivência diária entre vaqueiros e os animais do mundo rural do interior de Minas Gerais. Para não mencionar a exploração que o autor faz dos traços de animalidade do humano, como em “Meu tio o Iauaretê”, que trata da transformação de um onceiro em um homem-onça, por um processo de contágio.  

Percebe-se, assim, um visível interesse de Rosa pelas “comunidades híbridas”, nas quais predominam a riqueza e a diversidade das relações entre homem e animal não-humano, estas construídas a partir de compartilhamento de sentidos, experiências, afetos e necessidades. A isso se soma ainda o interesse do escritor em observar os aquários e os bichos enjaulados nos zoológicos do mundo, como atestam as instigantes séries “Aquário” e “Zoo”, do livro póstumo Ave palavra, as quais podem ser tomadas como uma espécie de bestiário poético-afetivo. Aliás, chama a atenção numa das seções desse livro, uma frase que parece justificar toda a série zoológica de Rosa: “Amar os animais é aprendizado de humanidade”.  

O animal como sujeito

Outra questão que se coloca é o esforço desses escritores em apreender, pela palavra articulada, o “eu” dos animais não-humanos, entrar na pele deles, imaginar o que eles diriam se tivessem o domínio da linguagem humana, encarnar uma subjetividade possível (ainda que inventada) desses outros, conjeturar sobre seus saberes acerca do mundo e da humanidade.  Guimarães Rosa explorou isso nos contos “O burrinho pedrês” e “Conversa de bois”. Outro exemplo é Carlos Drummond de Andrade que, no poema “Um boi vê os homens”, encenou a voz de um “eu-bovino” que rumina seu próprio conhecimento sobre a vida e a espécie humana, pondo em xeque a capacidade dos homens em entender outros mundos que não o amparado pela consciência.  Recurso este também adotado pelo poeta carioca Eucanaã Ferraz no poema “Fado do boi”, de 2008, espécie de recriação interrogativa do poema drummondiano. 

Tal esforço de encarnar a primeira pessoa de um animal na escrita não deixa também de ensejar algumas especulações. É possível configurar/encenar na linguagem dos homens uma subjetividade animal?  O que vem a ser subjetividade? É uma instância reservada apenas àqueles que se enquadram nas categorias de eu, razão, consciência, desejo, vontade e intencionalidade? 

Michel de Montaigne, na “Apologia de Raymond Sebond”, já defendia a ideia do animal como sujeito e chamava a atenção para a complexidade dos bichos, mostrando que eles, dotados de variadas faculdades, “fazem coisas que ultrapassam de muito aquilo de que somos capazes, coisas que não conseguimos imitar e que nossa imaginação não nos permite sequer conceber” (1). Interessante que tais considerações hoje vêm encontrarando amparo científico graças, sobretudo, às descobertas da etologia contemporânea. Dominique Lestel, em As origens animais da cultura, reafirma as conjeturas de Montaigne, ao mostrar – a partir de estudos recentes no campo do comportamento animal – a extraordinária diversidade de comportamentos e competências dos viventes não-humanos, que vão da habilidade estética até formas elaboradas de comunicação.  

Assim, diante dos estudos etológicos contemporâneos, quem garante que os animais estão impedidos de pensar, ainda que de uma forma muito diferente da nossa, e ter uma voz que se inscreve na linguagem? Estará, como indaga Lestel, a nossa racionalidade suficientemente desenvolvida para explicar uma “racionalidade” que lhe é estranha, caso esta realmente exista? (2). 

À literatura cabe sondar, através dos recursos da imaginação e da ficção, essas possibilidades. Cada escritor busca criar uma forma de encontro com a outridade animal, seja através do pacto, da aliança e da compaixão, seja pela entrada no espaço desses outros, seja pela tentativa ilusória de figuração ou de incorporação de uma subjetividade alheia, o registro ficcional sobre animais se faz sempre como um desafio à razão e à imaginação. São tentativas que indicam tanto a nossa necessidade de apreender algo deles, quanto um desejo de recuperar nossa própria animalidade perdida ou recalcada, contra a qual foi sendo construído, ao longo dos séculos, um conceito de humano e de humanidade. Afinal, foi precisamente através da negação da animalidade que se forjou uma definição de humano, não obstante a espécie humana seja fundamentalmente animal.

Maria Esther Maciel é professora associada de teoria da literatura e literatura comparada da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É autora, dentre algumas publicações, dos livros: A memória das coisas ensaios de literatura, cinema e artes plásticas (2004), O animal escrito (2008) e Escrever/Pensar o animal (Org., 2011). E é, atualmente, colunista semanal do caderno de cultura do jornal Estado de Minas.

 

Notas de rodapé

  1. Montaigne, Michel de. Apologia de Raymond Sebond. Ensaios II. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p.118.
  2. Montaigne admitia a existência de um processo de raciocínio nos animais. Ele chega a mencionar o conhecimento que os atuns teriam dos três ramos da matemática: a astronomia, a geometria e a aritmética. Nas palavras do filósofo, eles “revelam conhecer a geometria e a aritmética, porquanto se reúnem em cardumes da forma de um cubo quadrado por todos os lados, de sorte que formam um batalhão sólido de seis faces iguais; nadam nessa ordem de dimensões idênticas atrás e na frente, de modo que quem os encontra e conta uma fileira tem ideia precisa do todo, já que a largura do cardume é igual à profundidade e ao comprimento” (Montaigne. Apologia de Raymond Sebond.  p. 222).