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O gene, o destino e a ética
Por Carlos Vogt
10/02/2006

François Jacob, intelectual e biólogo destacado, no livro O rato, a mosca e o homem, publicado no Brasil em 1998, termina suas análises e reflexões com uma avaliação importante e uma inquieta profecia. A avaliação é sobre o século que terminou há menos de uma década; a inquietação, sobre este século que agora se desenrola. Diz ele:

“Somos uma temível mistura de ácidos nucléicos e lembranças, de desejos e de proteínas. O século que termina ocupou-se muito de ácidos nucléicos e de proteínas. O seguinte vai concentrar-se sobre as lembranças e os desejos. Saberá ele resolver essas questões?”

É cedo para responder, mas provavelmente não. O que não quer dizer que não se continuará a buscar respostas e que o conhecimento deixará de caminhar em sofisticação e entendimento do homem, do mundo e das intrincadas e complexas relações entre eles.

Muitos apontam, no século XX, três grandes marcos do avanço do conhecimento científico e tecnológico: o projeto Manhattan que produziu também a bomba atômica, o programa espacial que, em 1969, levou o homem à lua, embora parcela significativa da população do planeta continue a duvidar do feito e, mais recentemente, na última década do século, o projeto genoma humano, além dos que se seguiram sobre outros seres vivos, animais e vegetais, do genoma do câncer e de outras patologias que afligem a humanidade.

A tecnologia do seqüenciamento de genes foi aperfeiçoada e seus resultados acelerados graças a outra tecnologia contemporânea, a da informação, que permitiu, pela agregação de conhecimento de diferentes áreas, entre elas a da biologia molecular, o desenvolvimento da bioinformática.

Por outro lado, esse ponto de relevo dos estudos biológicos encontra respaldo numa história um pouco mais antiga que remonta, no século XVIII a Maupertuis e, mais especificamente, no século XIX, a Darwin, com a publicação em 1859 do livro A origem das espécies, e ao monge alemão Gregory Mendel, considerado o pai da genética e que, em 1866, publica seus estudos fundadores sobre a transmissão de características de ervilhas de uma geração para a outra, dando, assim, nascimento à formulação de leis gerais da hereditariedade.

Em 1953, só para citar uma outra data de referência importante para as pesquisas genéticas e para os futuros estudos da genômica, James Watson e Francis Crick realizam a descoberta do DNA e a dupla hélice da representação de sua estrutura passa a girar e a gerar a dinâmica dos estudos da vida, traçando para a biologia o caminho de seu ingresso no universo das chamadas ciências pesadas que lidam com a quantificação do conhecimento e, para tanto, necessitam da materialidade conceitual e metodológica de seu objeto.

A materialização dos genes, nesse sentido, é um passo fundamental não só para a multiplicidade de campos de atuação da genética, para as áreas de fronteira, abertas com o seu desenvolvimento, como também para a ambição de estabelecer leis gerais determinantes do comportamento animal e do comportamento humano assentadas sobre bases naturais mais do que culturais, tendendo, em alguns casos, a ver a própria cultura como determinação da natureza biológica do ser vivo.

É o que, de certo modo, caracteriza a sociobiologia nascida nos anos 1970 com os trabalhos do biólogo Edward O. Wilson e os estudos comparados do comportamento humano realizados por Konrad Lorenz, em etologia, que serviram de inspiração a Wilson e nos quais apresenta a evolução do homem em termos de tendências inatas submetidas à seleção por influência do meio ambiente.

Quando se fala em comportamento humano, no caso da sociobiologia, não se quer referir apenas aos que dizem respeito às funções vitais de reprodução, mas também àqueles que dizem respeito à política, à ética, à estética e assim por diante, abrangendo todos os domínios das relações e dos relacionamentos sociais do indivíduo.

A sociobiologia, com todos os problemas científicos com que se apresenta e as dificuldades daí decorrentes para seu reconhecimento no mundo da ciência, além das resistências culturais e ideológicas que provocou e que continua provocando, é a expressão concreta da tendência que, no conhecimento, busca, se assim se pode dizer, a naturalização da cultura ou do que, tradicionalmente, é visto como cultural.

Nas palavras de Edward O. Wilson:

“As principais teses da sociobiologia são fundadas no estudo de uma miríade de espécies animais e resultam de centenas de investigações em diversas disciplinas biológicas. Foi, assim, possível, pelos métodos tradicionais dos postulados e de dedução da ciência teórica, derivar proposições e tentar muitas delas por meio de estudos quantitativos.”

Contudo, como bem observa Jacques G. Ruelland no livro L’empire des genes – histoire de la sociobiologia (O Império dos genes – história da sociobiologia), publicado em 2004 pela École Normale Supérieure de Lyon, “os estudos quantitativos de que fala Wilson não provam a existência de genes. A sociobiologia passa arbitrariamente da ordem dos dados matemáticos para a da homologia entre as estruturas de organização social dos insetos e as dos humanos, supondo que efeitos similares têm necessariamente uma única e mesma causa: a presença de genes comuns aos animais e aos humanos. Os sociobiologistas buscaram esse procedimento nos etólogos.”

O fato é que o surgimento da genética, termo cunhado por William Bateson em 1905, consolida a tendência dominante no século XX da formação de novas áreas do conhecimento por agregação de áreas existentes e não pela particularização e fragmentação de antigos domínios teóricos da ciência tal como ocorreu de maneira significativa ao longo de todo o século XIX. E tal como ocorreu, epistemologicamente, para a constituição da genética, continuou a ocorrer com o seu desenvolvimento e com a formação subseqüente de vários novos domínios fronteiriços e multidisciplinares do conhecimento, entre eles aquele do campo complexo e fascinante das neurociências, ou o da própria sociobiologia, ainda, que com suas dificuldades teóricas e metodológicas que acabam de ser mencionadas.

Os genes estão por toda parte na ciência, na cultura, no imaginário, na arte, na ficção. Prometem e ameaçam: acenam com a cura, com a longevidade, com a perenidade do prazer da vida; brandem, ao mesmo tempo, a perfeição, como uma clava doce e terrível de mesmice e desprazer com a existência.

À fascinação, com a busca dos determinismos biológicos de nossos comportamentos sociais opõe-se o medo da manipulação genética do código da vida.

Entre as duas pontas a distância deve ser medida pelo alcance de nossa curiosidade e pelo limite de nosso alcance.

Ao sentido da vida, ao destino do homem, a poesia, a religião, a metafísica têm algo a dizer, mesmo que nisso que diga nada se encontre da materialidade com que é investido o gene no seu protagonismo científico contemporâneo. Como diz François Jacob no livro aqui citado, “nenhuma ciência pode trazer respostas a tais perguntas”. O que não quer dizer que a ciência não deva continuar perguntando, de forma sistemática, o que pode responder e que está ao alcance dos limites do conhecimento científico, que estão longe de serem atingidos, como prova a grande revolução causada pelos estudos genéticos de Mendel há quase um século e meio atrás e os cenários “ilimitados e periódicos”, como a biblioteca de Babel, de Borges, que continuam a se descortinar para o conhecimento científico da vida e seus semelhantes.