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Engenharia genética: significados ocultos
Por Alejandra Rotania
10/02/2006

Desde o século XVII que o conhecimento e a técnica vêm se desenvolvendo de um modo que, paulatinamente, vai quebrando paradigmas no campo do conhecimento e do agir humanos. A biologia, sobretudo a genética através da engenharia e da articulação com outros setores tecnocientíficos, trazem a partir dessas mudanças, questões inéditas para a humanidade. Os filósofos da biologia de 30 anos atrás, para não ir muito longe, foram visionários e recortaram um grave território de preocupações no campo da moral e da ética científica. Algumas delas foram concretizadas na Segunda Guerra Mundial a partir das experiências médicas genéticas dos nazistas.

O primeiro trabalho sobre a estrutura da molécula DNA, “uma hélice dupla” (sigla em inglês do ácido dessoxirribonucleico) foi publicado na revista Nature em 1953. Os pioneiros da biologia molecular foram Watson e Crick que constituem um marco no desenvolvimento científico, e até compõem personagens de obras literárias. Esses fatos já fazem parte, inclusive da literatura nacional, quem não lembra de João Ubaldo Ribeiro e o O sorriso do lagarto? Eis quando se descobre o “coração da matéria” e se abrem as portas para um novo olhar e um novo agir sobre a vida, sobre a matéria, que coloca em risco o futuro da humanidade pelo alto grau de intervencionismo nos seres vivos, cujas conseqüências para o futuro são imprevisíveis.

A engenharia é o conhecimento prático, a arte, a técnica, que permitia antigamente e ainda permite a projeção, o desenho e a construção de artefatos materiais de diversos graus de complexidade para uso humano, que lhes facilitem a vida e complementem o que a natureza oferece para a sobrevivência. É preciso atravessar o rio, portanto é preciso construir uma ponte, nem que seja com o tronco rústico de uma árvore, ou com madeiras engenhosamente dispostas ou com a sofisticação das pontes modernas das grandes cidades contemporâneas, onde é necessário usar materiais: madeira, ferro, cimento e muitas outras substâncias complementares. Os protótipos são reversíveis na engenharia tradicional, pois são feitos de matéria inerte. Um engenheiro pode construir e destruir mil vezes sua construção original.

A diferença entre a engenharia tradicional e a biológica/molecular/genética é que na primeira os protótipos se fabricam com matéria inerte, inorgânica, eles podem ser, mil vezes experimentados. Na matéria viva, biológica, genética, qualquer erro é definitivo, irreversível, irreparável. Este fato é o que dá o diferencial fantástico da VIDA e o que parece estabelecer um limite ontológico definitivo para a ação humana sobre as espécies e sobre si mesma.

Deste modo, a vida – transformada em  novos produtos para o mercado – nas suas múltiplas e variadas expressões, com estruturas que contêm e transmitem a hereditariedade das várias espécies de seres vivos, transforma-se em objeto de manipulação tecnocientífica, seja no caso de modificação genética seja no caso das recombinações genéticas (genes de diferentes espécies).

O Projeto Genoma Humano é um exemplo relevante dos novos produtos (“originais ou derivados”) do mercado biotecnológico que deflagram disputas econômicas entre as grandes corporações. A procriação humana inclui-se também nessa vontade cultural de objetivação, re-desenhos dos corpos e mercantilização da vida molecular. Busca-se atingir, através da tecnologia reprodutiva e genética, o instante máximo de separação da sexualidade humana e da reprodução, e aprimora-se a exacerbação mecanicista da instrumentalização biológica de homens e mulheres. Os fatos tecnocientíficos abrem fronteiras inestimáveis de liberdade reprodutiva em territórios de absoluto niilismo ético. No campo da reprodução humana cabe indagar sobre a natureza dessa liberdade. Sua base é mercadológica e eugênica, dado que as novas gerações são objeto de melhoramento constante em função dos padrões e das demandas da cultura. Tende-se a acreditar que a genética desenha o destino das pessoas, que serão superiores ou inferiores, evitará a existência de seres defeituosos, deficientes ou fora de padrões considerados de elevada beleza ou inteligência ou, pelo contrário, poderá compor seres preparados para os trabalhos mais brutos, totalmente desumanizados.

Nas últimas décadas os eventos tecnocientíficos têm alcançado tal dinamismo que proezas artificiais contemporâneas nos permitem comer alimentos produzidos pelo entrecruzamento, no laboratório, de genes de diferentes espécies ou de espécies “melhoradas” (tomates com cheiro de limão ou tomates que não amassam), de cereais diversos em um só, de medicamentos personalizados que prometem descartar a possibilidade de doenças hereditárias, entre outros.

A engenharia genética promete uma inédita modificação do corpo humano e ainda incipiente para cobrir as expectativas imaginárias e econômicas de vários setores ligados à medicina e áreas afins.

Entretanto, essa modificação pode dar-se de forma “inadvertida”. Por exemplo, através do uso de técnicas genéticas ligadas à reprodução humana, tais como o Diagnóstico Genético Pré-Implantacional (DGPI), o rejuvenecimento de óvulos ou heteroplasmia mitocondrial, a Injeção Intracitoplasmática de Espermatozóide (ICSI). Estas, no contexto das Novas Tecnologias Reprodutivas, não são técnicas de engenharia genética propriamente ditas. A ICSI surgiu sem nenhuma experiência prévia em animais, sendo realizada diretamente em humanos. Os especialistas não têm consenso sobre os efeitos na saúde dos bebês. Organizações não governamentais, que atuam na área de ciência, tecnologia e sociedade, da Europa e dos EUA apontam que essas técnicas, embora não sejam de engenharia genética, são técnicas de modificação genética realizadas nas células germinativas. A heteroplasmia mitocondrial pode dar lugar a mais de cem doenças, como alterações no sistema nervoso, problemas cardiovasculares, convulsões permanentes e demência. Na realidade, ninguém sabe o que a introdução de DNA mitocondrial pode causar, mas nem por isso a técnica deixa de ser usada.

Na agricultura, os procedimentos transgênicos foram pensados em função de melhorar a relação da produção com a natureza. Para aumentar o lucro, garantir a qualidade e evitar riscos, os proprietários das grandes corporações biotecnológicas decidiram “melhorar” a natureza no sentido de evitar pragas e os obstáculos do desenvolvimento natural. Em primeiro lugar foram os agrotóxicos, logo os transgênicos, sem maiores análises e preocupações com os efeitos sobre o meio ambiente e a saúde humana.

A idéia de melhoramento está profundamente, diríamos, epistemologicamente, arraigada nos procedimentos de tecnologia recombinante: para que se “ recombinam” artificialmente as espécies? Sabe-se que há animais que carregam genes humanos, seja para a produção de leite ou de futuros órgãos artificiais ou de produção de medicamentos. Sem perceber vivemos uma fase de seres vivos mutantes. Por que o uso cada vez mais banal do DGPI no campo da reprodução humana? A primeira justificativa é para evitar doenças graves (em nome do BEM), mas já são comuns as declarações dos próprios cientistas no sentido do uso da engenharia genética para melhoria da raça humana e para aperfeiçoamento da espécie. Trata-se da origem de um sistema eugênico tecnológico de muita complexidade e sutileza para ser desmontado, pois sempre é apresentado sob a justificativa do bem, da beleza e da justiça. Evidentemente que haverá quem estabeleça os critérios, os valores, o que é melhor para quem. Esses “quem” devem ser postos politicamente num horizonte de muita claridade pois é evidente que seus objetivos revertem positivamente para a sustentação da fase neoliberal do capital contemporâneo. Quem se aproveita da ciência e da tecnologia para a criação de um mundo que começa a ultrapassar o horizonte do humano tal como tem sido até agora?

Se bem é verdade que nos últimos anos no campo ético, jurídico, tem havido um movimento no sentido de permitir, favorecer a apropriação e mercantilização da vida, sobretudo através das leis de patenteamento, e tem se transformado um campo rico de reflexão em uma bioética cientificista, oficialista, oportunista e legitimadora da imbricação da ciência, das novas tecnologias e do capital, nos resta como seres humanos um novo e derradeiro olhar sobre a nossa natureza

É fundamental recriar o debate entre ética, ciência e sociedade e revisar, sob possíveis novos referenciais, a epistemologia e ontologia do conhecimento contemporâneo sob a ótica dos procedimentos tecnológicos de última geração. O grande potencial é gerar capital em novas formas. Os recursos biológicos, genéticos e o imenso valor da informação por eles geradas na intersetorialidade tecnocientífica que configuram novas fases da economia. É preciso contextualizá-la em um universo ético, válido basicamente para toda a humanidade. A relação entre o conhecimento biológico/genético com o capital conduz muito rapidamente a pensar nos resultados eugênicos.

Um efeito eugênico que salta a primeira vista é que novas tecnologias trazem novas formas de eugenias, embutidas no uso de técnicas avançadas. A medicina científica de alta complexidade tecnológica é eugênica a partir da negação do acesso às populações mais pobres.

O aconselhamento genético, no campo da medicina científica, constitui uma porta aberta ao uso da genética em um horizonte interdisciplinar, especializado em informar para reduzir a incidência de anomalias genéticas. Entretanto, sabemos que o cientificismo de mercado nos faz suspeitar fortemente do uso ético do aconselhamento genético. Trata-se de um campo crivado de riscos, não só do ponto de vista da biologia molecular mas, e sobretudo, dos valores sociais e éticos dos quais são portadores tanto os profissionais quanto os pacientes. As decisões devem ser tomadas a partir da identificação do que é normal e anormal, as projeções dos riscos sobre as gerações futuras, as bases éticas, culturais e ideológicas que baseiam a decisão de interromper ou não uma gestação, a condução dos valores heterogêneos que caracterizam o grupo familiar, o respeito à autonomia da mulher, entre outros. A eugenia pode ancorar na própria relação entre profissional e paciente dessa área, pode resultar em uma “melhoria” discriminatória da espécie humana.

A reprodução humana associada à engenharia genética perfila um mundo difícil de precisar, pois indica a realização de um passo além da humanidade dado pelo próprio ser humano. Assinala um horizonte pós-humano, segundo alguns estudiosos. Alguém pensou como seria no futuro uma família transgênica? E o sentido do próprio conceito de eugenia na família futura? Alguém conhece as esculturas de Patricia Piccinini, uma escultora australiana? Aconselhamos conhecê-las para continuar alargando, através da reflexão e do agir críticos, o profundo sentido de responsabilidade humana que devemos exercer.


Alejandra Rotania é mestre em ciências sociais, doutora em engenharia de produção e coordenadora executiva de projetos e programas do Ser Mulher – Centro de Estudos e Ação da Mulher.