REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
O gene, o destino e a ética - Carlos Vogt
Reportagens
Banalização de testes genéticos preocupa pesquisadores
Susana Dias e André Gardini
Uso de dados genéticos é polêmico
Susana Dias e André Gardini
Nova genética desestabiliza idéia de “raça” e coloca dilemas políticos
Carol Cantarino
Genes e a compreensão de ser humano
Germana Barata e Maria Guimarães
Expectativas comerciais e científicas da farmacogenética
Marta Kanashiro e Paula Soyama
Indústria pode ganhar mais que pacientes com farmacogenômica
Marta Kanashiro e Paula Soyama
Artigos
Do Holocausto nazista à nova eugenia no século XXI
Andréa Guerra
Engenharia genética: significados ocultos
Alejandra Rotania
A clonagem das notícias de ciência
Maurício Tuffani
O investimento nos genes
Silvia Ribeiro
Está nos genes: barreiras de patentes na pesquisa genética
Lee Drutman
Resenha
A guerra contra os fracos
Rafael Evangelista
Entrevista
Bernardo Beiguelman
Entrevistado por Por Rodrigo Cunha
Poema
Instrução
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Artigo
A clonagem das notícias de ciência
Por Maurício Tuffani
10/02/2006
Em dezembro de 2005, ao fazer a seleção de grandes descobertas que apresenta tradicionalmente ao final de cada ano, a revista norte-americana Science foi obrigada a descartar o estudo que foi uma de suas maiores apostas editoriais nesse mesmo período e um dos que mais esperanças havia trazido nos últimos meses para a pesquisa na área de biotecnologia.i Dessa constrangedora retrospectiva foi excluído um empreendimento coordenado pelo pesquisador sul-coreano Woo-suk Hwang, da Universidade Nacional de Seul, que foi amplamente divulgado para o mundo todo como a primeira clonagem de células-tronco embrionárias humanas (CTEHs) e, que, posteriormente, foi desmascarado como fraude.ii

Esse caso apresenta diversos elementos de reflexão sobre o jornalismo na área de ciência. No que se refere à pauta, a credibilidade da Science, que é editada pela Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS) e é uma das principais fontes da imprensa, foi decisiva para a repercussão mundial dos resultados descritos no paper de Hwang.iii Como reforço a essa chancela, a pesquisa se baseava em dados preliminares apontados em um estudo também coordenado por ele, que havia sido divulgado em 2004 por essa mesma publicação.iv

No plano das conseqüências da divulgação pela mídia, o pesquisador sul-coreano, guindado rapidamente à condição de herói nacional e de celebridade internacional, teve, num piscar de olhos, o reconhecimento do governo de seu país na forma de US$ 65 milhões investidos no seu laboratório na universidade. Poucos meses depois, mais US$ 15 milhões foram previstos no orçamento de 2006 do Ministério da Saúde e do Bem-Estar Social com a rubrica destinada à criação do Centro Mundial de Célula-Tronco, no qual membros da equipe de Hwang deveriam clonar células humanas para clientes científicos de outros países.v

Ao decretar oficialmente a nulidade dos dois papers de Hwang, o editor-chefe da Science pediu desculpas pelo tempo e pelos recursos que a comunidade científica teria gasto tentando reproduzir os resultados divulgados pela revista e afirmou que providências deverão tomadas para evitar futuros engodos.vi

Apesar de envolver diversos aspectos diretamente relacionados a temas cruciais da ética e da técnica jornalísticas, o caso Hwang, assim como outros que envolveram fraudes científicas, não gerou entre profissionais que cobrem ciência nenhum questionamento de significativa repercussão.vii No entanto, no âmbito do jornalismo em geral, são amplamente conhecidos diversos casos em que a imprensa foi forçada não só a reconhecer seus deslizes, como também a se questionar com relação aos seus métodos e objetivos ― desde casos locais, como o do fantasioso abuso de crianças na Escola Base, em São Paulo, a acontecimentos de repercussão e conseqüências globais, como a revelação tardia da inexistência de provas dos alegados arsenais de destruição em massa que serviram do pretexto para a invasão do Iraque.

Não se trata aqui de afirmar que o chamado jornalismo científico goza de imunidade a questionamentos sobre sua confiabilidade. Decerto não é razoável exigir dos jornalistas que sejam mais criteriosos que os próprios cientistas em assuntos que envolvam fraude científica. Geralmente crítica e exigente no que se refere à “tradução” do discurso científico para a linguagem coloquial, jamais a comunidade científica repreendeu a imprensa por ter ludibriado seu público com a divulgação de estudos chancelados pelo ritual do peer review.

No entanto, trata-se aqui inicialmente de questionar essa certificação oferecida pelos ritos acadêmicos, os processos jornalísticos a eles associados e a cultura de trabalho que essa relação envolve. Em busca de critérios de seleção de novidades científicas para assegurar confiabilidade das pautas, a imprensa adotou nas últimas décadas o princípio de exigência do endosso de comitês científicos independentes. Na prática, isso significou a consagração como principal fonte do noticiário de ciência das revistas científicas, uma vez que elas organizam e mantêm comitês consultivos independentes para avaliar os estudos encaminhados para publicação.

Esse processo teve conseqüências muito maiores no plano da comunicação em geral para as publicações científicas de maior circulação e prestígio. Entre as interdisciplinares destacam-se as norte-americanas Science e Proceedings of the National Academy of Sciences e a britânica Nature e, entre as da área médica, Journal of the American Medical Association e New England Journal of Medicine, dos Estados Unidos, e British Medical Journal e The Lancet, do Reino Unido. Consagradas como fontes indispensáveis da mídia internacional, essas publicações rapidamente incorporaram uma outra função além da original de divulgação científica inter pares, mas de uma forma não explícita: elas passaram a ser veículos de comunicação disponíveis para instituições científicas ― governamentais ou não-governamentais ―, lideranças acadêmicas e até de empresas, como as indústrias farmacêuticas, os recentes empreendimentos da genômica e outros.

Expostas aos holofotes da mídia, embora continuando a usar os seus próprios meios de comunicação, lideranças e entidades científicas rapidamente compreenderam porque no cinema e na televisão se usa maquiagem. Na medida em que determinadas publicações científicas expandiram seu público-alvo para além dos limites da comunidade acadêmica, abrindo espaço para influenciar comunicadores, formadores de opinião e tomadores de decisão, elas passaram a servir como palco para campanhas institucionais e disputas internas por poder e recursos. Aos simples press-releases se acrescentaram, com o tempo, entrevistas coletivas, eventos especiais e teleconferências.

Um dos mais eloqüentes exemplos desse novo papel das publicações científicas foi a divulgação simultânea, nas revistas Nature (vol. 409, nº 6822) e Science (vol. 291, nº 5507), respectivamente em 15 e 16 de fevereiro de 2001, dos resultados do Projeto Genoma Humano, realizado por instituições públicas dos EUA, Reino Unido, Alemanha, França, Japão e China e pelo grupo privado norte-americano Celera, como mostrou uma criteriosa pesquisa realizada pelo jornalista Marcelo Leite para sua tese de doutorado “Biologia total: Hegemonia e informação no genoma humano”.

“Publicações como a Nature e a Science se encontram numa posição privilegiada para influenciar a forma final que as realizações dos cientistas assumem no imaginário social: têm periodicidade semanal, não são ultra-especializadas como maioria dos journals, os trabalhos técnicos que veiculam são precedidos por artigos, comentários e notícias que contextualizam e discutem os dados e interpretações dos primeiros, e desenvolveram nas duas últimas décadas um sistema de prestação de serviços viii para jornalistas especializados em ciência que as transformou em duas de suas fontes preferidas de informação e em mananciais de pautas para reportagem (ambas as publicações são também importantes formadoras de opinião na comunidade científica internacional). Não é de estranhar, assim, que as duas edições aqui analisadas tenham abusado das hipérboles para sublinhar o caráter histórico da publicação das seqüências-rascunho do genoma humano; era imperioso, antes de mais nada, que os jornalistas assim a percebessem e assim a apresentassem para o grande público.” ix

Ao caracterizar de forma inequívoca a “mobilização retórica e política, nas interfaces com a esfera pública leiga, de um determinismo genético crescentemente irreconciliável com os resultados empíricos obtidos no curso da própria pesquisa genômica”,x bem como o recurso crescente a hipérboles e metáforas por parte de cientistas em publicações especializadas a função de suporte a um programa hegemônico de pesquisa, Marcelo Leite conclui em seu estudo que

“... cabe ao cientista social que se defronta com a tecnociência em sua vertente biotecnológica empunhar as armas da crítica para desafiar o campo hegemônico da genômica a abandonar ou reformular drasticamente o complexo de metáforas deterministas que até agora lhe deu sustentação. Sem isso ela deixará de ser científica, ou seja, se afastará cada vez mais da promessa de objetividade e de imparcialidade implícita em qualquer forma de pesquisa científica, até mesmo na tecnociência.” xi

Mapeada por esse estudo de sociologia da ciência nas publicações científicas especializadas, a retórica determinista e reducionista no uso de hipérboles e metáforas sobre as promessas da genética não tem servido apenas para atrair a atenção dos pauteiros, influenciando o ponto de partida da atividade editorial. Ela tem sido também amplamente reproduzida no texto das reportagens, isto é, no produto final do noticiário de ciência, como indica a pesquisa no âmbito da comunicação realizada pelo jornalista Cláudio Júlio Tognolli “A falácia genética: A ideologia do DNA na imprensa”:

“As vastas operações da linguagem da mídia vêm fomentando, como demonstramos, a idéia de que, num mundo em que a transparência é espírito de época, o gene é a caixa preta final do ser humano”.xii

Às considerações aqui apresentadas acrescentam-se os questionamentos que vêm se tornando cada vez mais freqüentes sobre a prática do jornalismo científico, no qual o peso das publicações científicas não se restringe aos critérios de seleção de pauta, mas também aos critérios de correção da informação final. No entanto, esse peso tem sido hegemônico, sobrepujando inclusive os próprios preceitos jornalísticos de avaliação crítica e independente das fontes. Como ressaltou a jornalista Mônica Teixeira ao analisar essa omissão, "importa, para a aferição da qualidade do que escreve o jornalista (jornalista de televisão também escreve), estar o texto ou não de acordo com o que reza a ciência, concretizada na conclusão do artigo científico mais recente".xiii

Um dos aspectos mais preocupantes levantados por essas críticas é a omissão generalizada do contraditório no noticiário sobre ciência. Nesse processo, “o papel do jornalista acaba não sendo muito diferente daquele que seria de um assessor de imprensa do pesquisador que deu a entrevista”, como ressaltamos anteriormente.xiv Em artigo recente sobre esse tema, a jornalista Martha San Juan França observou que:

"Enquanto repórteres de política e economia freqüentemente vão além dos releases oficiais para comprovar a veracidade das notícias, os colegas de ciência se contentam com a informação autorizada, os papers (relatórios científicos), entrevistas coletivas e revistas especializadas. Enquanto as notícias de outras áreas são normalmente objeto de crítica, a ciência e a tecnologia são poupadas ― até que ocorram acidentes trágicos. Se bons jornalistas são reconhecidos ― e temidos ― por suas análises críticas, no caso de ciência, a investigação e a crítica costumam passar longe." xv

O papel das publicações científicas especializadas no âmbito da cobertura jornalística de ciência se tornou hegemônico com relação aos preceitos de avaliação crítica e independente das fontes. Potencializado pelos serviços de divulgação das instituições científicas e pelas novas tecnologias de comunicação, esse papel tem praticamente consolidado nesse campo específico da cobertura da imprensa o processo para o qual muitos estudiosos e críticos da mídia em geral têm alertado: o da conversão do jornalista em um simples comunicador, que se ocupa de reproduzir informações em um formato mais acessível ao público em geral, em detrimento das demais atribuições inerentes à mediação plena que se espera dessa profissão.

Dizendo em termos mais enfáticos, o chamado jornalismo científico encontra-se em estado mais avançado do que outras áreas da imprensa nesse processo que foi devidamente caracterizado no relatório “The State of Newsmedia 2004”, da Escola de Jornalismo da Universidade Columbia: 1) a maior parte da atividade jornalística consiste em distribuir informações, e não em produzi-las e 2) mesmo entre grande parte dos meios que produzem a informação a ser distribuída, confunde-se cada vez mais os elementos informativos brutos com o que seria a informação resultante de checagem, comparação e avaliação.xvi

Não sabemos se esse processo é reversível, seja no âmbito do jornalismo em geral, seja no plano específico da cobertura de ciência, devido aos componentes conjunturais de crise global no mundo da comunicação, com as sucessivas eliminações de postos de trabalho, o crescente processo de concentração de propriedade dos meios de comunicação, paralelamente à progressiva miscigenação e promiscuidade do espaço jornalístico com o do entretenimento e à pulverização dos valores éticos e de credibilidade.

Se esse quadro é resultado de uma tendência da sociedade, da globalização, do pós-modernismo, do neoliberalismo ou coisa que o valha, é uma questão. Seja o que for, uma outra questão é o que fazer. Do ponto de vista daquilo que ainda se pode chamar de deontologia do jornalismo, imaginamos que é indesejável a continuidade dessa clonagem do noticiário de ciência. Se existem antídotos ou paliativos contra ela, é necessário ― mas não suficiente ― que a receita inclua o resgate do papel investigativo do jornalismo.

Maurício Tuffani é assessor de comunicação e imprensa da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e responsável pelo blog Laudas Críticas (http://laudascriticas.blogspot.com).

Notas
1 - Donald Kennedy ― “Breakthrough of the year” (Editorial). Science, 23 December 2005: Vol. 310. no. 5756. p. 1869 (http://www.sciencemag.org/cgi/content/summary/310/5756/1869).

2 -
Donald Kennedy ― “Editorial retraction”. Science, 20 January 2006: Vol. 311. no. 5759. p. 335 (http://www.sciencemag.org/cgi/content/full/311/5759/335b).

3 - Woo Suk Hwang, Sung Il Roh, Byeong Chun Lee, Sung Keun Kang, Dae Kee Kwon, Sue Kim, Sun Jong Kim, Sun Woo Park, Hee Sun Kwon, Chang Kyu Lee, Jung Bok Lee, Jin Mee Kim, Curie Ahn, Sun Ha Paek, Sang Sik Chang, Jung Jin Koo, Hyun Soo Yoon, Jung Hye Hwang, Youn Young Hwang, Ye Soo Park, Sun Kyung Oh, Hee Sun Kim, Jong Hyuk Park, Shin Yong Moon, and Gerald Schatten ― “Patient-Specific Embryonic Stem Cells Derived from Human SCNT Blastocysts”. Science, 17 June 2005: 1777-1783 (http://www.sciencemag.org/cgi/content/full/sci;308/5729/1777).

4 - Woo Suk Hwang, Young June Ryu, Jong Hyuk Park, Eul Soon Park, Eu Gene Lee, Ja Min Koo, Hyun Yong Jeon, Byeong Chun Lee, Sung Keun Kang, Sun Jong Kim, Curie Ahn, Jung Hye Hwang, Ky Young Park, Jose B. Cibelli, and Shin Yong Moon ― “Evidence of a Pluripotent Human Embryonic Stem Cell Line Derived from a Cloned Blastocyst” Science, 12 March 2004: 1669-1674 (http://www.sciencemag.org/cgi/content/full/sci;303/5664/1669).

5 - Nicholas Wade ― “Clone Scientist Relied on Peers and Korean Pride”. The New York Times, 25/dez/2005 (http://www.nytimes.com/2005/12/25/science/25clone.html).

6 - Ver nota 2

7 - Maurício Tuffani ― “Lições sobre a fraude dos clones”. Laudas Críticas (blog), 27/dez/2005 (http://laudascriticas.blogspot.com/2005/12/lies-da-fraude-dos-clones.html).

8 - O autor citado se refere aos veículos Press Nature (http://press.nature.com) e Eurekalert/Science (http://www.eurekalert.org/jrnls/sci)

9 - Marcelo Leite ― Biologia total: Hegemonia e informação no genoma humano. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (inédito). p. 89.

10 - Idem, p. 207.

11- Idem, p. 211

12 - Cláudio Júlio Tognolli ― A Falácia genética: a ideologia do DNA na imprensa. Escrituras Editora. São Paulo. 2003, p. 300.

13 - Mônica Teixeira ― "Pressupostos do Jornalismo de Ciência no Brasil". in Luísa Massarani et al (orgs.) Ciência e Público: Caminhos da divulgação científica no Brasil. Casa da Ciência, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. 2002. pp. 133-141

14 - Maurício Tuffani ― “O fogo cruzado no jornalismo de ciência”. ComCiência. Laboratório de Estudos Avançados de Jornalismo Científico, Universidade Estadual de Campinas. 10/jul/2003. (http://www.comciencia.br/reportagens/cultura/cultura11.shtml).

15 - Martha San Juan França ―"Divulgação ou jornalismo?". in Sergio Vilas Boas (org.) Formação e informação científica: Jornalismo para iniciados e leigos. São Paulo. Summus Editorial. 2005. pp. 31-47

16 - The Project for Excellence in Journalism ― The State of News Media 2004. Graduate School of Journalism. Columbia University. Nova York. 2004 (http://www.stateofthenewsmedia.org/2004).