REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
O gene, o destino e a ética - Carlos Vogt
Reportagens
Banalização de testes genéticos preocupa pesquisadores
Susana Dias e André Gardini
Uso de dados genéticos é polêmico
Susana Dias e André Gardini
Nova genética desestabiliza idéia de “raça” e coloca dilemas políticos
Carol Cantarino
Genes e a compreensão de ser humano
Germana Barata e Maria Guimarães
Expectativas comerciais e científicas da farmacogenética
Marta Kanashiro e Paula Soyama
Indústria pode ganhar mais que pacientes com farmacogenômica
Marta Kanashiro e Paula Soyama
Artigos
Do Holocausto nazista à nova eugenia no século XXI
Andréa Guerra
Engenharia genética: significados ocultos
Alejandra Rotania
A clonagem das notícias de ciência
Maurício Tuffani
O investimento nos genes
Silvia Ribeiro
Está nos genes: barreiras de patentes na pesquisa genética
Lee Drutman
Resenha
A guerra contra os fracos
Rafael Evangelista
Entrevista
Bernardo Beiguelman
Entrevistado por Por Rodrigo Cunha
Poema
Instrução
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Reportagem
Uso de dados genéticos é polêmico
Por Susana Dias e André Gardini
10/02/2006

Informações genéticas são altamente sensíveis e potencialmente promotoras da quebra da privacidade e do estabelecimento de políticas de exclusão. Ao mesmo tempo em que surgem novos programas voltados à identificação do perfil genético de pessoas, surgem também novas preocupações éticas quanto aos usos que serão feitos desses dados. No mundo inteiro, aumentam os casos de discriminação genética no trabalho e nas operadoras de planos de saúde, bem como a realização de análises do patrimônio genético sem o consentimento das pessoas. No Brasil, no ano passado pesquisadores denunciaram um centro público de coleta de sangue em Brasília que realizou, sem consentimento, testes com seus freqüentadores. Para conter o avanço do poder dos genes sobre a vida das pessoas, especialistas ressaltam que as novas tecnologias precisam ser cercadas de garantia legal, depositando esperanças de que um sistema jurídico eficiente seja capaz de proteger os cidadãos.

Sandra Rodrigues Braga, professora de geografia, e Vânia Rúbia Farias Vlach, do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia, discutem no artigo Os usos políticos da tecnologia, o biopoder e a sociedade de controle: considerações preliminares” como as inovações tecnológicas, ao prometerem uma nova democracia, “criaram novas desigualdades e exclusões, debilitaram as resistências dos trabalhadores e ampliaram o domínio sobre eles”.

Para as pesquisadoras “os exames genéticos são potencialmente promotores de uma quebra de privacidade, sujeitando os indivíduos a um controle que determina padrões de normalidade a serem seguidos por todos”. Braga e Vlach explicam que esses padrões, baseados nos testes genéticos, podem servir para elevar preços de planos de saúde ou excluir potenciais portadores de doenças genéticas do mercado de trabalho. Elas ressaltam o quão preocupante é o potencial de controle social presente na engenharia genética.

A discriminação genética no trabalho não é um fato novo. Há relatos de casos que antecedem o Projeto Genoma Humano, como o de empresas nos EUA que, na década de 70, se recusaram a contratar negros com traços genéticos para anemia falciforme, embora essas pessoas apresentassem condições adequadas de saúde para o emprego e ausência de riscos de desenvolverem a doença.

Lista negra genética

Demócrito Reinaldo Filho, juiz de direito em Recife e diretor do Instituto Brasileiro de Direito da Informática (IBDI), também concorda que as empresas poderão criar uma espécie de lista negra genética. “Um empregador, de posse de informações genéticas, terá todas as ferramentas para estabelecer uma política discriminatória. Por exemplo, não empregar ou demitir pessoas que tenham uma predisposição a certas doenças, ou que possam ser consideradas com capacidade laborativa menos desenvolvida”. O juiz lembra que em outras ocasiões informações sobre os trabalhadores já foram utilizadas para estabelecer uma política discriminatória no emprego. Como quando as empresas utilizaram dados disponíveis nos sites dos tribunais de trabalho para elaborar uma lista negra de empregados que apresentavam mais reclamações trabalhistas, e não contratá-los. Para evitar que isso acontecesse, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) baixou uma resolução estabelecendo regras sobre o acesso aos processos.

Da mesma maneira, as seguradoras de planos de saúde também podem se valer dessas informações para incluir restrições aos seus segurados, cobrar taxas mais elevadas ou até se negar a fazer contratos de saúde com pessoas que tenham predisposição a doenças que têm procedimentos médicos mais caros. Como os testes genéticos fornecem dados de outra natureza para os empregadores e seguradoras, a política discriminatória pode atingir não apenas a pessoa, mas também seus familiares. “Essa é uma questão muito delicada, muito perigosa. Tudo vai depender do uso que vai ser feito dessas informações. Esse tipo de informação requer uma proteção pelo sistema jurídico diversa de qualquer outro tipo de proteção já existente, que deve ser extremamente rigorosa”, alerta Demócrito Filho.

Bancos de dados genéticos

A criação de bancos de dados genéticos tem sido alvo de intensas críticas. No artigo One million people, one medical gamble”, publicado em janeiro de 2006, Andy Coghlan, apresenta preocupações e questionamentos que a comunidade científica tem com relação a dois grandes projetos dessa natureza. O Biobank, programa britânico que terá início em algumas semanas, e outro realizado pelo National Human Genome Research Institute, Maryland, EUA, que ainda está em estágio de planejamento. Ambos os projetos pretendem revolucionar a pesquisa médica recolhendo informações para estudar como os genes e o ambiente interagem no decorrer dos anos para causar doenças. Segundo Coghlan, os críticos aos programas têm alertado para os resultados enganadores que tais pesquisas podem gerar, além dos problemas éticos que podem causar ao arquivar detalhes médicos de um milhão de pessoas e seus familiares.

Coghlan relata o caso do governo da Islândia que permitiu que a companhia Decode Genetics armazenasse informações genéticas de toda população do país. Após várias denúncias e ações na justiça, o programa foi considerado inconstitucional porque os indivíduos não haviam fornecido um consentimento explícito para uso de suas informações. Além dessa “falha” no processo, a Decode voltou a coletar material genético de voluntários na Islândia e usou as informações para a produção de medicamentos – como uma droga para combater o ataque cardíaco que já está em fase final de experimentação clínica – sem que os participantes tivessem conhecimento que seu material genético seria usado para tais fins.

No Brasil, o programa “Caminho de volta” se propõe a apresentar uma “solução técnica” para o problema de desaparecimento infanto-juvenil no estado de São Paulo por meio da criação de um banco de dados genéticos de crianças, adolescentes e pais. Espera-se que o cruzamento das informações permita colocar “em contato as duas pontas do problema: a criança e a família”, como explicita o projeto. Pais que apresentam queixas de menores desaparecidos são encaminhados ao Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), para cadastramento no programa.

Para Pierre Kasper, membro do grupo de pesquisa Conhecimento, tecnologia e mercado (CTeMe) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é importante perceber que no caso do programa “Caminho de volta” é a angústia dos pais que legitima a coleta e armazenamento de dados genéticos. “Frente à dor dos pais cujo filho desapareceu, quem vai se opor ao que pode trazer uma solução?”, observa. Para ele, esse tipo de programa enfrenta o risco inerente a qualquer acúmulo de informação: nunca se sabe exatamente o uso que será feito dela. “Caso os testes se generalizem entre meninos de rua, por exemplo, seu aproveitamento para a constituição de um banco de dados de ‘criminais potenciais’ é previsível. Isso sem contar as informações que poderão ser produzidas a partir da leitura do próprio código genético”, analisa Kasper.

Consentimento informado

O direito dos indivíduos de saberem que seu material genético está sendo coletado para algum tipo de pesquisa, monitoramento ou criação de banco de dados, bem como a necessidade desses indivíduos permitirem a realização dessas práticas, são condutas éticas reconhecidas internacionalmente. Entretanto, além das denúncias de que essas condutas não estão sendo realizadas há críticas quanto à validade do consentimento informado.

Em um caso ocorrido em Brasília, um centro público de doação de sangue, realizava, entre os testes laboratoriais para evitar a propagação de doenças por transfusões, o exame genético para traço falciforme. As pessoas que apresentavam a anemia falciforme, ou a probabilidade de ter a doença, recebiam em casa uma carta, convocando-as para uma reapresentação ao centro. Estima-se que no Brasil cerca de 3% da população apresenta essa característica genética. A união entre duas pessoas com o traço falciforme pode gerar uma criança com anemia falciforme, por isso, esta doença genética tem sido considerada uma das mais importantes no cenário epidemiológico brasileiro.

Débora Diniz, professora de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e diretora do Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero (Anis), autora das denúncias sobre o caso, defende a confidencialidade no tratamento das informações genéticas de cada paciente e a informação prévia sobre os testes que serão feitos com o sangue coletado. “A questão levantada ali era a seguinte: as pessoas iam doar sangue e muitas vezes sequer sabiam que estavam sendo testadas para outras doenças”. Após a denúncia de Diniz, o centro de saúde mudou seu protocolo, que agora traz a informação sobre os exames que serão realizados.

Diniz destaca que esse é um dos grandes problemas que surgiram com o desenvolvimento da genética. Para ela, a mudança no protocolo de doação de sangue levou a uma outra discussão a de que, ao autorizar esses exames, os usuários não têm a completa noção do que significa ser testado para uma informação genética. “Há ainda dois condicionantes: a educação e a informação em saúde pública”, segundo a professora, e que não têm sido respaldados pelas instituições de saúde pública.

O consentimento informado não é suficiente também em situações que envolvem patrões e empregados. Mesmo quando o empregado voluntariamente participa de programas de monitoramento genético, a sua situação de subordinação diante do patrão pode influenciar em sua decisão. “Ele pode consentir por medo de perder o emprego, ou ainda por receio de perder benefícios trabalhistas”, avalia Demócrito Filho. Para o juiz um programa de coleta de informações genéticas no ambiente de trabalho não apenas deve ter o consentimento informado do empregado, mas a participação efetiva de sindicatos e órgãos do governo, para cercar os trabalhadores de todas as garantias legais e jurídicas quanto aos usos dessas informações.

Falta de regulamentação abre brechas

O surgimento das novas tecnologias genéticas tem promovido conflitos e dúvidas no âmbito jurídico que não encontram respaldo no aparato legislativo para sua resolução. Enquanto a genética avança rapidamente, o sistema judiciário em todo mundo anda a passos lentos. Nos EUA, por exemplo, embora as denúncias sejam antigas, somente em 2005 o senado aprovou um projeto de lei proibindo a discriminação com base em informações sobre o patrimônio genético.

O Brasil ainda não possui uma legislação específica para proteção de dados pessoais. O juiz Demócrito Filho explica que, nos casos que ocorrerem hoje no país – de acesso e uso de informações do patrimônio genético indevidos – a discussão jurídica será baseada nos princípios gerais estabelecidos na Constituição brasileira e em algumas leis esparsas (como a lei de sigilo bancário e a lei sobre o repasse de informações médicas aos planos de saúde).

Atualmente existem dois modelos de sistema jurídico de proteção de dados pessoais: um praticado pela Comunidade Européia, Canadá e Argentina, considerado juridicamente mais desenvolvido porque possui uma lei básica geral e uma série de diretivas específicas; e o modelo vigente nos EUA, que não possui uma lei geral de proteção de dados pessoais, mas inúmeras leis isoladas, semelhante ao que acontece no Brasil, só que em maior número e mais segmentadas. Para Demócrito Filho a utilização das tecnologias genéticas deve ser cercada de todas as garantias de proteção. Segundo o juiz já há um esforço no Brasil, junto ao Ministério da Justiça, para criar um projeto de lei geral de proteção aos dados pessoais, como existe na Europa.

Segundo ele, a existência de uma lei geral irá favorecer o estabelecimento de regras mais claras para proteção de dados pessoais. “Se por um lado a constituição enuncia a proteção à intimidade e privacidade das pessoas, por outro lado estabelece a possibilidade da divulgação de informações – como os dados sobre criminosos – que são consideradas necessárias à segurança da sociedade. O indivíduo tem o direito a ter sua privacidade protegida, mas a sociedade tem o direito à segurança pública. Nesse conflito, o interesse público prevalece, embora haja uma ampla discussão sobre o tema”, observa o juiz.