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Scientific literacy: alfabetização ou letramento? Implicações políticas da tradução de um conceito
Por Rodrigo Cunha
10/07/2012

Quando uma área do conhecimento é ainda incipiente em nosso país, é comum que boa parte da bibliografia de referência seja em língua estrangeira. É o caso das reflexões pioneiras sobre divulgação científica, no âmbito da pós-graduação, dos encontros acadêmicos e dos periódicos especializados. Os trabalhos brasileiros têm como precedentes os estudos que tratam das noções de “culture scientifique”, na França, e de “public understanding of science”, na Inglaterra. A primeira se difunde na língua majoritária do meio acadêmico internacional, através da expressão “scientific culture” e a segunda foi recentemente atualizada para “public engagement with science and technology”. Ambas dialogam com a tradição de estudos nessa área nos Estados Unidos, onde tem papel central a noção de “scientific literacy”.

Temos, por um lado, uma forte circulação desse último termo que toma emprestada uma noção dos estudos da linguagem e do ensino de língua e, por outro, sua tradução para uma literatura acadêmica em língua portuguesa em área ainda em fase de consolidação. Uma das ferramentas básicas do tradutor, o dicionário, apresenta como significado de “literacy”, em língua inglesa, “the state of being able to read and write”, e em português, “capacidade de ler e escrever”. Como a expressão “letramento” só foi dicionarizada recentemente e ainda não é muito difundida fora do campo acadêmico específico que estuda o ensino de língua, não é de se admirar que “literacy” seja, na maioria das vezes, associado à “alfabetização”. Mas em quê o termo “letramento” se distingue de “alfabetização” e como foi a sua entrada no meio acadêmico brasileiro?

Magda Soares, do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), conta em seu livro Letramento: um tema em três gêneros, que o termo “letramento” surgiu no discurso de especialistas da área na segunda metade da década de 1980. O objetivo, basicamente, era a distinção entre o mero aprendizado da codificação da escrita, a alfabetização, e o impacto social de seu efetivo uso. “Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”, diz Angela Kleiman, do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no livro Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita, publicado em 1995.

O cerne dessa noção de “letramento” – o impacto social da leitura e da escrita através de seu uso em práticas sociais – já aparecia nas discussões sobre “scientific literacy” desde o final da década de 1950, nos Estados Unidos. De acordo com Rüdiger Laugksch, da Faculdade de Educação da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, o termo é considerado controverso pelo fato de sua definição variar de acordo com o grupo de interesse e o público alvo: um deles seria a comunidade voltada para o ensino de ciências, cujo público são os alunos do ensino básico, principalmente do nível médio; outro seriam os cientistas sociais ligados aos estudos sobre ciência, tecnologia e sociedade, com foco no público adulto; há ainda o grupo que envolve o jornalismo e os museus de ciência, cujo público abrange tanto adultos quanto crianças e adolescentes.

Em 1975, Benjamin Shen propôs, em artigo na revista American Scientist, três categorias para “scientific literacy”, que não são excludentes, entre si, mas distintas de acordo com o objetivo e a audiência. A primeira, de ordem prática, envolve o conhecimento científico que pode ser usado para resolver problemas básicos de saúde e alimentação. A segunda, que ele chamou de cívica, abrange o conhecimento necessário para compreender os problemas sociais ligados à ciência e à tecnologia e poder opinar sobre as políticas públicas de saúde, energia, alimentação, meio ambiente, recursos naturais e comunicação. A terceira, cultural, compreende o desejo de conhecer a ciência enquanto maior realização humana. Laugksch, em sua revisão conceitual de “scientific literacy”, sintetiza que sua função social seria o desenvolvimento de uma capacidade mínima para agir como consumidor e cidadão.

Em 1996, o então presidente da Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS), Francisco Ayala, escreveu no World Science Report, um relatório da Unesco, que não se espera que uma pessoa cientificamente letrada saiba que a expressão do DNA é mediada pelas moléculas de RNA transmissores. Para ele, o objetivo do letramento científico é que a decisão de apoiar ou não um programa governamental na área de energia, por exemplo, não seja baseada na crença de que toda intervenção nos recursos naturais é prejudicial (ou, no outro extremo, benéfica) e nem no desconhecimento de que certas políticas envolvem a resolução de um problema – que pode ser de ordem econômica e social –, mas acarretam outros – que podem ser socioambientais. É o caso da construção de usinas, sejam elas nucleares, à base de carvão ou hidrelétricas.

O campo com maior número de trabalhos publicados em torno dessa discussão no Brasil é o de ensino de ciências, em que predomina o uso do termo “alfabetização científica”. Attico Chassot, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), entre seus vários textos sobre o tema, defende em artigo na Revista Brasileira de Educação que o ensino de ciências seja revisto, não gire mais em torno de decorar conceitos e classificações que logo serão esquecidos e relativize a visão positivista de ciência como verdade definitiva. “Não podemos ver na ciência apenas a fada benfazeja que nos proporciona conforto no vestir e na habitação, nos enseja remédios mais baratos e mais eficazes, ou alimentos mais saborosos e mais nutritivos, ou ainda facilita nossas comunicações. Ela pode ser – ou é – também uma bruxa malvada que programa grãos ou animais que são fontes alimentares da humanidade para se tornarem estéreis a uma segunda reprodução”, afirma Chassot.

Como ele diz que sua proposta de ensino seria voltada para a inclusão social, talvez não se dê conta de que sua definição de “alfabetização científica”, além de pressupor um analfabetismo conceitualmente discutível, pode aumentar ainda mais a distância entre os que têm acesso a um determinado tipo de conhecimento especializado e os que não têm: “Ser alfabetizado cientificamente é saber ler a linguagem em que está escrita a natureza. É um analfabeto científico aquele incapaz de uma leitura do universo”, diz Chassot. Essa definição, que exclui qualquer leitura “não científica” do universo, gera o mesmo tipo de problema já apontado por estudiosos em relação ao ensino da escrita da língua.

“O distanciamento entre a língua oral e a língua escrita devido à especialização e ao funcionamento diferenciado de ambas configura uma situação (...) não de línguas de contato, mas de línguas em conflito. Trata-se de duas modalidades que constituiriam variedades discursivas da mesma língua, sendo que cada uma tem status e prestígios diferentes, e que também teriam diferenças devido às suas funções diferenciadas na sociedade”, afirma Kleiman, da Unicamp. “Uma vez que os grupos não-letrados ou não-escolarizados são comparados com grupos letrados ou escolarizados, estes últimos podem vir a ser a norma, o esperado, o desejado, principalmente porque os pesquisadores são membros de culturas ocidentais letradas. Quando a comparação é realizada, estamos a um passo de concepções deficitárias (...) perigosas, pois podem fornecer argumentos para reproduzir o preconceito”, acrescenta.

No ensino de língua, impor a modalidade padrão, representada pela escrita, como sendo a única legítima, excluindo todas as demais variedades, pode gerar o efeito contrário do esperado na escolarização: a resistência à cultura letrada. Já no ensino de ciência, a pressuposição do “analfabetismo” para toda leitura de mundo que não seja a “científica” tira toda a legitimidade do conhecimento tradicional. No entanto, o diálogo entre a cultura letrada e a não letrada é possível. O químico Lauro Barata, da Unicamp, por exemplo, em reportagem da ComCiência, conta o que aprendeu sobre o pau-rosa com seu Alencar, um ribeirinho da Amazônia. E não seria nenhum absurdo pensar que o conhecimento de botânica de um jardineiro com pouca ou nenhuma escolarização pode ser bem maior do que o de um cientista de uma área diversa da botânica. O mesmo pode ser dito do conhecimento de um pescador sobre as marés, os ventos e, claro, os peixes.

Outro autor do campo da educação com vários textos sobre o tema, Wildson dos Santos, do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da Universidade de Brasília (UnB), é dos poucos que têm optado pelo uso do termo “letramento científico”. Oriundo da química, é dessa área do conhecimento que ele extrai um exemplo do que seria o “letramento científico” com função social, na formação de consumidores e cidadãos críticos, como define Laugksch. “As pessoas lidam diariamente com dezenas de produtos químicos e têm que decidir qual devem consumir e como fazê-lo. Essa decisão poderia ser tomada levando em conta não só a eficiência dos produtos para os fins que se desejam, mas também seus efeitos sobre a saúde, seus efeitos ambientais, seu valor econômico, as questões éticas relacionadas à sua produção e comercialização. Por exemplo, poderia ser considerado pelo cidadão, na hora de consumir determinado produto, se na sua produção é usada mão de obra infantil ou se os trabalhadores são explorados de maneira desumana; se em alguma fase, da produção ao descarte, houve geração de resíduos que agridem o ambiente; se ele é objeto de contrabando ou de outra contravenção etc”, diz Wildson dos Santos, em artigo na Revista Brasileira de Educação.

Há, portanto, uma consonância entre a escolha do pesquisador da UnB por “letramento” e as definições de Shen, Laugksch e Ayala. Ao propor aqui que a tradução de “scientific literacy” por “letramento científico” tem suas razões politicamente interessantes, não pretendo entrar em uma seara que não é a minha, a do ensino de ciências – e acredito que mesmo para quem é dessa área talvez seja difícil definir qual seria o conhecimento básico para formar o cidadão (um tempero para essa discussão é a recente aprovação, pela Assembleia Legislativa de Rondônia, de um projeto de lei do executivo instituindo no currículo das escolas estaduais noções básicas de direito, com temas como exclusão social, racismo, direitos humanos, trabalhistas, meio ambiente e combate à corrupção). Mas do ponto de vista do jornalismo, que é de onde falo, a noção de “letramento científico” pode ser explorada em toda a sua potencialidade.

Um fato recente, por exemplo, o anúncio da comprovação da eficácia da vacina contra esquitossomose em seres humanos, possibilita tratar jornalisticamente de diversas questões: uma é o desinteresse dos países ricos e de sua indústria em investir na pesquisa sobre doenças que matam milhões de pessoas em países pobres (a ComCiência têm um dossiê dedicado às doenças tropicais); outra é a do papel da mulher na ciência, especialmente em posições de liderança – a pesquisa que levou à vacina foi liderada pela infectologista Miriam Tendler, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) (as mulheres na ciência são o tema de outro dossiê da ComCiência); uma terceira questão seria a capacidade do Brasil de realizar pesquisa de ponta (ainda há quem acredite que ciência boa é somente a que é feita nos países desenvolvidos); uma quarta é o interesse de laboratórios privados em firmar parceria com a Fiocruz, de olho em uma aplicação economicamente lucrativa voltada para o agronegócio, já que a vacina também se mostrou eficaz no combate a uma verminose do gado; uma quinta questão, não menos importante – e elas não precisariam necessariamente ser tratadas nessa ordem – é a falta de políticas públicas voltadas para os locais sem saneamento básico, ambiente facilitador da disseminação da esquitossomose. Enfim, ao falar de ciência para cientistas e não cientistas é interessante se perguntar: o que é socialmente relevante e politicamente pertinente?

Rodrigo Cunha é linguista, editor da ComCiência, pesquisador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp e doutor em linguística aplicada pela mesma universidade.

Referências bibliográficas

Ayala, Francisco J. “Introductory essay: the case for scientific literacy”. Em World Science Report, Unesco, 1996.
Chassot, Attico. “Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social”. Em Revista Brasileira de Educação v. 8, n. 22, jan/abr 2003.
Kleiman, Angela B. “Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola”. Em Kleiman, Angela B. (org). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
Laugksch, Rüdiger C. “Scientific literacy: a conceptual overview”. Science Education, v. 84, n. 1, 2000.
Santos, Wildson L. P. dos. “Educação científica na perspectiva de letramento como prática social: funções, princípios e desafios”. Em Revista Brasileira de Educação v. 12, n. 36, set/dez 2007.
Shen, Benjamin S. P. “Science literacy”. Em American Scientist, v. 63, n. 3, mai/jun 1975.
Soares, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.