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Reportagem
Cultura científica: alguns caminhos
(e descaminhos) de dentro dos portões da escola
Por Meghie Rodrigues
10/10/2012
Crianças e cientistas têm mais que a curiosidade em comum: traçam inferências a partir do raciocínio lógico e usam seu poder imaginativo para resolver problemas. As crianças o fazem intuitivamente; já os adultos, calculadamente. A ponte entre intuição e cálculo pode ser feita através da informação – e, principalmente, formação – científica. O contato direto com esse universo, oferecido por museus e feiras de ciência, importantes pela sua componente lúdica, deve ser aliado ao “habituar-se a pensar em termos de problemas, dúvidas, questões a ser investigadas”, lembra Heloiza Barbosa, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Para ela, a escola tem um papel crucial na construção deste saber científico, mas ainda tem um longo caminho a percorrer.

Segundo o físico Jorge Megid Neto, membro-fundador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Formação de Professores da Área de Ciências (Formar-Ciências) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o ensino formal precisa explorar as potencialidades do conhecimento científico e despertar a curiosidade das crianças. “Principalmente porque o ‘conteudismo’ está voltando para os currículos escolares – o que vai na contramão, por exemplo, do que acontecia nas décadas de 1960 e 1970, quando a prática de laboratório era mais frequente” e o volume de informações não chegava, ainda, à avalanche que se tem hoje. E adiciona que “isso é fácil de perceber, por exemplo, pelos livros didáticos. Os livros aprovados pelo MEC (Ministério da Educação), considerados boas coleções, estão aumentando o número de páginas, do ensino fundamental ao médio, numa quantidade de assuntos que é impossível trabalhar nas aulas normais”, pondera. Ele lembra de ter calculado, há alguns anos, a quantidade média de conteúdo que deveria ser ministrado por aula – e chegou à conclusão de que um bom livro de física de ensino médio tinha entre 10 e 15 páginas de conteúdo por aula de 45 minutos. “A ideia que se passa ao professor é a de que ele, de algum modo, tem que arranjar uma forma de cumprir com tudo isso”. Uma saída para que tanto conteúdo não acabe por ter efeitos negativos na formação escolar é estimular o retorno às atividades práticas. “Mas para ter tempo de fazer atividades experimentais, seria preciso reduzir, no mínimo, 50% dos assuntos tratados pelos livros, em qualquer nível da educação básica”, sugere. Dessa forma, ele acredita, o aluno teria a mesma formação conceitual, mas uma formação crítica muito melhor com os experimentos, trabalhos de campo e debates.

Cláudia Glavam Duarte, professora de metodologia de ensino no curso de licenciatura em educação do campo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), defende ainda a inclusão do conhecimento extra-escolar, que o aluno traz do ambiente à sua volta, que seria usado para contextualizar o que se aprende em sala de aula, considerando várias formas de se chegar a uma mesma resposta, por meio da criatividade. A pesquisadora critica a forma homogeneizante com que a escola trata os vários níveis e as formas de saber. Cláudia, que trabalha com etnomatemática há mais de dez anos e coordena o programa Escola Ativa em Santa Catarina, cita uma pesquisa realizada por sua aluna com crianças que vendiam bala de goma num semáforo da cidade de Novo Hamburgo (RS). Ela acompanhou as crianças por seis meses e viu que elas faziam cálculos de troco e vendiam bala com grande rapidez de raciocínio. “Criamos problemas de matemática para aquelas crianças com aqueles mesmos valores, só que em outro contexto (na escola). Elas erraram”, descreve. Surge, a partir daí o questionamento: por que as crianças conseguem resolver esses problemas fora da sala de aula, mas não dentro dela? “Na rua, o que vale é a oralidade, é o pensar de cabeça. Uma pessoa, fora da escola, soma primeiro as centenas, depois as dezenas e por último, as unidades, e isso diverge do que é ensinado na escola. Assim, a criança aprende que a matemática que ela faz na rua não é matemática, é outra coisa”, explica Cláudia.

Ciência como cultura

Utilizar a criatividade, contexto e conhecimento prévio dos alunos para intuir e chegar a conclusões é importante, mas especialistas apontam que é necessário cuidado para não se cair no lado oposto do espectro: o utilitarismo. “Senão acaba-se trabalhando apenas aquilo que tem um significado imediato. É um ponto de partida, mas é preciso avançar. Os olhos dos alunos precisam brilhar também nas generalizações”, conta Cláudia Duarte. Ela também alerta que é preciso equilíbrio entre conteúdo, contexto e lúdico, bem como parar de pensar escola, ciência e sociedade como dualidades. “Precisamos nos dar conta de que a contemporaneidade não é mais da ordem do dicotômico. A nossa própria identidade é múltipla. A escola não é apenas um espaço de socialização, embora o seja também. Escola ainda é o lugar para se ensinar. Como isso vai ser feito é um desafio”, ressalta. O desafio do “como fazer” pode, ainda, ser respondido à altura se explorado o potencial político da escola e do ensino – e as diversas disciplinas, tanto quanto as ciências naturais, podem ser usadas como veículo de formação crítica. Nesse ponto, Megid e Duarte estão completamente de acordo. “A escola tem um grande potencial para fomentar o debate sobre o engendramento entre ciência, política e economia. Mas para explorá-lo, teríamos que trabalhar um outro tipo de ciência – mais lúdica nos anos iniciais da formação e mais crítica conforme os níveis avançam – mostrando, desde o início, que os alunos são produtores e podem debater e fazer observações, conseguem divergências e consensos sempre que possível. Esses processos de formação política podem se dar em situações simples e a ciência pode contribuir para isso”, defende o professor Jorge Megid. Cláudia Duarte, por sua vez, enfatiza que “é preciso trazer a inventividade do aluno para a sala de aula” e que o professor não mais pode ter medo de dizer que não sabe e, assim, ser capaz de construir o conhecimento junto aos alunos, não apenas transmiti-lo.

Uma visão mais próxima da ciência tem grande importância para “desmitificar a ideia de que está num lugar abstrato, neutro, transcendental, como se só alguns, os mais dotados intelectualmente, pudessem acessar este conhecimento”, segundo Duarte, ou, como adiciona Megid, que “é sempre maravilhosa, sempre pirotécnica, uma caixa de surpresas que só serve para o prazer: não tem roteiro, sistemática, mitifica e deturpa a visão do cientista – que é estereotipado como alguém muito especial”. Deposta de seu pedestal, a ciência teria mais possibilidade de ser vista como a construção social que é e não como conhecimento descontextualizado que precisa ser apreendido para passar de ano.

Uma rota alternativa: a etnomatemática

É um programa de pesquisa que conta com estudiosos em todo o Brasil e no exterior e que teve início na década de 1970, se valendo da mistura entre ciência, as ideias de Paulo Freire e o conhecimento popular a partir do trabalho de Ubiratan d’Ambrosio (professor emérito de matemática da Unicamp). “D’Ambrosio começou a perceber que em cada lugar que ia havia racionalidades matemáticas diferentes. A partir dali, percebeu a intersecção entre matemática e cultura – questionando, assim, o valor abstrato de ‘universal’ da disciplina”, explica Cláudia Duarte.

A pesquisadora da UFSC demonstrou também existir, a partir de pesquisa sobre etnomatemática, várias matemáticas. “Agora avançamos um pouco na discussão mais política, de afirmar que a matemática acadêmica não é única, não é neutra, que é eurocêntrica e masculina – o que tem apontado também para as relações de gênero”, conta. E acrescenta que não existe um conceito homogêneo de etnomatemática porque há uma grande quantidade de grupos de estudo no mundo todo. “O interessante é tentar entender a racionalidade matemática de diferentes grupos culturais – descartando a possibilidade de existência de uma única matemática: a acadêmica. Ela é, então, vista como uma das alternativas possíveis”, ressalta.

Cláudia aponta que o ensino formal precisa considerar os conhecimentos populares e exemplifica: “Mariana Kawall, uma pesquisadora que esteve no Parque Xingu, descobriu que entre as tribos Kĩsêdjê, Kayabi e Juruna subtrair não significa ter menos: lá, se um índio tem, por exemplo, dez peixes, e dá três a um amigo, não considera que fica com sete peixes, mas treze. Ele conta que os três que deu vão ser devolvidos em dobro, logo, ele teria 7+6=13”.

E ressalta que, assim como é possível que várias culturas convivam lado a lado, também as várias formas de fazer matemática são conciliáveis e abrem espaços para quem domina as diversas linguagens, dando mais mobilidade e repertório para dialogar com pessoas de raízes culturais diversas. E conclui: “usando um termo de Boaventura de Sousa Santos, exterminar essas outras formas de raciocínio seria um ‘epistemicídio’”.