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Artigo
Probabilidade geométrica: história, paradoxos e rigor
Por Claudio Possani
10/11/2012

O termo “probabilidade geométrica” se refere à área da matemática que estuda problemas que, ao mesmo tempo, envolvem o conceito de probabilidade e situações de caráter geométrico. Neste artigo, vamos mostrar a evolução dessa área da matemática desde sua fundação no século XVIII, as dificuldades que se apresentaram ao seu desenvolvimento, a crise gerada pelo aparecimento do Paradoxo de Bertrand, e como o rigor da matemática foi incorporado ao corpo da teoria levando à criação de um conjunto de resultados e teoremas extremamente elegantes e ricos em aplicações.

Origens

É consenso entre os estudiosos da Teoria de Probabilidade Geométrica que o seu texto fundador é o “Ensaio de aritmética moral”, de Georges-Louis Leclerc, conhecido como Conde de Buffon, de 1777.

Buffon foi um grande iluminista francês do século XVIII, muito reconhecido como naturalista e autor da monumental obra História natural, da qual o “Ensaio” é um apêndice. Buffon foi admitido na Academia de Ciências de Paris com um trabalho sobre probabilidade e geometria, do qual não sobreviveram cópias. Aparentemente, o “Ensaio sobre aritmética moral” recupera partes daquele trabalho anterior.

O título do ensaio merece um comentário: por que chamá-lo de “aritmética moral”? Na verdade, o texto dedica-se a analisar situações “reais” em que uma pessoa possa se valer de conhecimentos matemáticos para tomar decisões “acertadas”. Buffon se preocupa em analisar certas situações com caráter de jogo entre duas ou mais pessoas e verifica em que condições as chances de vitória dos participantes são idênticas. Nessas condições, o jogo é “moral” (ou honesto).

O conteúdo do “Ensaio de aritmética moral”

Nesse trabalho seminal, Buffon começa com considerações sobre uso de matemática elementar em situações do cotidiano. São análises simples e pouco profundas. O primeiro tema profundo tratado no texto é o chamado Paradoxo de São Petersburgo.

Imaginemos um jogo entre duas pessoas com as seguintes regras:

•  O jogador “A” paga uma taxa para entrar no jogo. Em seguida, joga uma moeda e se sair cara na primeira tentativa ele ganha do jogador “B” o equivalente a um real.

•  Se na primeira tentativa não sair cara, o jogador “A” joga a moeda novamente e se obtiver cara no segundo lançamento ganha de “B” o equivalente a 2 reais.

•  Se nas duas primeiras não saiu cara, o jogador “A” joga novamente e se obtiver cara na terceira tentativa ganha 4 reais.

•  O jogo segue dessa maneira: “A” vai jogar a moeda até obter cara. Quanto mais lançamentos ele tiver que fazer, maior será seu prêmio: 1, 2, 4, 8, 16 reais e assim por diante. “A” ganhará sempre.

A pergunta é: quanto vale a pena o jogador apostar para entrar no jogo? A resposta clássica é obtida calculando-se o valor esperado de ganho do jogador “A”. (Isso é definido como a soma das probabilidades de ganho em cada etapa multiplicada pelo valor ganho naquela etapa: E= 1/2x1 + 1/4x2 +1/8x4 +1/16x8 +...) Ocorre que o valor esperado é infinito!

Ora, algo está errado aqui. Ninguém apostaria uma enorme fortuna para jogar esse jogo. Buffon trata o problema nos mesmos termos que os matemáticos contemporâneos. Não há solução lógica ao paradoxo. A melhor análise, em minha opinião, é considerar que modelos matemáticos têm aplicação limitada. O conceito de valor esperado não é adequado para situações em que os valores considerados são infinitos.

O teorema pelo qual o “Ensaio” é sempre lembrado é o problema das agulhas, inspirado em jogos de salão comumente praticados pela nobreza francesa da época. Considera-se um tipo de piso, que pode ser de tábuas paralelas, lajotas quadradas ou com outro formato e, nesse piso, jogamos uma agulha (dessas de tricô, crochê ou de cabelo) e perguntamos qual é a chance dela parar exatamente dentro de uma tábua ou lajota sem cruzar uma linha divisória.

Após resolver (ele só apresenta os resultados, sem as contas) os casos de lajotas quadradas, triangulares, hexagonais e outras, que, na verdade são de solução direta, Buffon aborda o caso das tábuas paralelas de largura “ d ”, onde se joga uma agulha de comprimento “ l ”. A probabilidade de que a agulha jogada aleatoriamente não cruze uma linha divisória é, surpreendentemente, dada por: p= 2 l/ p d.

Também aqui Buffon não finaliza as contas, deixando-as indicadas. A ênfase dada por Buffon nesse trecho, como no resto do livro, estava na equidade do jogo. Assim, ele recomenda aos jogadores que observem os tamanhos relativos da agulha e da largura das tábuas: os jogadores terão chances iguais de ganhar se a relação entre o comprimento da agulha “ l ” e a largura das tábuas, “ d ”, for aproximadamente igual a ¾.

Vinte e cinco anos após a publicação desse trabalho, Laplace retomou essa fórmula e fez a seguinte abordagem: podemos obter “p” de maneira experimental jogando uma agulha muitas vezes e anotando o número de sucessos e fracassos. O valor de “p” será o quociente entre o número de sucessos (não cruzar as divisórias) e o número total de lançamentos. Conhecendo-se “p”, o valor de p pode ser obtido como sendo 2 l/ p d. Este se revelou um método muito acurado para calcular valores aproximados de p.

O Paradoxo de Bertrand

No final do século XIX, a Teoria das Probabilidades havia percorrido um longo caminho e já haviam sido publicados vários livros fundamentais sobre o assunto. Em 1989, Joseph Bertrand, um matemático francês, publicou o livro Calcul dês probabilités, obra de referência para o desenvolvimento do tema.

Nesse livro, Bertrand analisa situações em que o espaço amostral de um determinado experimento é constituído por infinitos elementos e obtém alguns paradoxos muito interessantes. Vamos nos fixar sobre um deles, conhecido como o Paradoxo de Bertrand.

Considere uma circunferência de raio fixado e sobre ela escolha aleatoriamente uma corda (segmento que liga dois pontos quaisquer da circunferência). Determine a probabilidade que o comprimento dessa corda seja maior do que o lado do triângulo equilátero inscrito nessa circunferência.

Bertrand apresenta três diferentes soluções desse problema, as três claras e “corretas”, levando a três respostas diferentes! Qual resposta está certa?

Vamos mostrar as três soluções.

•  Na primeira solução, escolhemos um ponto ao acaso sobre a circunferência e em seguida escolhemos um segundo ponto. Como é fácil ver na figura 1 abaixo, existem três arcos de igual tamanho sobre a circunferência e, se o segundo ponto estiver sobre um deles, o comprimento da corda será maior do que o do triângulo; se estiver sobre os outros dois, será menor. Logo, a probabilidade pedida é igual a 1/3.

•  Na segunda solução, escolhemos um ponto e em seguida observamos o raio por ele determinado. Consideremos as cordas perpendiculares a esse raio. Existem duas regiões nesse raio, uma central, de comprimento metade do raio, tal que, se a corda cortar o raio nessa região, seu comprimento será maior do que o lado do triângulo equilátero inscrito; e se a corda cortar na outra região de igual tamanho, seu comprimento será menor. Concluímos que a probabilidade procurada é ½. Veja figura 2.

•  A terceira solução leva em conta uma ideia sutil: toda corda pode ser parametrizada pelo seu ponto médio, isto é, existe uma correspondência um a um entre cordas e pontos médios. Veja figura 3. A região central formada pelo interior de uma circunferência de raio com metade do tamanho do raio original tem a propriedade de que, se o ponto médio da corda estiver nela, o comprimento será maior do que o lado do triângulo. Como seu raio é metade do raio original, sua área é um ¼ da área da circunferência original. Assim, a probabilidade pedida é ¼.


http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/matematica/ar_possani/img1.jpg
Figura 1                                               Figura 2                                             Figura 3

Bertrand, diante desse paradoxo, postulou que, das soluções acima, nenhuma estava correta e nenhuma estava errada. O problema é que não estava bem posto. Situações em que o espaço amostral possui infinitos elementos não poderiam ser consideradas na Teoria de Probabilidades.

Na virada do século XIX para o XX, o conceito de medida foi introduzido para trazer o rigor da matemática para o estudo de probabilidades. Os probabilistas contemporâneos diriam que as três soluções estão corretas, cada uma correspondendo à escolha de uma medida diferente no espaço de probabilidades. Já a geometria do século XX acrescenta um ingrediente a mais: das três medidas acima, apenas a segunda possui uma propriedade geométrica específica, a de ser invariante pela ação do grupo de isometrias do plano.

Essa medida se revela mais rica em aplicações geométricas e possui consequências em outras áreas da ciência. Uma aplicação notável, devida a Crofton, é que a medida do conjunto de retas que intercepta uma curva fechada convexa é igual ao comprimento da curva. Assim, podemos concluir que dadas duas curvas fechadas convexas a e ?, com a contida em ?, então a probabilidade que uma reta aleatória (segundo esta medida!) do plano que encontra ?, também encontre a ?, é dada pelo quociente de seus perímetros: L( a )/ L( ? ).

Claudio Possani (cpossani@ime.usp.br) é professor do Departamento de Matemática, no Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (USP).

Referências bibliográficas

Bertrand, J.. Calcul de Probabilités. Gauthier-Villars et Fils, 1889
Buffon. Essai d'Arithmetique morale. 1777
Crofton, M. “On the theory of local probability, applied to straight lines drawn at random in a plane, the methods used being also extended to the proof of certain new theorems in the integral calculus”. Philosofical Transactions of the Royal Society of London, n. 158, 1868.
Roger, J. Buffon. Cornel University Press, 1989.
Seneta, E; Parshall, K. H; Jongmans, F. “ Nineteenth -century developments in geometric probability: J.J.Silvester, M. W. Crofton, J.-É. Barbier, and J. Bertrand”. Archives for the history of exact sciences, n. 55, 2001.