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Reportagem
Transição nutricional: da desnutrição à obesidade
Por Cintia Cavalcanti
10/02/2013

No Brasil, o problema do déficit na dieta está drasticamente sendo reposto pelo excesso. A rápida transição socioeconômica que atravessa o país parece ser o principal fator a alavancar a mudança nos hábitos alimentares em todos os segmentos da sociedade, atingindo até mesmo os habitantes de áreas rurais em localidades geograficamente mais isoladas. Dados do último levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o estado do Amazonas, realizado no período de 2008-2009, comparados a aqueles do levantamento anterior (2002-2003), mostraram uma queda significaticativa no consumo de farinha de mandioca e peixes - alimentos tradicionalmente consumidos, especialmente pela população ribeirinha - e um aumento no consumo de alimentos como arroz, feijão e carne e alimentos processados em geral. “Nas populações rurais mais isoladas, as consequências dessa mudança vão desde o surgimento de problemas de saúde até a perda conhecimento sobre o uso e manejo dos recursos naturais”, afirma o biólogo Rodrigo de Jesus Silva.

“De uma forma geral, independente da região geográfica amostrada, a transição alimentar no Brasil está ocorrendo no sentido da urbanização para o meio rural, onde a economia de consumo e a economia de excedente estão dando lugar para a economia de mercado”, explica Gabriela Nardotto, bióloga e integrante do projeto “ Mapeamento isotópico da dieta no Brasil – dos núcleos mais isolados aos grandes centros”. A pesquisa, coordenada pelo engenheiro agrônomo Luiz Martinelli, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura, da Universidade de São Paulo (USP), pretende determinar o quanto o padrão alimentar de determinada população está vinculado ao seu real acesso à economia de mercado e ao processo de urbanização, tendo como foco  principal as comunidades amazônicas.

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Peixes e carne da caça em comunidade amazônica. Fonte: Cintia Cavalcanti

Gabriela, principal autora do artigo publicado no American Journal of Human Biology, em maio de 2011, explica que, em comunidades ao longo do rio Solimões, na Amazônia, os principais fatores a contribuir no processo de transição nutricional parecem estar relacionados ao aumento de papel-moeda oriundo de diferentes programas sociais nas mãos dos ribeirinhos, associado a componentes de influência cultural, ocasionados, particularmente, pela entrada da televisão nas casas dessas comunidades. “Eles acabam se identificando com os produtos valorizados no meio urbano, como a diversidade de comida processada”, coloca a bióloga. Embora distantes das cidades, a influência da sociedade urbano-industrial acaba por se efetivar através da compra de alimentos processados e frango congelado proveniente do Sul e Sudeste, que chegam às comunidades transportados por barcos, substituindo a alimentação tradicional a base de peixes e farinha de mandioca. “Obter e preparar o peixe dá muito mais trabalho do que o frango, que já chega congelado e pronto para ser usado. Além disso, na época das cheias dos rios, sai mais barato comprar o frango congelado do que pescar”, esclarece a pesquisadora.

Nesse sentido, Silva, principal autor do artigo “Ensaio sobre transição alimentar e desenvolvimento em populações caboclas da Amazônia”, publicado na revista Segurança Alimentar e Nutricional, no primeiro semestre de 2012, explica que o consumo de alimentos industrializados pelos caboclos amazônicos atua de modo a desvinculá-los de todo seu universo biocultural, a medida que as práticas de subsistência como caça, pesca, plantio e colheita de mandioca deixam de ser atividades cotidianas, com a consequente perda de conhecimentos a elas associados. A melhoria do estatus socioeconômico se deve a maior inserção desses ribeirinhos na economia de mercado, em parte, por meio da comercialização de produtos locais e, em parte por conta do acesso a programas sociais, como Bolsa Família, Bolsa Floresta e Bolsa Defeso. “Dependendo de como a renda é gerada, esse fator pode ser um complicador”, afirma Silva ao colocar que políticas assistencialistas chegam a essas comunidades como garantia de renda, sem a necessidade do desenvolvimento de atividades, sejam elas de subsistência ou estejam relacionadas ao manejo dos recursos naturais locais para fins comerciais.

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Elaboração de farinha de mandioca por ribeirinho. Fonte: Alexandra C. Freitas

Cada vez mais, os ribeirinhos estão tendo acesso a uma maior variedade de produtos industrializados, muitos dos quais enquadrados como produtos ultra-processados, tipo fast food, por outro lado, quanto mais renda disponível, maior é a penetração desse tipo de alimento nessas populações. A s implicações deste novo modo de vida, impulsionado pela substituição de alimentos produzidos ou obtidos localmente por produtos industrializados, acaba levando ao sedentarismo, uma vez que os ribeirinhos não precisam mais gastar energia física para obter seu alimento diário. Somado a isso, há um expressivo aumento no consumo de gorduras, açucares e sal levando a uma maior ocorrência de problemas de saúde relacionados ao sobrepeso e obesidade, como pressão arterial elevada, diabetes e colesterol alto. “ O grande desafio está em conciliar essa nova renda que está entrando nessas comunidades à educação, mais especificamente com relação à prevenção de doenças relacionadas ao abandono progressivo dos alimentos locais e a adoção de alimentos processados”, conclui Gabriela.

Reflexos de um quadro mundial

O caso brasileiro não é exceção. Registros históricos de países desenvolvidos indicam que a dieta humana foi dramaticamente alterada a partir do advento da Revolução Industrial, sendo que altura e peso aumentaram progressivamente, particularmente durante o século XIX. A medida que as populações destes países alcançaram seu máximo potencial genético para o crescimento linear, as mesmas começaram a ganhar mais peso que altura, com o consequente aumento nos índices de prevalência da obesidade. Foi, então, no início do século XX, que a obesidade se tornou um problema de saúde pública, originalmente em populações dos Estados Unidos e da Europa.

Segundo Ana Paula Tardido e Mário Cícero Falcão, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), nesses últimos dois séculos, o processo de globalização, bem como, a expansão das economias de mercado ocasionou mudanças ainda mais drásticas na alimentação, substituindo o alimento produzido localmente por produtos cada vez mais processados e industrializados. A constatação dos autores, publicada no artigo “O impacto da modernização na transição nutricional e obesidade” ( Revista Brasileira de Nutrição Clínica, Vol.21, 2006) responsabiliza a difusão do chamado “estilo de vida ocidental contemporâneo” – caracterizado por baixos níveis de atividade física – como a maior contribuição na alteração da dinâmica energética estabelecida pelos nossos ancestrais. Como consequência, a obesidade deixou de ser um problema centralizado em alguns países desenvolvidos, sendo reconhecida formalmente em 1997 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma epidemia de natureza global.

Embora poucos países em desenvolvimento possuam dados de levantamentos nacionalmente representativos para avaliar tendências ao logo do tempo, nas últimas duas décadas, dados disponíveis mostram que o crescimento mais acentuado na obesidade tem ocorrido nos países em desenvolvimento, como o México, a China e o Brasil. Conforme aponta o relatório intitulado “ Obesity: preventing and managing the global epidemic”, elaborado pela OMS, em 2000, muitos dos países em desenvolvimento experienciam a coexistência da obesidade e da desnutrição, em um processo denominado transição nutricional, que pode ser descrito pela mudança nos padrões nutricionais através da modificação da dieta, basicamente através do aumento da ingestão de gorduras saturadas, açúcares, alimentos refinados e de origem animal e pela redução do consumo de carboidratos complexos e fibras.

Barry Popkin e Penny Gordon-Larsen explicam através do artigo “Nutrition transition: worldwide obesity dynamics and their determinants”, publicado no International Journal of Obesity, em 2004, que existem dois processos históricos que precedem ou que ocorrem simultaneamente à transição nutricional estando estreitamente relacionados a ela: a transição demográfica e epidemiológica. A primeira consiste na mudança de um padrão de alta fertilidade e mortalidade de determinada população para um padrão de baixa fertilidade e mortalidade, típico de países industrializados modernos. Já a transição epidemiológica pode ser descrita como uma mudança de um padrão de alta prevalência de doenças infecciosas – associadas à má-nutrição, inanição periódica e falta de saneamento básico – para um padrão de alta prevalência de doenças crônicas degenerativas – associadas ao estilo de vida urbano-industrial.

Pode-se afirmar que as mudanças compreendidas pelos processos de transição nutricional, demográfica e epidemiológica são conduzidas por um conjunto de fatores que incluem urbanização, crescimento econômico, mudanças técnicas e culturais, apresentando peculiaridades em cada região ou país em que ocorrem. Embora, os padrões compostos por esses fatores possam ser pensados como desenvolvimentos históricos, tanto os padrões mais recentes, quanto os mais antigos, não estão restritos ao período no qual emergiram, podendo continuar a caracterizar certas populações em determinadas localizações geográficas e condições socioeconômicas. Dessa maneira, diversos estudos indicam que, de modo geral, até recentemente, a população rural adulta que ainda mantém um estilo de vida tradicional nos países em desenvolvimento ganhou pouco ou nenhum peso com o passar do tempo. Esse é o caso, por exemplo, de populações remanescentes de caçadores-coletores, como o povo San no norte de Botsuana na África.

Ainda que tais populações tenham mantido seus hábitos alimentares praticamente inalterados até os dias de hoje em função de seu possível isolamento geográfico e falta de contato com as cidades, forças como a globalização e a urbanização têm se infiltrado nos lugares mais remotos, numa velocidade cada vez maior. Como coloca Silva, repensar o desenvolvimento sob o viés da alimentação deve se tornar imperativo, por considerar o seu poder de abrangência para o entendimento das relações de produção, de uso dos recursos naturais, e das suas consequências para o consumo humano.