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Reportagem
Algumas observações sobre plágio, direito e autoria
Por Ricardo Manini
10/04/2013

Ao compor “Pierre Menard, autor do Quixote”, o escritor argentino Jorge Luis Borges se refere ao grande projeto da personagem principal. Projeto de repetir, linha por linha, palavra por palavra, e, assim, estruturar, de novo, o “Quixote”, de Miguel de Cervantes. Não tecer um novo “Quixote”, mas o próprio “Quixote”, após enorme esforço e experiência intelectual. Diz Borges, em ironia ímpar:

“O texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é infinitamente mais rico.”

Assinala, a seguir:

“Constitui uma revelação cotejar o Dom Quixote de Menard com o de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu:

‘...A verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.’

Redigida pelo ‘engenho leigo’ Cervantes, essa enumeração é mero elogio retórico da história. Menard, em compensação, escreve:

‘...a verdade, cuja mãe é a história, êmula do tempo, depósito das ações, testemunha do passado, exemplo e aviso do presente, advertência do futuro.’”

Ao prosseguir o conto, presente na antologia Ficções, Borges comenta que existe nessa reflexão de Menard, comparada à de Cervantes, um “vívido contraste de estilos”.


O escritor norte-americano Quentin Rowan não teve seu romance de estreia, Assassin of secrets, lançado no Brasil. O escritor norte-americano Quentin Rowan não teve seu romance de estreia, Assassin of secrets, exatamente lançado. O escritor norte-americano Quentin Rowan, afinal, talvez não tivesse um romance de estreia.

A Little, Brown and Company, editora de Boston com a qual o escritor tinha um contrato para a publicação de dois livros, rescindiu o acordo. Demandou ao autor que pagasse pelos custos de produção dos exemplares já impressos. Solicitou ainda que as livrarias americanas devolvessem os volumes, uma semana após o lançamento, em novembro de 2011.

A Little, Brown comunicou ao público, em nota, que o primeiro livro de Rowan, que escrevia sob a alcunha de Q. R. Markham, era composto por uma “ampla variedade de trechos de romances de espionagem clássicos e contemporâneos”.

Até então, o livro fora saudado como um clássico instantâneo por algumas revistas e ganhara resenhas elogiosas na imprensa americana. Foi em um fórum de internet, especializado na discussão de romances de espionagem, que uma pessoa alertou que já lera trechos muito parecidos em outro livro.

O site Reluctant Habits investigou a história. Obteve uma cópia de Assassin of secrets e contou 34 trechos parecidos com outros livros, linha por linha, palavra por palavra, com mínimas alterações, nas 35 primeiras páginas.

Quentin Rowan despertou de novo a curiosidade da imprensa norte-americana. A consagrada revista The New Yorker fez uma longa matéria com Rowan. Nela, o personagem principal da história afirma que não “estava fazendo uma brincadeira” e que “nos últimos 15 anos temia ser descoberto como um plagiador”. E compara suas ações com atos de cleptomania, citando o livro Stolen words, de Thomas Mallon, que investiga o plágio e faz a mesma comparação.


A cleptomania consiste em um distúrbio sobre o qual existe pouco conhecimento. No artigo, “Cleptomania: características clínicas e tratamento”, Jon Grant e Brian Odlaug, médicos da Universidade de Chicago, definem a cleptomania como um transtorno cuja principal característica é o “furto repetitivo e incontrolável de itens que são de pequena utilidade para a pessoa acometida”.

A associação entre a cleptomania e o plágio é antiga. Ao menos desde 1936 existem textos que relacionam o transtorno ao ato de plagiar. Contudo, é importante salientar que, na maioria dos casos, o plágio é intencional, no que difere de forma substantiva da cleptomania, um distúrbio psíquico.

Em tese de doutorado, intitulada “Intertextualidade e plágio: questões de linguagem e autoria”, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp em 1996, Lilian Christofe assinala que o plágio é também um problema jurídico. Diz ela: “Não há como falar em plágio sem, de alguma forma, falar de consciência e intenção, noções resultantes do sistema jurídico-político de poder, que vê o sujeito como fonte de seu discurso, como seu responsável”.

Mais adiante, Christofe afirma que não é possível considerar o plágio uma ação legítima. Em primeiro lugar, porque o ato de plagiar oculta o texto anterior, além de retirar qualquer menção ao autor original. Ademais, o plágio está baseado em dizer o que já foi dito, tanto em termos formais quanto de conteúdo.

“Nos casos de plágio”, ela escreve, “as alterações feitas sobre o texto são mínimas, elementares”. E emenda: “O plagiário não altera substancialmente a forma do texto que toma como seu porque sabe que não é seu produtor, apenas o seu vendedor”.

Conforme Christofe assinala, e remete a fonte ao livro de João Carlos Teixeira Gomes sobre Gregório de Matos (Gregório de Matos, o Boca de Brasa), algo que poderia ser considerado plágio atualmente é a quase reprodução de um famoso soneto de Camões pelo Abade de Jazente, cerca de 200 anos depois.

Enquanto Camões começa o seu soneto com o verso “Amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente”, o Abade escreve: “Amor é um arder, que não se sente, é ferida que dói, e não tem cura”. Todo o soneto do Abade de Jazente segue de perto o trabalho clássico de Camões.

Na Constituição Federal brasileira não existe nenhuma menção à palavra plágio. No artigo 5º da mesma Carta Magna, que dispõe sobre direitos fundamentais da pessoa humana, contudo, o inciso XXVII protege os autores de qualquer obra, o que inclui trabalhos literários.

A redação literal do dispositivo afirma que “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”.

Alberto Fett, mestre em direito pela UFRGS e especialista em direito autoral, diz que “alguns artigos de natureza infraconstitucional também protegem o autor de uma obra, como os artigos 101 a 110 da Lei dos Direitos Autorais e o artigo 184 do Código Penal”.

Por outro lado, existem casos em que, segundo Fett, poderá existir utilização da obra por terceiros contra os quais o autor original não poderá se insurgir. “Na própria Lei Autoral pátria existem cláusulas que são limitações aos direitos autorais”, afirma o estudioso.

Para Fett, um dos melhores exemplos é o artigo 46 dessa lei. A redação do artigo, em seu inciso III, afirma que “não constitui ofensa aos direitos autorais a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra”.

Desse modo, é bastante importante, especialmente em um contexto no qual a tecnologia propicia enorme facilidade de disseminação de textos e do ato de copiar, que o nome do autor e a origem da obra sejam citados. Caso não exista essa citação, mas ocorra cópia, é possível que se trate de um caso de plágio.

Outro dispositivo interessante trazido pela lei é o inciso VIII. Nele, lê-se que não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja objetivo principal de obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores”.

Como se pode notar, o que é um legítimo interesse do autor não está especificado. Cabe a quem julgar identificar esses interesses dizer se ocorreu ou não infração ao direito do autor.

De acordo com Fett, “ essa flexibilização é necessária para uma ponderada análise da ocorrência de plágio no direito autoral, na medida em que, atualmente, com mudanças promovidas tão rapidamente em virtude da tecnologia, procura-se evitar o engessamento do direito”.

O estudioso menciona ainda que é raro um caso de plágio ser julgado em tribunais brasileiros. “Os casos de plágio no Brasil, embora sejam numerosos, não chegam com frequência aos tribunais”, afirma.

Fett realizou uma pesquisa na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e encontrou apenas cinco ocorrências de casos julgados relativos a plágio. “Nenhuma delas é sobre plágio literário. Há três sobre plágio musical, uma sobre plágio arquitetônico e uma quinta sobre plágio acadêmico”.

A mesma pesquisa foi feita também em relação à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça. “Havia dez menções a casos relativos a plágio e apenas uma delas se referia a um plágio literário”.

Parte do que é visto hoje como plágio está relacionado à ausência da citação do autor, sujeito original da criação de uma obra literária. Por original, entenda-se não apenas a fonte de origem, mas também de um estilo, de um modo de expor. O conceito de autor caminha ao lado do conceito de originalidade, elemento fundamental nas artes em geral. Se um plágio é constatado, identifica-se também que o texto do plagiador não é inédito, nem traz inovações substantivas.

Para Paulo Franchetti, crítico literário e professor do Instituto de Estudos de Linguagem da Unicamp, é no período romântico que a originalidade começa a ser valorizada de outro modo.

“A originalidade foi sempre um elemento importante na história da literatura, mas no Romantismo há outra visão sobre o tema”, explica. “Isso ocorre porque p arte importante da estética romântica é postular a ligação íntima da vida e da obra, com a consequente valorização da singularidade de uma vida”.

A valorização da singularidade da vida está presente, por exemplo, nos primeiros parágrafos de Confissões, escrito por Jean-Jacques Rousseau. É ali que o filósofo iluminista francês afirma

Conheço meu coração e conheço os homens. Não sou da mesma massa daqueles com quem lidei; ouso crer que não sou feito como os outros. Mesmo que não tenha maior mérito, pelo menos sou diferente”.

Outra razão para a originalidade começar a ser vista de outro modo no período romântico é que a época do Romantismo coincide com a invenção da literatura como bem de consumo. A discussão a respeito da remuneração do autor e da propriedade intelectual toma corpo nesse momento. Ao mesmo tempo, o cânone clássico é dissolvido.

“Sem o quadro prescritivo do cânone, a justificação de uma obra passa a se dar por meio do apelo à fidelidade ao sentimento e à observação do real”, explica Franchetti.

É lúcido observar que o plágio literário, no sentido de cópia de outra obra, não se adéqua bem à fidelidade do sentimento, visto ser esse um elemento personalíssimo, dificilmente estendível para outro observador.

Afirma Franchetti: “O sentido do ato e da forma de copiar – ou melhor, de se apropriar dos textos de outros – mudou muito ao longo da história. Na China clássica, por exemplo, se você quisesse citar um texto canônico no interior do seu texto não tinha de colocar nenhuma marca como as nossas aspas e nem explicar de onde tirou a frase ou parágrafo ou estrofe. Seria um insulto à cultura e à inteligência do leitor. É um exemplo extremado, mas em vários períodos da nossa história percebemos comportamento semelhante”.

Outros exemplos

Rebecca, dirigido por Alfred Hitchcock em 1940, é uma adaptação para o cinema de um romance homônimo escrito por Daphne du Maurier e publicado dois anos antes.

A história de Rebecca se parece muito com a de um romance de Carolina Nabuco, A sucessora, de 1934. Ambos trazem história e personagens semelhantes.

Em Oito décadas, Carolina Nabuco narra as suas memórias. Conta que ela própria traduziu A sucessora para o inglês e enviou o livro para uma editora em Nova York.

A biógrafa de Maurier, Nina Auerbach, afirma em Daphne du Maurier, haunted heiress, que a biografada leu com muita atenção A sucessora. Não houve, contudo, comprovação alguma de plágio.

Em 2012, o filme As aventuras de Pi, dirigido por Ang Lee e baseado em um romance homônimo de Yann Martel, estreou nos cinemas.

O romance de Martel tinha semelhanças com o Max e os felinos, do escritor Moacyr Scliar. Ambos tratavam de um garoto que, após o naufrágio de um grande navio, se vê ao mar em um pequeno barco salva-vidas, junto a um jaguar.

Em vídeo publicado em agosto de 2012 pela editora L&PM no YouTube, Scliar afirma que não considerou, a rigor, o trabalho de Martel, vencedor do Booker Prize, um plágio, apesar do uso da sua ideia.

Ficou, contudo, chateado com a falta de gentileza do escritor canadense. Após negar inicialmente que havia se inspirado em Max e os felinos, declarou que o livro de Scliar era uma boa ideia executada por um mau escritor brasileiro.


Escreve Lilian Christofe, sobre o conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, em sua tese de doutorado:

“Não me parece que seu conto vá contra ou a favor da autoria ou do plágio, embora haja leituras deste conto como argumento a favor da impossibilidade lógica do plágio”.