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Os sentidos de fraude, erro e engano
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Resenha
O erro deliberado e o necessário
Por Maria Marta Avancini e Ricardo Schinaider de Aguiar
Entrevista
Clóvis de Barros e Roberto DaMatta
Entrevistado por Cristiane Kämp
Poema
Fogão de lenha
Carlos Vogt
Humor
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Entrevistas
Clóvis de Barros e Roberto DaMatta
Clóvis de Barros Filho é professor de ética na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, pesquisador e consultor sobre o tema para a Unesco e conferencista pelo Espaço Ética. Durante esta entrevista sobre ética no mundo acadêmico e na pesquisa científica ele afirma que não se trata de um conjunto de regras ou respostas prontas e, portanto, depende de uma disposição permanente para o debate sobre a melhor forma de conviver.
Cristiane Kämp
10/04/2013

Historicamente a ciência vem da filosofia e a ética, por sua vez, é uma de suas mais importantes áreas de estudo. Hoje em dia pensa-se em ciência e ética como disciplinas autônomas, independentes. Quando e por que se deu essa cisão e quais são as consequências disso ?

A primeira pessoa que nos apresenta essa categorização das áreas do conhecimento e separa a ética das ciências teoréticas de maneira sistemática é Aristóteles. E por quê ? Porque as ciências teoréticas eram entendidas como todo tipo de investigação sobre a dimensão cósmica do mundo. Em outras palavras, etimologicamente, a ideia de teoria para os gregos vem de um termo que quer dizer “contemplação do divino” e o “divino” era o mundo em sua dimensão cósmica, ordenada. Ou seja, o método dessas ciências era contemplativo, pois, de certa maneira, a verdade do mundo era uma verdade explícita na complementaridade funcional das coisas e, portanto, bastava contemplá-la para enxergar a “maravilhosa excelência das coisas e suas finalidades” – esse era o “divino”.

E a ética é um saber prático, é uma espécie de esforço intelectual com vistas à identificação da vida boa e da convivência boa. Nesse sentido, não só do ponto de vista do objeto como do método, as ciências teoréticas e as ciências práticas eram categorizadas diferentemente, portanto, desde Aristóteles. Essa é a primeira parte da sua pergunta.

A segunda parte de sua pergunta é ainda mais interessante: quais são as consequências dessa cisão? As ciências práticas e as ciências teoréticas avançaram em velocidades muito diferentes. Em outras palavras, os avanços técnicos caminham ao sabor das necessidades do mundo e, lamentavelmente, não são acompanhados de uma reflexão correspondente sobre seus valores ou sobre o que nos convém realmente. Então, o que assistimos hoje é uma avalanche de novas condições materiais de existência, de novas possibilidades práticas e, ao mesmo tempo, uma absoluta carência de reflexão sobre a perspectiva ética desse avanço. De certa maneira, isso é uma consequência da nossa formação: de um lado fomos ultrapreparados para a inovação técnica e, por outro lado, nada preparados para a reflexão axiológica a respeito dessas inovações. Isso, por sua vez, nos leva a um imenso problema: uma aceitação indiscriminada ou indiferenciada da técnica. É como se tudo que é novo, por existir simplesmente, nos fosse necessariamente conveniente e adequado.

Tomemos o caso do Facebook, por exemplo. Essa ferramenta se apresenta como uma realidade na forma de relacionamento entre as pessoas e essa realidade se impõe com uma velocidade espantosa, mas, ao mesmo tempo, não há, em relação a ela, nenhum crivo de reflexão crítica ou, se há, ele é totalmente marginal. Uma de minhas “bandeiras”, atualmente, é a reflexão sobre o uso infantil do Facebook a partir de um tipo de investigação científica a respeito do assunto. Mas, fundamentalmente, o que acontece é que, os mesmos interesses econômicos que fazem a técnica avançar, não têm, por sua vez, nenhum interesse que haja “massa crítica” de ponderação de valor sobre essas mesmas inovações.

Existe no Brasil um padrão de comportamento de tentar se valer dos furos da lei originando os famosos “jeitinhos”. Em vários âmbitos da sociedade isso é identificado. Qual é o reflexo disso no meio acadêmico ou educacional ?

O que nós chamamos de “jeitinho” nada mais é do que uma flexibilização de princípios com vistas ao alcance de certos resultados. É uma maneira simpática de tratar do pragmatismo na moral. No mundo das empresas, por exemplo, há a expressão “foco no resultado”, que, de certa maneira, comanda uma política de jeitinhos, pois, afinal de contas, se o que importa é o resultado, todos os outros princípios que poderiam nortear a prática se encontram necessariamente submetidos ao crivo do resultado. Se eu tiver que fazer pequenas ou grandes adaptações, devo fazê-las, porque o que importa mesmo são os números, o lucro, o resultado. Perfeito ? Ora, no mundo acadêmico, há troféus em disputa, mesmo que eles tenham um valor muito restrito a quem joga o jogo – quem olha o jogo acadêmico do lado de fora não enxerga o valor dos troféus, até porque eles não têm, na maioria das vezes, uma contrapartida econômica. Bom, numa sociedade na qual se legitima que a vitória é o que interessa, ou que o foco é no resultado, se está, de certa forma, assinando embaixo, chancelando ou legitimando uma política de flexibilização de princípios, ou seja, “faça o que for preciso para ganhar”. No caso das empresas é o lucro, no caso dos troféus acadêmicos são postos de titularidade...

Recursos para financiamento das pesquisas, por exemplo?

Sim, esse exemplo envolve dinheiro, mas o que é mais especificamente acadêmico nem dinheiro envolve. Por exemplo, ser representante de área na Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) ou ser coordenador de um certo grupo de trabalho num certo congresso importante. Há muitos troféus que não tem nenhuma contrapartida econômica mas que são vitais para o acúmulo de capital acadêmico e, evidentemente que, a partir do momento em que se tolera uma flexibilização de princípios, tudo se torna válido para alcançar os objetivos, por exemplo: alianças curiosas, aceitação de facilitações típicas da vida acadêmica como, por exemplo, assinar trabalho de aluno ou fazer o aluno trabalhar para depois se valer disso etc etc etc.... Então, o mesmo jeitinho que se tem fora, existe dentro do mundo acadêmico facilmente.

A ética científica apresenta peculiaridades que você destacaria ?

Claro, sempre. A ética tem sempre a ver com a busca do aperfeiçoamento da convivência num determinado espaço e o campo acadêmico é um espaço social relativamente autônomo em relação a outros campos e, portanto, tem uma forma particular de definir suas regras, seu modus operandi. Ou seja, existe sim uma especificidade. Claro, se você fizer essa pergunta para um filósofo herdeiro do kantismo, ele vai dizer que não, que o certo ou errado transcende totalmente essas fronteiras. Mas, se descermos ao nível da maneira como as pessoas vivem e convivem, é claro que a academia tem seus cacoetes e até mesmo saberes práticos incorporados em forma de hábitos que fazem com que você atue sem precisar pensar muito de acordo com certas regras e normas próprias daquele espaço de relações. Portanto, eu acredito que haja sim uma especificidade, não há dúvidas. Recomendo a leitura dos trabalhos de Pierre Bordieu sobre a sociologia da produção do conhecimento e sobre o campo acadêmico em especial.

É possível mensurar a ética, dizer que alguém é “mais” ou “menos” ético? É possível dizer que, por exemplo, copiar um texto de um artigo é mais ou menos grave do que manipular dados de uma pesquisa para confirmar uma hipótese?

Não. Isso é o tipo de decisão que tem que ser tomada por quem vive. A princípio, não. Sua pergunta parte de uma premissa de que a ética é uma resposta certa e pronta sobre como devemos conviver. E, na verdade, a ética não é isso. Ela é uma problematização da convivência, ou seja, muito mais do que uma resposta pronta. Até porque nós estamos tendo que enfrentar problemas sobre os quais não tínhamos porque ter pensado antes. Se a ética fosse uma resposta pronta, ficaríamos definitivamente sem resposta para uma série de problemas atuais que são absolutamente inéditos. Na verdade, a ética é um esforço, uma disposição permanente para o debate sobre a melhor forma de conviver. Há dez anos, por exemplo, muitos aqui estariam fumando, certo? E hoje, apesar da existência do aviso na placa de “é proibido fumar”, talvez ele fosse até mesmo desnecessário. Esse é um sinal de que houve uma mudança na forma de se conviver que é consequência de uma inteligência compartilhada.

Atualmente há uma discussão em nível nacional e internacional sobre ética na pesquisa científica. Agências de fomento, como Fapesp e CNPq, lançaram documentos que tratam disso, procurando alertar os pesquisadores sobre regras a serem seguidas para se evitar fraudes.   Como o senhor analisa essas medidas? Elas são eficazes para inibir o enganador/fraudador?  

Eu acho que essas medidas podem até ser eficazes. Mas o mais interessante é que elas de fato promovam o aperfeiçoamento da convivência no âmbito acadêmico e aperfeiçoem, portanto, a relação do campo científico com o resto da sociedade. Para isso, seria interessante que elas gozassem de uma certa legitimidade, ou seja, que elas resultassem, de fato, de um amplo debate e de um certo entendimento compartilhado sobre o que é certo e o que é errado na produção científica e eu não sei se é esse o caso.






Malandragem é sintoma de sociedade na qual as leis não estão em sintonia

Por Cristiane Kämpf

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/fraudes_erros/entrevista/entrev2.jpg


No Brasil, muitas vezes o próprio Estado não promove condições para que as leis sejam seguidas. É o que afirma Roberto DaMatta, um dos mais conhecidos antropólogos brasileiros, que estudou a sociedade brasileira através do carnaval, da obediência ou desobediência às leis, do futebol, das manifestações religiosas, entre outros temas que foram divulgados em seus livros, entre eles Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, de 1979 e O que é o Brasil, de 2005. Nesta entrevista para a revista ComCiência, o também professor no Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) pondera que a existência da malandragem é um sinal de que as leis e os costumes de um povo estão em descompasso.

O jeitinho brasileiro é o mesmo ao longo do tempo ou sofre mudanças em algum sentido? O senhor poderia dar alguns exemplos de bons e mausjeitinhos brasileiros, eternos ou atuais?

Penso que o jeitinho, como um mecanismo para passar por baixo ou por cima de alguma regra definitiva e clara, deve ter mudado. Historicamente, acho que seria aceitável dizer que o Brasil foi muito mais uma sociedade de pessoas do que de regras com vigência para todos até a Proclamação da República em 1889. Numa sociedade aristocrática, como eu tenho falado nos meus livros, vale mais o barão ou o ministro do que a norma escrita que não pode valer para ele (ou ela). Um bom jeitinho brasileiro é o fato de que todos pagam o imposto de renda, coisa que não ocorria até os anos 1960. Um exemplo do mau jeitinho é que os recursos arrecadados são desperdiçados.

O que caracteriza omalandrono imaginário do povo brasileiro? É aquele da música do Chico Buarque? Aquele que devolve troco a menos? Aquele que trafega pelo acostamento?

Penso que o malandro e, mais ainda, a malandragem, é um sintoma de uma sociedade na qual os costumes e as leis nem sempre estão em sincronia, nem sempre se encaixam. O Estado legisla muitas vezes de modo exagerado ou, quase sempre, sem preparar a sociedade para as novas leis. Ou, como é comum, não dá condições para que a lei seja seguida. Para se ter lei é preciso saber ler e esse é um problema. O outro é como colocar as leis dentro das pessoas.

Parece haver, atualmente, um crescente número de fraudes em pesquisas científicas, justificado muitas vezes pela também crescente concorrência por recursos, pressão para se publicar e pelo maior acesso à internet e a softwares que facilitam tanto a prática quanto a detecção de fraudes. Certas mudanças sociais promoveriam, então, o aumento do número demalandragens ou malandros?

Todo sistema igualitário e competitivo precisa de xerifes, como nos velhos filmes americanos e no futebol. Para haver sucesso dentro de uma competição é preciso uma boa dose de clareza sobre as suas normas. No caso da ciência, sobre os seus protocolos que variam entre as diversas disciplinas. Nas chamadas ciências sociais, um dos problemas é a ausência de controle de variáveis porque não há laboratório e pensar nisso seria um horror, pois assim fizeram os nazistas.

O que, em sua opinião, caracteriza um fraudador e permite que ele esteja presente em diferentes contextos, como o político e o acadêmico, por exemplo?

Provavelmente o sentimento de onipotência e o narcisismo. Depois a certeza de uma causa ou uma ideia que, para ele, vai melhorar o mundo.

Considerando sua experiência pessoal como acadêmico e pesquisador, tanto no Brasil como nos EUA, que diferenças e semelhanças principais o senhor apontaria em relação ao ambiente acadêmico dos dois países?

Eu precisaria de um livro. Mas penso que lá, nos Estados Unidos, há muita clareza quanto à competição que resulta em vantagens econômicas e promoção enquanto que, aqui, no mundo acadêmico, isso me parece um tabu. Consequentemente, deve haver mais tentação de fraude por lá.