REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Fraudes, erros e enganos - Carlos Vogt
Reportagens
Os resultados que não interessam ser publicados
Maria Teresa Manfredo
Fraudes e enganos na história da ciência
Romulo Orlandini
Picaretices e malandragens: o uso da mentira na literatura
Cintia Cavalcanti
Algumas observações sobre plágio, direito e autoria
Ricardo Manini
Varrendo por baixo do tapete da pesquisa científica
Meghie Rodrigues
Artigos
Ética na avaliação dos cientistas
José Daniel Figueroa Villar
Fraude e integridade na pesquisa
José Roberto Goldim
Do plágio à publicidade disfarçada: brechas da fraude e do antiético na comunicação científica
Marcelo Sabbatini
Os sentidos de fraude, erro e engano
Eduardo Guimarães
Resenha
O erro deliberado e o necessário
Por Maria Marta Avancini e Ricardo Schinaider de Aguiar
Entrevista
Clóvis de Barros e Roberto DaMatta
Entrevistado por Cristiane Kämp
Poema
Fogão de lenha
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Resenhas
O erro deliberado e o necessário
Sagan propõe o uso do método científico para evitar enganos da pseudociência e nos tornar mais críticos e Lentin aborda a importância do erro na história da ciência
Por Maria Marta Avancini e Ricardo Schinaider de Aguiar
10/04/2013

Erros, m�-f�, preconceitos e dogmas são indissociáveis da história da ciência. Parte disso não � um problema. Pelo contrário, � em meio a equívocos, golpes de sorte e ideias aparentemente absurdas, que contradiziam a mentalidade vigente, que muitas das grandes descobertas científicas ocorreram. � o que se conclui ao término da leitura do livro Penso, logo me engano: breve história do besteirol científico, escrito pelo jornalista francês Jean-Pierre Lentin. Ao longo de quase 250 páginas, o autor revive algumas das descobertas fundamentais, que marcaram a história da humanidade, a partir de uma perspectiva pouco convencional: a dos enganos � deliberados ou não.

Um exemplo? A fecundação, a formação de um novo ser vivo. Da Antiguidade at� meados do século XVII, acreditava-se, a partir das proposições de Aristóteles, Hipócrates e Galiano, que os seres vivos eram gerados a partir da “mistura de sementes� (masculina e feminina).

A invenção do microscópio, por volta de 1650, pelo holandês Anton van Leeuwenhoek, desencadeou uma verdadeira guerra, nos termos de Lentin, entre animalculistas e ovistas. De um lado, os animalculistas defendiam a primazia da “semente masculina� na geração de um novo ser vivo, chegando a postular teorias como a que defendia que o esperma � composto por pequenos animais que comportavam, em tamanho reduzido, um animal macho ou fêmea da mesma espécie � tese defendida por N. Hasrtsouker, aluno de Leeuwenhoek.

Os ovistas, de sua parte, identificaram, em seus estudos, a existência de ovos em mulheres e defenderam que o esperma era responsável pela fecundação, chegando perto de descrever o processo tal como ele acontece. No entanto, o papel do esperma seria o de detonar o desenvolvimento de um embrião inteiramente pr�-formado dentro do ovo.

Durante quase dois séculos, biólogos se sucederam numa série de argumentos e teorias � tão elaboradas quanto absurdas, aos olhos contemporâneos � para explicar como ocorre o desenvolvimento de um ser vivo: o naturalista Buffon defendia que as sementes eram elaboradas em cada órgão e eram escoadas pelo sangue, guardando o molde do órgão onde foi elaborada. Ao chegar às partes sexuais, as partes se agregavam e formavam animálculos. A fecundação realizaria uma mistura de todos os pequenos moldes.

Embora hipóteses como essas sejam totalmente infundadas � luz do que conhecemos hoje, as disputas entre ovistas e animalculistas tiveram o mérito de estimular o estudo aprofundado dos espermatozóides e dos óvulos, servindo de base para a “solução do enigma�, com a ascensão da ideia de que a célula � a unidade básica vida, ao lado da descoberta dos cromossomos e dos genes. Ou seja, o erro não invalida ou exclui o conhecimento e as descobertas científicas; ao contrário, � inerente a elas, convivem lado a lado.

Assim foi com Nicolau Copérnico, que tirou a Terra e colocou o Sol no centro do sistema solar. No entanto, seguindo a herança de Platão e Aristóteles, insistiu que as órbitas dos corpos celestes eram regulares e circulares, por mais que as observações indicassem que sua tese estava errada e não fossem coerentes com os cálculos matemáticos que visavam comprovar a perfeição do Universo criado por Deus. Em outras palavras, o �esprit du temps�, fundado numa visão religiosa católica de mundo, obscurecia sua visão.

Esse caso ilustra, segundo Lentin, a força dos dogmas enquanto fator de indução ao erro. Tanto aqueles formulados a partir de crenças religiosas quanto os decorrentes de ideias e postulações consideradas verdadeiras, ainda que sem comprovação. Seguindo uma trilha semelhante, Leonardo da Vinci, apesar de suas exímias habilidades como observador e de praticar, discretamente, dissecações de corpos humanos, os desenhava com vasos sanguíneos multiplicados e aumentados na região do fígado, mantendo-se fiel a uma crença persistente desde a Antiguidade: a de que esse órgão era o responsável pela produção do sangue.

Mas a imaginação e crenças cristalizadas no senso comum também induziram a erros que, hoje, se assemelham a alucinações. E, assim, histórias saborosas e surpreendentes se sucedem no livro. Outro exemplo: em 1894, o norte-americano Percival Lowell, teria descoberto, em suas observações com telescópio, canais de irrigação artificiais em Marte. Na época, astrônomos renomados (Huygens, Fontenelle e Bode) defendiam a ideia de que os planetas do sistema solar eram habitados por seres vivos. E os marcianos seriam os que mais se assemelhavam aos terráqueos.

Lowell publicou suas descobertas em obras como Marte e seus canais, de 1906, e elas acabaram sendo refutadas, posteriormente, a partir das observações feitas com telescópios mais potentes. No entanto, algumas de suas hipóteses sobre Júpiter, Saturno e Urano permaneceram válidas, sem contar que, em seus estudos, ele também defendeu a existência de um planeta suplementar, para além de Urano, o que se confirmou em 1930, com a descoberta de Plutão.

Para o cidadão comum, pouco familiarizado com a vida nos laboratórios e com o cotidiano das investigações científicas, ou mesmo para aqueles que (ainda) creem na ciência como uma sucessão de descobertas cumulativas, as histórias resgatadas por Jean-Pierre Lentin em seu livro talvez soem como caricatura � de fato, em alguns momentos, o autor abusa do tom caricatural em seus relatos, na tentativa de fortalecer seu argumento.

No entanto, a história da ciência relatada a partir da perspectiva dos erros e enganos remete a um questionamento fundamental, que contribui para a constituição de um olhar menos ufanista e, provavelmente, mais realista da ciência, da produção de conhecimento e da própria existência humana. Afinal, como postula o autor, nós somos frutos de bilhões de mutações genéticas, erros de transmissão nas redes da vida, que deram origem � diversidade biológica: “Não h� melhor exemplo de criatividade errológica. Proclamamos, então, com orgulho: todos nós somos erros!�

Penso, logo me engano
Jean-Pierre Lentin
Editora Ática
1996 (3.� edição)
255 páginas




 
O mundo iluminado pela ciência

Como o método e o pensamento científico podem ser usados para evitar fraudes e enganos da pseudociência e nos tornar mais críticos sobre o mundo em que vivemos

Por Ricardo Schinaider de Aguiar

http://www.labjor.unicamp.br/comciencia/img/fraudes_erros/resenha/img1.jpg



A crença no sobrenatural, em forças místicas, em rituais, em seres divinos e demoníacos esteve presente em basicamente todas as culturas humanas, desde a Antiguidade at� os dias atuais. Quando nos deparamos com fenômenos que não conseguimos explicar, podemos facilmente atribuir suas causas a deuses, demônios ou espíritos. Quando buscamos previsões para o futuro ou curas para doenças, podemos tentar nos comunicar com tais entidades ou com intermediários que conseguem acessar uma sabedoria indisponível para uma pessoa comum. Em O mundo assombrado pelos demônios � a ciência vista como uma vela no escuro, o renomado astrônomo e divulgador científico Carl Sagan faz muito mais do que desmistificar e revelar a natureza espúria das pseudociências que assombraram e continuam a assombrar o mundo. Sagan mostra sua paixão pela ciência verdadeira, diferenciando-a das enganosas e fraudulentas pseudociências, e alerta para os perigos da credulidade, não apenas nos aspectos científicos, mas também ao tratar de questões políticas, econômicas e sociais.

A pseudociência permeia nosso cotidiano e, às vezes, chega at� nós mascarada de ciência verdadeira. A astrologia e os horóscopos, por exemplo, podem ser encontrados em qualquer jornal diário. Notícias sobre percepção extrassensorial (categoria que inclui a telepatia e a telecinésia), paranormalidade, mediunidade, numerologia e videntes que fazem previsões para o futuro também são frequentes na mídia. Mas por que h� tanta pseudociência e h� tantos que, mesmo sem nenhuma evidência concreta para confirm�-las, acreditam nela? A pseudociência, com certeza, vende. Ela fornece respostas fáceis, fala às nossas necessidades emocionais e mexe com nossos desejos e esperanças. Por outro lado, “o ceticismo não vende bem�, escreve Sagan. Porém, substituir a pseudociência pela ciência seria simplesmente trocar uma crença por outra?

A resposta �, definitivamente, não. Os métodos científicos fornecem � verdadeira ciência a credibilidade que a pseudociência não tem. Por esse motivo, � fundamental a comunicação dos métodos e do pensamento científico, e não apenas a apresentação das descobertas e dos produtos da ciência como afirmativas sem fundamento. A ciência também erra, � claro, mas ela prospera com seus erros, tenta elimin�-los através de um mecanismo de correção que ela própria criou. Hipóteses são formuladas e testadas com experimentos e os resultados são confirmados apenas quando evidências irrefutáveis são obtidas. J� a pseudociência � baseada em hipóteses invulneráveis a experimentos que permitam sua confirmação. A falta de evidências para invalid�-la se torna, erroneamente, evidência para confirm�-la. As poucas evidências que de fato existem a seu favor nunca são comprovadas e, em sua grande maioria, poderiam ter sido fraudadas. Ao discutir política, economia, leis e julgamentos, sempre nos baseamos em evidências. Por que se contentar com menos quando tentamos compreender a natureza e o universo? Por que, ao se deparar com uma explicação para um fenômeno qualquer, não exigir dela evidências capazes de convencer um júri?

Devido aos seus métodos misteriosos e padrões pouco rigorosos de evidência, inúmeros erros e fraudes envolvendo pseudociência foram descobertos. Exemplos incluem o mesmerismo (método de cura através do magnetismo proposto por Franz Mesmer no século XVIII), histórias de raptos por alienígenas e qualquer prova de vida extraterreste, demonstrações da percepção extrassensorial (em especial as realizadas por Joseph Rhine), curas de apendicites por lavagens de água fria, médiuns e cirurgias mediúnicas. E quanto aos pacientes que realmente foram curados através da pseudociência? “É justo suspeitar de toda uma profissão por causa de algumas maçãs podres? Qual a diferença entre o charlatão ocasional que cura pela f� e a fraude ocasional na ciência?�, reflete Sagan.

H� casos de fraude na ciência também. A diferença � que eles são raros e são descobertos quase que exclusivamente por ela própria. As taxas de acerto e precisão da ciência são enormes. Contudo, se analisarmos as estatísticas da pseudociência, veremos que suas taxas de cura são semelhantes ou menores às taxas de cura e de regressão natural de suas respectivas doenças, ou seja, seria esperado que elas acontecessem mesmo sem nenhuma intervenção. A pseudociência pode, no máximo, atuar como um placebo no caso de doenças psicogênicas (geradas pela mente, como ansiedade, depressão e dor, por exemplo). Não h� registros de cura de doenças orgânicas sérias através de seus métodos. O médico norte-americano William Nolen, após analisar os casos mais notáveis de “curas� sobrenaturais, concluiu que “quando os que curam pela f� tratam de doenças orgânicas graves, são responsáveis por incalculáveis angústias e infelicidade. Os curandeiros transformam-se em assassinos�. Os eventuais acertos e curas da pseudociência, explicados pela estatística e pela ciência verdadeira, se tornam provas de sua eficácia, enquanto todos os erros e pacientes que não foram curados caem no esquecimento.

Para não nos tornarmos vítimas daqueles que querem se aproveitar de nossas esperanças e emoções, daqueles que nos enganam e, às vezes, enganam a si próprios também, crendo possuir poderes que na verdade não têm, � necessário o pensamento cético. Quais os métodos utilizados? Quais as taxas de sucesso? Elas são superiores quando comparadas ao de um grupo controle? Quais as evidências e resultados obtidos? Eles poderiam ter sido forjados? H� uma explicação mais simples ou provável para os fenômenos observados? As principais críticas ao ceticismo afirmam que a ciência não mantém a mente aberta a novas explicações. A ciência est� sempre aberta para novas possibilidades, porém � preciso separar o joio do trigo e � para isso que servem os experimentos e as evidências. Se, por um lado, nunca aprendemos nada novo quando somos apenas céticos, por outro, não saberemos distinguir entre as ideias promissoras e as insignificantes quando somos crédulos demais. “Aceitar acriticamente toda noção, idéia ou hipótese professada equivale a não conhecer nada. Somente pelo exame cético podemos decidir entre elas�, diz Sagan. “Manter a mente aberta � uma virtude � mas como o engenheiro espacial James Oberg disse certa vez, ela não pode ficar tão aberta a ponto de o cérebro cair para fora�. Não se trata de rechaçar hipóteses baseando-se apenas em suas premissas; trata-se de analisar evidências.

O pensamento cético � de fundamental importância, e não apenas ao se fazer ciência. “A nossa política, economia, propaganda e religiões ... estão inundadas de credulidade. Aqueles que têm alguma coisa pra vender ... têm um interesse pessoal em desencorajar o ceticismo�, escreve Sagan. A credulidade se torna perigosa quando, em vez de cristais milagrosos ou águas contendo superpoderes, tentam nos vender um conjunto de ideias, promessas, crenças e, at� mesmo, guerras. Os métodos e pensamentos científicos podem ser utilizados para ensinar o ceticismo e aperfeiçoar sistemas políticos, econômicos e sociais. E eles precisam estar � disposição de todos os cidadãos.

O ceticismo, porém, não � ensinado nas escolas. Crianças e adolescentes não têm contato com os métodos e pensamentos científicos. E se, em vez de ensinar a ciência como um conjunto de regras, fórmulas e conceitos a serem decorados, os professores estimulassem os alunos a realizarem experimentos, formularem hipóteses e chegarem às suas próprias conclusões? E se os ensinassem a questionar as teorias propostas? Se o ceticismo for ensinado desde a infância, quando as crianças se tornarem adultos, “talvez comecem a fazer perguntas incômodas sobre as instituições econômicas, sociais, políticas ou religiosas. Talvez desafiem as opiniões de quem est� no poder�.

Sagan ilumina nosso modo de pensar muito mais do que a chama de uma vela ilumina a escuridão ao seu redor. Ao mesmo tempo em que nos mostra como a ciência � fascinante, ele nos ensina o ceticismo necessário para compreend�-la da maneira correta e para não sermos enganados, não apenas pela pseudociência, mas também por nossos líderes políticos, religiosos ou por qualquer um que detenha poder. Ele enfatiza a importância de pensarmos por nós mesmos, formarmos nossa própria opinião, questionar as autoridades, e ressalta como a educação desempenha um papel fundamental para a formação de mentes críticas que possam contribuir, no futuro, para extinguir os demônios que assombram o nosso mundo. “Deveríamos ensinar às nossas crianças o método científico e as razões para uma Declaração de Direitos. No mundo assombrado por demônios que habitamos em virtude de sermos humanos, talvez seja apenas isso o que se interpõe entre nós e a escuridão circundante�.

O mundo assombrado pelos demônios � a ciência vista como uma vela no escuro
Carl Sagan
Companhia das Letras
1996
448 páginas