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Reportagem
A vegetação da Caatinga: das alternativas medicinais às ameaças
Por Júlia Melare
10/06/2013
Os estudos científicos a respeito da vegetação da Caatinga, que contabiliza mais de 800 espécies endêmicas, ainda são escassos. A afirmação foi feita pelo coordenador do Laboratório de Etnobotânica da Universidade Federal Rural de Pernambuco, o professor Ulysses Paulino de Albuquerque, doutor em biologia vegetal. Segundo ele, existe um conjunto de plantas que foram bem, ou relativamente bem, estudadas e que correspondem, na maioria das vezes, às plantas mais populares, amplamente disseminadas e comercializadas em mercados e feiras, como a aroeira.

Apesar da dificuldade de estudos no âmbito científico, grande parte da população rural e indígena utiliza várias espécies de plantas típicas da região com fins medicinais, em especial aquelas com propriedades anti-inflamatórias e cicatrizantes. Outros exemplos, além da aroeira já citada, são o quixaba (Sideroxylon obtusifolium), usado externamente para aliviar ferimentos e traumas e auxiliar no tratamento de gripe; e o angico (Anadenanthera colubrina), usado no tratamento de afecções uterinas, coceira, bronquite, catarro, gripe e tosse.

Essas populações possuem conhecimento de técnicas medicinais, transmitidas de geração para geração. No recente estudo “Dynamics of traditional knowledge of medicinal plants in a rural community in the Brazilian semi-arid region”, realizado por pesquisadores da Universidade Federal Rural de Pernambuco em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina, foi constatado que as mulheres da comunidade de Carão, interior do Pernambuco, têm importância fundamental nessas práticas, principalmente como cuidadoras do lar e responsáveis pela agricultura familiar embora, dependendo da comunidade e do grupo de plantas, os homens possam ser os maiores conhecedores das práticas medicinais, representados pelas figuras dos curandeiros e pajés.

Algumas populações têm grandes necessidades desses recursos para viabilizar o sistema médico tradicional, no atendimento aos cuidados básicos da saúde e da família, enquanto outras registram também a dependência econômica desses recursos, pois além de os utilizarem dentro da medicina, comercializam as plantas no mercado informal, vendendo as ervas para garantir renda complementar. Esse comércio é realizado também próximo aos grandes centros, nos mercados públicos, que abrigam os erveiros. “Nossos fluxos de pesquisa costumam dizer que esses mercados são uma espécie de vitrine da biodiversidade existente na região, refletindo todas as plantas usadas em uma comunidade, em diferentes biomas, associadas àquela região”, explica Albuquerque.

Conhecimento secular

O livro Sertões adentro: viagens nas caatingas século XVI a XIX, organizado por Lorelai Brilhante Kury, reúne diversas e importantes anotações de exploradores estrangeiros enviados para missões no nordeste brasileiro durante essas décadas. O médico neerlandês Guilherme Piso e o astrônomo George Marcgraf faziam parte de uma das comitivas que aportaram no Recife holandês, realizando a descrição de inúmeras espécies da flora e fauna da região. Entre os exemplares vegetais estavam o mandacaru, apontado para a cura das febres oriundas das biles; o caraguatá, usado para males respiratórios e as palmeiras silvestres, potentes contra o veneno de raias. Os jesuítas também mantinham registros das suas observações da natureza e, baseados nos textos já escritos pelos exploradores, produziam remédios com os recursos locais, estocados nas boticas dos colégios.

No âmbito científico, em 1778 começaram a ser preparadas expedições para o Brasil com o apoio da coroa portuguesa, cujo conjunto foi denominado “viagem filosófica”. Após alguns anos, os planos tornaram-se realidade, porém os resultados não atingiram as expectativas. Segundo os textos de Kury, praticamente todo o conhecimento científico produzido na Caatinga era de natureza não aplicada, mantendo-se somente na catalogação e descrição das espécies. Aquelas que foram enviadas a Portugal também não conseguiram ser exploradas adequadamente, devido à falta de recursos e escassos conhecimentos práticos dos estudiosos lusitanos para a produção de conhecimento na área. O intelectual que mais se destacou nos estudos sobre o semiárido brasileiro foi Manuel Arruda da Câmara. Autor de textos densos e informativos, o médico foi o primeiro naturalista a publicar parte dos seus manuscritos, estudando óleos vegetais, cordas, tinturas, vinhos e aguardentes, madeiras, féculas, frutas e plantas medicinais. Hoje, grande parte de seu acervo científico está perdida ou destruída.

De volta aos dias atuais: das matas aos laboratórios

Apesar da tradição do conhecimento popular sobre a flora da Caatinga e suas propriedades medicinais, pouco se conseguiu em relação à disseminação desse conhecimento e ao uso que poderia ser feito pela indústria farmacêutica em larga escala de produção. “Um dos grandes problemas que considero para não termos avançado muito nas pesquisas sobre medicamentos naturais é que muitos estudos baseiam-se na informação popular de maneira simplista, não levando em consideração a profundidade e a complexidade que um sistema médico desses possui. Muitas vezes esses sistemas possuem termos próprios e formas de diagnóstico que diferem completamente do nosso sistema médico. Então, é preciso estudar detalhadamente essas características para saber interpretar quando, de fato, em uma comunidade específica, tal planta serve para tratar uma inflamação, e se é a inflamação que conhecemos em nosso sistema médico. Por exemplo, algumas plantas dessas comunidades do Brasil são usadas para tratar hemorroidas, porém, em outras comunidades, essa palavra é usada para designar parasitoses, verminoses”, diz Albuquerque.

Apesar de, nos últimos anos, existirem investimentos nessa área, eles ainda são escassos e longe de serem eficientes. O processo de desenvolvimento de um produto a partir da planta medicinal, para que ela saia da natureza e chegue às prateleiras de uma farmácia, pode demorar de cinco a dez anos de estudo, envolvendo profissionais de diversas áreas, como químicos, farmacologistas, botânicos, etnobotânicos, em uma rede complexa e que precisa ser bem articulada. “O grande desafio nessa área de pesquisa no Brasil é a falta de articulação, de diálogo entre diversos grupos de pesquisa para otimizar o desenvolvimento de novos produtos. Fora isso, há um aspecto ainda pouco contemplado, da conservação da biodiversidade, porque essas plantas vêm normalmente de populações naturais, e é preciso ter o cuidado de, paralelamente ao desenvolvimento de um produto, pensar também nas implicações para a conservação desse recurso na natureza”, analisa o professor.

Exemplos de plantas cuja utilização já é de amplo conhecimento:
Planta Uso
Cedro (Cedrela odorata L.) Com as cascas do caule prepara-se um decocto empregado externamente contra afecções uterinas, alergias, processos inflamatórios e papeira. Já no tratamento de congestão (sensação de mal-estar produzida após a ingestão de algum alimento, deixa-se a casca de molho em água, que depois é ingerida. Com as folhas, faz-se a decocção em água no tratamento de dor de dente.
Ipê-roxo (Tabebuia Impetiginosa) O chá das cascas é usado no tratamento de tuberculose e inflamação urinária. O chá das flores é usado no tratamento de constipação.
Jatobá (Hymenaea courbaril L.) O chá das cascas do caule é usado como calmante e contra chiado no peito — som produzido pelo acúmulo de secreção (catarro) no pulmão —, gripe e sinusite. O lambedor é usado nas desordens respiratórias, como gripe, catarro e tosse, como expectorante e calmante e também no combate à dor de cabeça. Para o tratamento de constipação, usa-se a garrafada à base de cascas. Já o chá do fruto é usado contra gripe e tosse. A resina pode ser usada em lambedores para tratamento de gripe ou como chá contra tosse e catarro. O molho das sementes é usado para tratar ferimentos.
Juazeiro (Ziziphus joazeiro Mart.) Com a casca do caule prepara-se um banho que pode ser usado contra caspa, constipação, como cicatrizante e anti-inflamatório. O chá das cascas é usado contra tosse e gripe. O chá das folhas é usado no tratamento de gripe, tosse e insônia.
Mandacaru (Cereus jamacaru DC.) O chá da raiz é usado no tratamento de cálculo renal.
Umbu (Spondias tuberosa Arruda) Com a casca do caule, prepara-se um decocto usado no banho de assento para tratar afecções uterinas e, em uso externo, contra inflamações e cortes infeccionados. O chá também é usado no tratamento de dor de barriga, diarreia, inflamação na garganta e no dente (gargarejo e bochecho).

Fonte: Catálogo de plantas medicinais da caatinga: guia para ações de extensão/ Ulysses Paulino de Albuquerque (org).

Morte e vida severina

A vegetação da Caatinga é considerada de suma importância para a conservação da biodiversidade brasileira, com espécies típicas e algumas somente encontradas nessa região. No entanto, é também um dos biomas mais ameaçados do planeta. Atividades antrópicas como o corte para obtenção de lenha, supressão para uso agrícola, queimadas e o avanço da pecuária caprina e bovina aceleraram o processo de desertificação, interferindo na regeneração e proliferação de algumas espécies.

No caso das plantas medicinais, elas estão desaparecendo junto com esse cenário. E de acordo com Albuquerque, não são as demandas das comunidades locais para a medicina tradicional que comprometem seriamente a vegetação, mas a exploração descontrolada e sem fiscalização de indústrias. Alguns fatores físicos também interferem na disposição da vegetação da Caatinga, como a escassa precipitação pluviométrica, o relevo (que alterna desde planaltos às grandes depressões) e as condições edáficas (fertilidade, teor de matéria orgânica, profundidade do solo).

Porém esses desafios não podem ser considerados empecilhos para o desenvolvimento do bioma. Algumas soluções apontadas para a recuperação da Caatinga, de acordo com uma das pesquisas divulgadas no livro Flora das caatingas do Rio São Francisco: história natural e conservação, organizado por José Alves de Siqueira Filho, são os estudos sobre o bioma, as inovações tecnológicas – com alternativas de renda para os agricultores locais, além dos bancos de sementes e produção de mudas. Ainda segundo os autores, “empreendimentos como a integração do Rio São Francisco (PISF) e a Ferrovia Transnordestina gerarão um passivo ambiental enorme que pode e deve ser pago com recomposição de áreas degradadas da Caatinga, gerando empregos, desenvolvimento tecnológico, proteção contra mudanças climáticas e, sobretudo, garantindo serviços ambientais”.

Na opinião de Albuquerque, os estudos sobre a Caatinga devem se intensificar, buscando soluções para recuperar e conservar a área. “São várias ações que não envolvem apenas o reflorestamento e banco de sementes em viveiros. Ainda conhecemos pouco as espécies da Caatinga, e é muito complicado falar em alternativas se não sabemos como as espécies se comportam ou como se reproduzem. Precisamos de estudos básicos, e é preciso ter investimento em vários sentidos, desde os de caráter emergenciais que contemplem reflorestamento, até investimentos de médio e longo prazo para conhecermos melhor a biologia das espécies, em especial daquelas que tenham importância econômica”, finaliza.