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Artigo
O sertão e sua gente no relato Viagem científica
Por Liane Maria Bertucci
10/06/2013
Entre o final do século XIX e início do XX, várias expedições foram organizadas pelo governo federal com o objetivo de desbravar e possibilitar a exploração do território brasileiro. A meta era integrar a nação e civilizar o país. Uma dessas expedições partiu do Instituto Oswaldo Cruz (Manguinhos), do Rio de Janeiro, em março de 1912, atendendo solicitação da Inspetoria de Obras contra a Seca, órgão do Ministério dos Negócios da Indústria, Viação e Obras Públicas (Sá, 2009). Chefiada pelos doutores Arthur Neiva e Belisário Penna, a expedição, depois de aportar na cidade de Salvador, seguiu para o interior do país, para o sertão, região semiárida, com matas que cresciam, em geral, apenas nas margens dos rios, ribeirões e lagoas. Foram sete meses percorrendo extensas áreas do chamado Brasil Central (norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e Goiás de norte a sul). Os médicos observaram o clima e o solo, a flora e a fauna da região, na tentativa de entender as causas da seca e propor soluções para o problema. Paralelamente, Neiva e Penna ficaram atentos aos habitantes da terra, dispersos por uma área onde os centros urbanos pontuavam imensos espaços praticamente desabitados. As pessoas viviam em extrema miséria e a maioria estava doente.

A publicação, em 1916, das memórias da expedição científica de Neiva e Penna ganhou grande repercussão, coincidindo com o período de crescente difusão da medicina experimental, cujos adeptos estavam cada vez mais envolvidos com a discussão do tema da formação do homem brasileiro, e com a divulgação de ideias eugênicas, notadamente da tese de que hábitos pessoais de higiene e ações de saneamento poderiam concorrer para o aperfeiçoamento da espécie humana (Mota, 2003).

O relato Viagem científica não economizava palavras para descrever a situação de penúria, abandono, doença e ignorância dos moradores do Brasil Central. Impaludismo, raiva (hidrofobia), bócio, doença de Chagas, enfermidades nervosas e dos olhos (como o tracoma), difteria, pneumonia, ancilostomíase, febre amarela. Para Neiva e Penna, o homem do sertão não vivia, apenas sobrevivia. Segundo os médicos, o sertanejo, mal educado, abandonado à própria sorte, utilizava uma terapêutica tão exótica quanto ineficiente. Alho, sal, álcool, limão, raspas de troncos de árvores, frutos, infusões de folhas ou resinas de plantas nativas; no combate às enfermidades e acidentes com animais peçonhentos (especialmente cobras), a utilização de substâncias que a tradição popular consagrava – e os doutores consideravam inócuas – era grande. Rezas variadas e amuletos diversos também faziam parte do arsenal terapêutico e a crença no mau olhado de alguns indivíduos era, segundo Neiva e Penna, “verdadeiramente espantosa”, mesmo entre “as pessoas de maior cultura”. Desolados, os doutores afirmavam: “Em localidades onde há médicos, estes são consultados em último caso (...)” (Neiva; Penna 1916, 1999, p. 161-162).

Mas, quais observações Arthur Neiva e Belisário Penna fizeram sobre o cotidiano dos moradores do sertão? Segundo os médicos, a alimentação das pessoas da região era “insuficiente e má”, à base de charque de bode ou, às vezes, de gado bovino, farinha, leite e rapadura. Os mais pobres comiam ainda menos: mel, coco e pequenos animais. Descalços, com roupas rudimentares (com exceção do vaqueiro, vestido de couro dos pés a cabeça, para se proteger dos espinhos da flora do sertão), os sertanejos viviam em casas mal iluminadas e feitas, em geral, de pau a pique (cobertas de ramos de palmeiras ou, nas áreas mais secas, de telhas de barro), com poucos cômodos e o chão de terra batida ─ moradias cuja estrutura favorecia a proliferação do transmissor da doença de Chagas, o chamado barbeiro. As únicas casas que, longe das cidades, tinham alguma cor diferente do barro eram as dos fazendeiros: caiadas de branco, com paredes e chão de tijolos. Mesa de madeira, alguns bancos, redes e arcas de couro e madeira eram todo o mobiliário da maioria das casas, inclusive de muitas que serviam de moradia para donos de grandes fazendas (Neiva; Penna 1916, 1999, p.164-167).

Vivendo em pequenos ajuntamentos de casas ou em fazendas, a maioria dos sertanejos, sem correio, telégrafo ou jornal, dispunha de transporte precário: o deslocamento de carga e de pessoas era feito, em geral, em lombo de burro ou jumento. A instrução escolar era muito deficiente e o analfabetismo era altíssimo, chegando a 90% no norte de Goiás. Professores itinerantes, que temporariamente se instalavam em fazendas, ensinavam rudimentos de leitura e escrita e a contar. Nas cidades maiores, havia poucas escolas públicas e algumas, mantidas por particulares, garantiam o ensino de forma mais regular (Neiva; Penna 1916, 1999, p.170-174).

Isoladas, as pessoas do Brasil Central tinham uma vida rotineira, pouco criativa ou inovadora. Nas palavras de Neiva e Penna, eram “praticamente impermeáveis ao progresso”. Para os dois médicos, a principal causa dessa situação era a falta de contato com “outros mundos”, o que a imigração, de preferência europeia, poderia ajudar a resolver. Os doutores acreditavam que o contato do sertanejo com o imigrante concorreria para o fim de práticas ancestrais da população local e afirmavam que os forasteiros trariam novos costumes e ideias que implodiriam rotinas de séculos, em geral ultrapassadas, muitas delas perniciosas. Os dois contestavam a tese, que chamavam de “absurda”, da incompatibilidade entre o clima da região e a colonização estrangeira, pois nas proximidades dos rios, locais habitáveis que deveriam ser explorados, o clima era “perfeitamente compatível com a vida humana de estrangeiro pertencente a qualquer raça” (Neiva; Penna 1916, 1999, p.175). Mas, segundo Arthur Neiva e Belisário Penna, apenas a imigração não bastava, era preciso que fossem realizados estudos para conhecer as diferentes potencialidades da região e indicar as possibilidades e limites para agricultura e outras atividades econômicas do Brasil Central. Constatando que a seca ameaçava toda a região, os médicos afirmavam que era necessário manter e ampliar (com reflorestamento) a vegetação nas áreas próximas dos cursos de água. Os doutores também clamavam pela organização de serviços médicos e para a educação do sertanejo, o que permitiria o cuidado da saúde dos homens do sertão, graças à ação de pessoas habilitadas pela ciência, e a divulgação (inclusive através da escola) de práticas de saúde entre os moradores do Brasil Central. Como realizar essa gigantesca tarefa?

Nas memórias, reunidas no texto Viagem científica, o apelo à atuação governamental constante e enérgica é notório, mas não de governos locais, que estariam divididos por interesses particulares que atravancavam soluções maiores. O apelo de Neiva e Penna era para o governo da república brasileira, que teria a possibilidade única de olhar para a região e seus problemas como um todo, ultrapassando fronteiras estaduais. Era o governo da União que poderia implementar medidas diversas sob uma direção geral que, a médio e longo prazo, transformariam o sertão e seus habitantes em parte efetiva do país chamado Brasil. Concluindo o relato, os médicos afirmavam que a situação do Brasil Central era apenas um exemplo do que acontecia no país, pois, excetuando algumas cidades, o Brasil era constituído por “vastos territórios abandonados, esquecidos dos dirigentes, com populações vegetando na miséria, no obscurantismo, entregues a si mesmas (...)” ( Neiva; Penna 1916, 1999, p. 178-179, 222).

Com a publicação do relatório Viagem científica, as considerações de Neiva e Penna que ganharam as páginas dos jornais, mobilizando grande parte da opinião pública brasileira, foram aquelas sobre o dia a dia do sertanejo, sobre as condições de saúde do homem do sertão. A ideia dos doutores sobre a urgência de sanear o Brasil Central e, também, todo o país, compartilhada por vários de seus colegas médicos, tornou-se questão nacional (Bertucci, 2007).

As discussões sobre o saneamento do Brasil multiplicaram-se e o tema foi objeto de análise de governantes e motivo de debates e propostas na Academia Nacional de Medicina. No início de 1918, Belisário Penna organizou a Liga Pró-Saneamento do Brasil e a influência do movimento sanitarista cresceu. Em maio de 1918, um decreto federal determinou a organização do Serviço de Profilaxia Rural no Brasil e os primeiros postos desse serviço foram instalados nos estados do Maranhão, Minas Gerais e Paraná, através de uma parceria entre o governo federal e os governos estaduais. A criação do Departamento Nacional de Saúde Pública em 1920 (Decreto nº 3.987, de 2 de janeiro) que, entre outras determinações, instituiu a Diretoria de Saneamento e Profilaxia Rural, ampliou essas parcerias pelo país (com acordos sobre divisão de custos, financiamentos etc.) e, ao longo dos anos 1920, os estados ampliaram suas responsabilidades relacionadas à saúde pública (Hochman, 1998). Em novembro de 1930, a criação, pelo governo Getúlio Vargas, do Ministério da Educação e Saúde Pública representou, para muitos, a concretização dos ideais sanitaristas. Mas essa história ainda teve diversos desdobramentos nos anos seguintes.

Liane Maria Bertucci é doutora em história social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora associada de história da educação na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Fonte

Neiva, A.; Penna, B. Viagem científica pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e de norte a sul de Goiás 1916. Ed. Fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1999.

Referências bibliográficas

Bertucci, L. M. “Anos 1910: educação e saúde para formar o povo brasileiro”. In: Dinis, N. F.; Bertucci, L. M. (Org.) Múltiplas faces do educar. Curitiba: Ed.UFPR, 2007, p. 115-124.
Hochman, G. A era do saneamento. São Paulo: Hucitec, 1998.
Mota, A.Quem é bom já nasce feito. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
Sá, D. M. de. “Uma interpretação do Brasil como doença e rotina: a repercussão do relatório médico de Arthur Neiva e Belisário Penna (1917-1935)”. História, Ciências, SaúdeManguinhos. Rio de Janeiro, vol.16 – Suplemento 1, p.183-203, jul. 2009.