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Reportagem
Tecnologia social: a inovação a favor do desenvolvimento e da inclusão
Por Maria Marta Avancini
10/07/2013

Em maio, a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA-Brasil), uma rede composta por 3 mil organizações dedicadas à gestão e ao desenvolvimento de políticas de convivência com a seca, atingiu a marca de 458,6 mil cisternas de placas construídas desde 2003 no âmbito do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), implementado em parceria com governo, empresas e agências de cooperação.

Desenvolvidas a partir da ideia de um agricultor sergipano, chamado Manoel Apolônio de Carvalho, as cisternas de placa têm possibilitado que famílias armazenem água de chuva para consumo durante todo o ano, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida da população em uma das regiões mais empobrecidas do país. Cada cisterna tem capacidade para estocar 16 mil litros de água.

“Manoel aprendeu a mexer com placas de cimento pré-moldadas durante o período em que trabalhou em São Paulo construindo piscinas. Quando voltou para o Nordeste, usou esses conhecimentos para criar um novo modelo de cisterna de forma cilíndrica com placas pré-moldadas curvadas”, conta a coordenadora nacional da ASA-Brasil, Valquíria Lima. Ao longo desses dez anos, a tecnologia simples e barata, baseada na coleta de água de chuva por meio de calhas instaladas nos telhados das casas, vem sendo aprimorada por meio da interação entre as famílias, pedreiros, técnicos e gestores do programa.

As cisternas de placa são um exemplo bem sucedido de tecnologia social, um conceito que coloca o debate sobre a inovação sob uma perspectiva diferente da convencional: a da inclusão. Uma tecnologia social pode ser definida como uma técnica, material ou produto desenvolvido a partir de uma necessidade social, com a finalidade de solucionar um problema enfrentando por um grupo ou comunidade.

Para além da inovação econômica

“O conceito de tecnologia social propõe um contraponto em relação ao conceito tradicional de inovação”, explica Maíra Baumgartem, coordenadora do Laboratório de Divulgação de Ciência, Tecnologia e Inovação Social (LaDCIS), ligado às universidades federais do Rio Grande do Sul e do Rio Grande. Isto porque, no contexto da sociedade capitalista, o conceito de inovação se revestiu de um enfoque excessivamente econômico, vinculando-se às ideias de competitividade, aumento da produtividade e lucro. Ou, como argumenta o sociólogo Ricardo Toledo Neder, da Universidade de Brasília (UnB), inovação pode ser definida como uma expressão do poder de monopólio do capital financeiro, que se concretiza em aplicações setoriais na agricultura, indústria, comércio ou serviços, exercendo veto ou barrando inovações que ameacem sua posição.

Um exemplo é o setor automobilístico brasileiro. “As inovações de novos atores neste segmento são controladas pelas grandes montadoras, internacionalizadas há quatro ou cinco décadas no país, que barram a disseminação de inovações trazidas pelos coreanos, japoneses e franceses – o que explica a baixa qualidade dos automóveis brasileiros”, defende Neder, que é coordenador do Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina.

Contudo, é preciso ter em mente que a técnica – entendida como a arte de transformar as coisas para atender necessidades – é inerente à história da humanidade. “A tecnologia social coloca a inovação como algo que está além da inovação econômica”, argumenta a coordenadora do LaDCIS. “Inovação também é qualquer movimento destinado à criação de algo novo, que traga satisfação de necessidades e carências em determinado contexto”, defende Baumgartem. Dessa forma, o território é o ponto de referência para se compreender as tecnologias sociais. Afinal, argumenta Neder, elas estão relacionadas à necessidade de se iniciar um processo, sob condições dadas pelo ambiente específico onde ele ocorrerá. A autogestão é outra característica das tecnologias sociais.

No caso das cisternas de placas, que são construídas em sistema de mutirão, as famílias beneficiadas se envolvem diretamente na construção, o que acarreta benefícios a elas e às comunidades. “Há um processo de mobilização social protagonizado pelas próprias famílias. Elas aprendem uma tecnologia que pode ser reproduzida, ajudando na renda. Há agricultores que começam a viajar de um município para outro para construir as cisternas”, afirma Lima. Paralelamente, a economia local é dinamizada: por exemplo, o comércio local vende a matéria-prima para que as cisternas sejam construídas.

O desenvolvimento em questão

Há, então, uma relação entre tecnologia social – ou inovação social – e desenvolvimento. Mas não o desenvolvimento na acepção exclusivamente econômica, e sim o desenvolvimento enquanto promotor de bem-estar social. Para Maurício França, superintendente da Área Técnica para o Desenvolvimento Social da Agência Brasileira de Inovação (Finep), as tecnologias sociais são estratégias para a solução de várias problemáticas que requerem inovação, mas não costumam ser alvo do interesse empresarial, como por exemplo, tecnologia assistida, tratamento de esgoto, drenagem urbana, doenças negligenciadas, agricultura familiar, economia solidária, dentre outras. “Nessa perspectiva, o conceito de inovação social se sobrepõe ao de tecnologia social, pois o foco é o desenvolvimento de estratégias que fomentem o desenvolvimento em um dado território”, defende França.

É nesse campo que órgãos como a Finep atuam. Desde 2003, a agência financia projetos de tecnologia social propostos por organizações sociais ou órgãos de governo – como é o caso das ações de fomento à economia solidária, ou seja, atividades de produção ou oferta de serviços baseados na democracia, na cooperação e na autogestão (caso das cooperativas de trabalhadores).

“As cooperativas populares, como as de catadores de lixo reciclável são uma forma de organização social capaz de gerar emprego e renda, promovendo a melhoria da qualidade de vida de pessoas que estão entre as mais pobres”, afirma Daniel Soares, coordenador do Departamento Técnico para o Desenvolvimento Urbano e Territorial da Finep. A economia solidária conquistou espaço entre as políticas de governo: há, no Ministério do Trabalho e Emprego, uma secretaria dedicada ao tema.

Outro tipo de proposta que se alinha com a perspectiva das tecnologias sociais na busca de alternativas voltadas para a melhoria das condições de vida dos segmentos mais empobrecidos são os bancos populares, como o Banco Popular da Mulher (BPM), mantido por um grupo de organizações e órgãos públicos, dentre os quais o majoritário é a prefeitura de Campinas.

Diferentemente dos bancos convencionais, os bancos populares oferecem microcrédito a pessoas de baixa renda. Um de seus diferenciais é atender pessoas que não costumam ter espaço nas instituições financeiras devido ao perfil socioeconômico ou porque têm restrições financeiras.

O BPM mantém quatro linhas de microcrédito orientado, atendendo principalmente mulheres (70% da clientela). A filosofia, explica a gerente operacional do banco, Liliam Vizel Guilherme, é colaborar para que os empreendimentos dos clientes sejam bem-sucedidos. Assim, oferece cursos de capacitação e acompanha os negócios dos tomadores de crédito. Empreendedores individuais podem tomar empréstimos de até R$ 10 mil. Cooperativas podem emprestar até R$ 50 mil, pagando juros de 1,6%, com carência de até 18 meses. “Temos vários clientes cujos negócios estão crescendo graças ao apoio do banco”, afirma Guilherme. Uma delas é Roseana Barganha, que utilizou os recursos do BPM para ampliar seu ateliê de costura em couro. Ela fez um empréstimo que usou para a compra de matéria-prima. Tempos depois, fez um segundo financiamento para ampliar o empreendimento e diversificar a produção.

Mais do que experiências isoladas

Embora seja possível dizer que já existam, em várias áreas, experiências concretas envolvendo tecnologia social – saúde coletiva, autoconstrução popular, alimentação orgânica, produção agroecológica na agricultura familiar, dentre outras – a criação de uma plataforma em larga escala depende da criação de linhas de financiamento de projetos nesse campo.

“O capital financeiro está longe de ter interesse em apoiar iniciativas desse tipo, pois são segmentos e setores que não permitem retorno lucrativo”, analisa o professor Neder. Nesse sentido, ele defende o fortalecimento de ações por parte dos bancos públicos no campo do crédito solidário para projetos e ações. A universidade, defende o sociólogo, tem um papel central a desempenhar nesse cenário, por meio do desenvolvimento de pesquisas que subsidiem os projetos.

“Hoje temos uma centena de bancos comunitários no Brasil que poderiam estar se associando às universidades e às escolas públicas para financiar microcrédito solidário em projetos de educação, ciência e técnica, seguindo o modelo dos pontos de cultura. Dessa forma, teríamos uma autêntica plataforma cognitiva de tecnologia social quando adotada como produção de conhecimento”, propõe Neder.