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Artigo
Segundo uso médico de compostos químicos
Por Maria Lúcia Abranches da Silva, Adelaide Maria de Souza Antunes e Adriana Campos Moreira Britto*
10/07/2013

A diferenciação de produtos como padrão de competição implica a necessidade da busca contínua de inovação pela empresa, para manter ou mesmo ampliar sua participação no mercado, requerendo o engajamento sistemático em atividades de P&D que assegurem um fluxo permanente de inovações a serem lançadas no mercado, ou mantidas em estoque para eventuais ataques de competidores. O lançamento de produtos dependerá da capacidade de inovação, principalmente em setores baseados na ciência, em que a transferência e o licenciamento de tecnologia não são usuais (Bastos, 2005).

Para a indústria farmacêutica, o desenvolvimento de um segundo uso médico de um composto químico conhecido representa uma alternativa factível tanto para as indústrias dos países desenvolvidos como para as dos países em desenvolvimento. Neste tipo de P&D, a etapa de pesquisa básica já foi concluída durante o desenvolvimento do composto para o primeiro uso médico. Assim, no desenvolvimento de um segundo uso não há mais necessidade da densidade tecnológica requerida durante essa etapa, que inclui a síntese do composto químico. Ademais, tendo em vista que muitos desses compostos já passaram pelas etapas de testes pré-clínicos, ou até mesmo testes clínicos, quando do desenvolvimento do primeiro uso, o perfil de reações muitas vezes já é conhecido. Vale destacar que muitos compostos que não obtiveram sucesso para o primeiro uso médico pretendido podem representar uma opção estratégica válida para o desenvolvimento de um segundo uso médico (Verma et al., 2005).

Nesse contexto, o desenvolvimento de novos usos médicos de compostos conhecidos também é considerado interessante do ponto de vista dos pacientes, que podem ter acesso a novas terapias, com a vantagem de empregar compostos que, em alguns casos, já apresentam perfil conhecido de reações adversas.

Outro ponto a ser comentado refere-se à possibilidade de desenvolvimento de um segundo uso de medicamentos que já estão no mercado. Alguns têm potencial para o desenvolvimento do segundo uso, devido aos avanços obtidos na elucidação dos mecanismos de ação envolvidos nas patologias. O uso de medicamentos antigos, que já foram aprovados por agências reguladoras para uso em humanos, ainda oferece a vantagem de experiência clínica extensiva para outra aplicação terapêutica, incluindo o conhecimento da farmacocinética e perfil de segurança. Ademais, tendo em vista a limitação na previsão da eficácia, medicamentos introduzidos no mercado para uma determinada doença podem, subsequentemente, apresentar validade em doenças não relacionadas. Assim, para medicamentos que já estão no mercado, um novo uso médico identificado pode ser avaliado na fase II de testes clínicos (Chong & Sullivan, 2007).

A tabela 1, a seguir, apresenta exemplos de novos usos médicos de compostos químicos conhecidos:

Tabela 1: Exemplos de novos usos médicos e os respectivos documentos de patente

*Patente Concedida

Fonte: Elaboração Própria

Contudo, apesar de o sistema de patentes ser amplamente empregado no setor farmacêutico para a proteção dos conhecimentos provenientes das atividades de P&D, as questões envolvidas no patenteamento das invenções de novo uso médico são complexas. Tais questões abrangem aspectos ligados à legalidade da proteção conferida pela patente, aos requisitos gerais de patenteabilidade dessas invenções, aos conceitos éticos e sociais, e aos fatores políticos e econômicos envolvidos no tema.

O acordo TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights), demanda dos países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) a concessão de patentes à produtos e processos em todos os setores tecnológicos, sem mencionar de forma expressa a obrigação de conceder patentes para usos. O texto do acordo TRIPS não especifica qualquer exceção aos novos usos de substâncias já conhecidas, mas também não exige a concessão de tais patentes. Desta forma, o acordo deixa os países signatários livres para determinar suas próprias abordagens em relação ao patenteamento de novos usos (WTO, 1995).

Na prática, os países têm adotado posturas diferentes em suas legislações de propriedade industrial. Alguns não tratam explicitamente dessa questão em suas legislações, como Brasil, China e Japão; outros proíbem expressamente, como a Índia; e há aqueles que em suas legislações permitam expressamente o patenteamento do segundo uso médico, como Estados Unidos e países contratantes da Convenção Européia de Patentes (European Patent Convention – EPC).

Dependendo da interpretação adotada pelo país, as invenções de novo uso médico podem ser direcionadas ao uso de um composto conhecido em:

  • Tratamento de uma doença diferente da descrita no primeiro uso médico;
  • Tratamento da mesma doença do primeiro uso médico empregando um regime de administração diferente;
  • Tratamento da mesma doença do primeiro uso médico empregando uma via de administração diferente;
  • Tratamento da mesma doença do primeiro uso médico empregado em um grupo diferente de pacientes.

A polêmica se intensifica justamente no caso em que se reivindica proteção patentária para o segundo uso médico referente ao tratamento da mesma doença do primeiro uso, empregando um regime de administração diferente. Neste caso, a novidade reside apenas nas características diferenciadas do regime de administração, tais como periodicidade, quantidade, intervalo de doses etc.

No Brasil, a proteção de novos usos não está explicitamente estabelecida na atual Lei de Propriedade Industrial, Lei nº 9.279/96 (LPI). No entanto, o que se observa é que patentes de novos usos são concedidas em todas as áreas tecnológicas.

Tal fato decorre da adoção pelo Brasil do sistema genérico de classificação, que implica na possibilidade de patenteamento de toda a matéria que não é expressamente excluída de proteção na Lei 9.279/96, desde que atenda aos requisitos de patenteabilidade estabelecidos no Artigo 8º da referida LPI. As matérias expressamente excluídas de proteção, por não serem consideradas invenção ou por não serem patenteáveis, estão definidas nos Artigos 10 e 18 da LPI 9.279/96. Nesses artigos não há qualquer menção sobre a exclusão do patenteamento de novos usos. A tabela 2 apresenta tipos de segundo uso passíveis de proteção em alguns países.

Tabela 1: Tipos de segundo uso médico passíveis de proteção em algumas legislações de propriedade industrial

Tendo conhecimento da matéria considerada passível de proteção nas diferentes legislações de propriedade industrial, é necessário verificar se os resultados das pesquisas relacionadas ao segundo uso médico de um composto químico atendem aos requisitos de patenteabilidade especificados em cada legislação estudada.

Na maioria das legislações de propriedade industrial, os requisitos básicos de patenteabilidade se resumem à novidade, atividade inventiva (passo inventivo/não-obviedade) e aplicação industrial (utilidade). Contudo, no caso do segundo uso médico, a interpretação dada a cada um desses requisitos básicos depende da doutrina adotada por cada país/região. Deste modo, é de suma importância o inventor ter conhecimento das diferentes interpretações adotadas antes de depositar um pedido de patente em dado país/região, a fim de evitar o depósito de matéria que não atenda aos requisitos de patenteabilidade estabelecidos.

É possível observar que, até o momento, o desenvolvimento de inovações incrementais ainda reflete a situação da P&D brasileira. Isso porque é inviável para a indústria farmacêutica nacional, de imediato, realizar os investimentos e alcançar a fronteira da tecnologia necessária para o desenvolvimento de inovações ditas radicais. Neste sentido, considera-se que, no atual cenário, pesquisas em novos usos médicos de composto químicos conhecidos podem representar uma opção factível para o setor farmacêutico brasileiro, tendo em vista que neste tipo de P&D não há mais necessidade da densidade tecnológica e investimentos requeridos durante a etapa de pesquisa básica. Ao mesmo tempo, não se deve subjugar a importância das inovações incrementais, que muitas vezes causam mais impacto terapêutico e econômico que uma inovação radical.

Adelaide Maria de Souza Antunes é especialista sênior do INPI e professora emérita da UFRJ.

Adriana CamposMoreira Britto é pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Maria Lúcia Abranches da Silva é pesquisadora do INPI.

*Este artigo refere-se à tese de doutorado da Escola de Química da UFRJ de Maria Lúcia Abranches da Silva, orientada por Adelaide Maria de Souza Antunes e Adriana Campos Moreira Britto.

Referências bibliográficas

Bastos, V. D. “Inovação farmacêutica: padrão setorial e perspectivas para o caso brasileiro”. BNDES Setorial, nº 22, 2005.
Verma, U.; Sharma, R.; Gupta, P.; Kapoor, B.; Bano, G.; Sawhney, V. “New uses for old drugs: Novel therapeutic options”. Indian Journal of Pharmacology, vol. 37, 5, 2005.
Chong, C. R.; Sullivan, D. J. “New uses for old drugs”.
Nature, vol. 448, 2007. WTO – World Trademark Organization. “Trade Related Intellectual Property Rights TRIPS”, 1995. Disponível em http://www.wto.org/english/tratop_e/trips_e/trips_e.htm Brasil. Lei n° 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 15 maio 1996, Seção 1, p. 8353.