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Editorial
O silêncio, o som e o sentido
Por Carlos Vogt
10/09/2013

Na filosofia grega, entre os pré-socráticos, Parmênides, em particular, a fórmula que resume a oposição entre o ser e o não ser, reside também na oposição de duas afirmações: o ser é e o não ser não é .

O que não existe não pode ser afirmado de modo que só o ser pode ser pensado. Nessa linha de exclusão lógica do não-ser, é a impropriedade do uso que se faz do verbo ser que induz ao erro e à atribuição de realidade a situações de ausência e a coisas que não existem tal como a escuridão e o silêncio.

Resumidamente, é assim que Ubaldo Nicola na sua Antologia ilustrada de filosofia: das origens à idade moderna (Globo Livros, 1ª. ed., 10ª. impressão, São Paulo, 2012, p. 29) apresenta “Os enganos do verbo ser” nos itens de seu livro dedicados a Parmênides e a Zenão.

E se por aí fôssemos, então, não haveria mais o que falar sobre o silêncio a não ser silenciar e pronto, o que, se fosse feito agora, aqui neste texto, poderia vir carregado de sentido, como o é, por exemplo, a peça musical de John Cage feita de mais de 4 minutos de ausência de sons, ou os capítulos 55 e 139 do Memórias póstumas de Brás Cubas , de Machado de Assis, também pontilhados de silêncio.

Na verdade, fora da metafísica, a questão do ser e do não ser importa menos do que a relatividade conceitual das categorias da linguagem e do pensamento construídas sobre a tensão da presença e da ausência dos signos e dos processos negativos de produção dinâmica de seus sentidos e significados.

Se para Parmênides os empregos do verbo ser na linguagem induziam ao erro lógico da ilusão de atribuir realidade e existência ao não ser, a estrutura lógica do simbolismo linguístico, tal como a apresenta, por exemplo, o estruturalismo, séculos depois, baseia-se precisamente nesse jogo de luz e sombra, de sonoridade e silêncio, de ausência e presença, jogo, enfim, de oposições que permite descolar das coisas a indagação sobre sua essência e buscar nas suas apresentações e representações o valor simbólico de suas ocorrências.

Quer dizer, o signo é o que ele não é e o que ele não é constitui, portanto, o que ele é.

Ou ainda, no caso da linguagem humana e das línguas, que formam os sistemas simbólicos e semióticos mais perfeitos de que se tem notícia, a materialidade física e sonora dos enunciados não tem a ver diretamente com o que significam nem tampouco com as intenções de comunicação entre os interlocutores.

Entretanto, é pelo jogo de combinações na cadeia horizontal morfossintática dos sintagmas e pelas associações, no eixo vertical, paradigmático, do jogo semântico de oposições entre o dito e o não dito, entre, portanto, o som que ocorre e o silêncio que permite a sua segmentação em unidades discretas de significação que se dá a comunicação linguística e se fiam as condições simbólicas do tecido social.

Por isso, talvez, o provérbio que é dito chinês, mas cujo emprego é global, afirma que o silêncio é de ouro e a palavra é de prata.

Desse modo, não há uma coisa sem a outra e a única possibilidade que se tem para falar do silêncio á a do silêncio que fala da fala, isto é, do silêncio das pausas, dos vazios, das ausências e que permite segmentar as correntes sonoras ou gráficas de uma língua e ordená-las em categorias de significação. É o silêncio certo, posto no lugar certo, que nos permite entender a cadeia de sinais dos enunciados de uma dada língua.

Não saber uma língua é não ser capaz de segmentá-la corretamente em unidades discretas de significação. Não saber uma língua é não conhecer os seus silêncios. Nos termos da Metafísica de Aristóteles, diferentemente de Parmênides e de outros filósofos que o precederam, mesmo o não ser é enquanto-não-ser.

Desse modo, o silêncio tem a realidade do que ele não é: o não som. E se insistíssemos na metáfora, já que na Metafísica se trata da substância do ser e do não ser e, em nosso abuso, trata-se, não de substância, mas de categorias relacionais, poder-se-ia dizer que a causa final do silêncio é o som e que a forma do som é o silêncio.

Há, entretanto, uma outra categoria de silêncio, que, mais uma vez por abuso de expressão, poder-se-ia chamar silêncio “absoluto” e que, no caso se opõe, não propriamente ao som, mas ao ruído, também “absoluto”.

Imaginar esse estado de silêncio e esse estado de ruído é como imaginar uma língua, cujos processos de comunicação por ela permitidos só se fizessem ou bem de diferenças, ou bem de semelhanças, mas não dá combinação das duas, como ocorre, normalmente, com as línguas naturais, no equilíbrio entre os eixos sintagmáticos, da sintaxe, e paradigmático, da semântica e das significações. Só a diferença produz ruído; só a semelhança, silêncio.

Se se quisesse buscar uma representação do jogo de oposições dessas categorias do silêncio, penso que uma forma de fazê-lo seria recorrer à tríade dos contrários apresentada por Robert Blanché no livro Estruturas intelectuais: ensaio sobre a organização sistemática dos conceitos (ed. Perspectiva, São Paulo, 2012, p. 95-108. Original de 1966).

Nesse caso, ter-se-ia um triângulo que disporia, em cada um de seus vértices, de um elemento cujo valor seria produzido negativamente no jogo de oposições das três categorias que formam o sistema conceitual do silêncio, ou do som.

Nessa tríade, o som se opõe ao silêncio que se opõe ao ruído que se opõe ao som e vice-versa, ao contrário.

E como cada um se opõe aos outros dois e todos se opõem, entre si, a todos, não há como pensar um deles, isoladamente do outro, o que faz com que, por extensão e compreensão, o som faz o silêncio, o silêncio faz o som e o ruído se faz da ausência de som e silêncio.