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Reportagem
Modelo obstétrico brasileiro ignora evidências científicas e recomendações da OMS na assistência ao parto
Por Cristiane Kämpf
10/10/2013

Indicação indiscriminada e incorreta de cesarianas. Realização rotineira de episiotomia (corte no períneo) para "facilitar" a passagem da cabeça do bebê. Deitar a mulher em trabalho de parto de costas, em posição antifisiológica. Aplicação de manobra de Kristeller, na qual é feita pressão na barriga para empurrar o bebê para a vagina, e que é proibida em alguns países. Não permitir acompanhante de escolha da mulher e mantê-la sozinha durante o trabalho de parto. Fazer intervenções sem antes explicar o que é e, acima de tudo, sem pedir permissão.

Os procedimentos e condutas listadas são alguns exemplos (há outros, que podem ser conferidos no vídeo-documentário Violência o bstétrica - a voz das brasileiras) do que acontece, com maior ou menor frequência, em maternidades e hospitais públicos e privados no Brasil durante a assistência ao parto. Segundo inúmeros especialistas e pesquisadores da área da saúde contrários à medicalização do nascimento e ativistas da humanização do parto, as incontáveis intervenções médicas praticadas em mães e bebês brasileiros corriqueiramente não são fundamentadas em evidências científicas que as sustentem ou justifiquem. E, além disso, são, há muito tempo, rejeitadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Simone Diniz, médica obstetra e professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), revela que recomendações da OMS publicadas pelo Ministério da Saúde sob o título Assistência ao parto normal – um guia prático e enviadas a cada um dos ginecologistas-obstetras e enfermeiras obstetrizes do país no ano 2000, evidenciam que, ainda hoje, o atendimento ao parto no Brasil se baseia em grande medida naquilo que se busca superar. "A distância impressionante entre o chamado padrão-ouro da ciência e a prática obstétrica no Brasil é um exemplo de quanto a cultura (institucional, técnica, corporativa, sexual e reprodutiva) tem precedência sobre a racionalidade científica, como conhecimento autoritativo na organização das práticas de saúde", afirma a pesquisadora, no artigo “Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento”.

Um exemplo é a prática da cesariana. Enquanto na Holanda o índice fica em 14%, no Brasil, em 2012 o percentual chegou a 55,4%, segundo matéria de julho de 2013, publicada no Instituto Ciência Hoje. Trata-se de um percentual muito superior aos 15% indicados pela OMS. No setor privado, no Rio de Janeiro, por exemplo, o índice já chega a 93% – nos hospitais públicos, 36%, também bastante alto – conforme reportagem recente no jornal O Globo.

Diniz afirma que essa diferença pode ser compreendida quando se analisa os diferentes modelos de assistência obstétrica adotados nos dois países. Na Holanda – assim como na Inglaterra e Alemanha, por exemplo – o parto é entendido como um evento fisiológico, natural, e que, portanto, exige pouca ou nenhuma intervenção médica, sendo que o modelo obstétrico é centrado na autonomia e nos direitos da mulher. No Brasil, a lógica do modelo é centrada nos hospitais e no uso abusivo e irracional da tecnologia. O parto aqui é ainda visto como essencialmente perigoso, um sofrimento que deve ser abreviado pelo médico.

A professora da USP entende também que o parto normal se torna contraproducente no ambiente hospitalar. Segundo ela, "o parto normal é fisiológico, deve se iniciar esponta neamente e leva várias horas para acontecer. A mulher precisa caminhar, precisa de tempo, de sossego, de espaço adequado e isso não é possível dentro de um hospital, pois afeta a produtividade do sistema de saúde".

A indicação indiscriminada da cirurgia, assim como outras intervenções médicas consideradas desnecessárias durante o parto encontram forte oposição também em Melania Amorim, médica obstetra, professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e pesquisadora adepta da medicina baseada em evidências científicas. Em seu blog, a obstetra lista algumas situações em que a cesárea é realmente necessária, tais como quando ocorre prolapso do cordão com dilatação não completa; placenta prévia e herpes genital com lesão ativa no momento em que se inicia o trabalho de parto, entre outras. Mas ela aponta também mais de 135 "condições normalmente associadas à cesariana sem respaldo científico". Em outro post ela questiona estudos científicos citados no site do Conselho Federal de Medicina (CFM). Segundo tais pesquisas, o parto, inclusive para gravidezes de baixo risco (que são a maioria), seria mais seguro no ambiente hospitalar do que em casa – como também defende a corporação médica. A pesquisadora demonstra que a revista Nature, um dos mais respeitados periódicos científicos no qual os estudos haviam sido publicados, recebeu várias cartas ao editor criticando os dados e as análises do autor e, posteriormente, sugeriu a retratação dos autores e a retirada dos artigos pós-publicação.

A questão da medicalização do parto envolve diferentes polêmicas, sendo uma a oposiçãoparto normal versus cesarianae outra, a oposiçãoparto em casa versus parto no hospital. Esta conta com episódios de grande repercussão no Brasil. Em 2012, o Conselho Federal de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) tentou proibir o parto em casa e a presença de doulas (profissionais que apoiam a mulher durante o trabalho de parto) em maternidades, causando revolta em profissionais de saúde e muitas mulheres, que acabaram organizando passeatas em várias cidades brasileiras pelo direito de escolherem onde dar à luz. Outras manifestações também foram organizadas por gestantes em apoio ao médico Jorge Francisco Khun, professor da Universidade Federal de São Paulo, defensor do parto em casa para gravidezes de baixo risco e ativista da humanização do parto. Também em 2012 o Cremerj solicitou que o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) punisse Khun por ter se posicionado publicamente em defesa do parto em casa e contra a indústria de cesáreas sem indicações reais no país. Entretanto, é consenso entre os ativistas pelo parto humanizado que a cesariana é um recurso importante e que salva vidas, quando realmente necessária.

João Luiz Pinto e Silva, médico obstetra e professor da Faculdade de Medicina da Unicamp, defende a realização de cesarianas como recurso para corrigir possíveis desvios no parto, para situações que apresentem riscos para a saúde ou para a vida da mãe e/ou do bebê. Ele afirma que “nada justifica as altas taxas brasileiras de cesarianas, que estão completamente fora do normal e do recomendável cientificamente e que são consequência de uma complexa rede de fatores, na qual predomina uma assistência à saúde e à maternidade bastante inadequada”. O médico e professor, entretanto, é categórico em defender a institucionalização do parto e sua realização dentro do hospital, mesmo para gravidezes de baixo risco. Para ele o parto em casa configura uma situação muito arriscada para a saúde da mulher, do feto e do recém-nascido. “Evidências recentes documentam este risco, que é assim entendido também pela maioria dos países europeus, do continente americano e de todo o mundo, onde o parto domiciliar é muito pouco realizado. As academias internacionais de obstetrícia e de pediatria ponderam recomendações neste sentido, ao mesmo tempo em que condenam a exorbitância de procedimentos desnecessários que estão muito presentes nas instituições hospitalares”. Silva cita o artigo “Home birth 10 times more likely to result in Apgar of 0”, publicado em junho de 2013 no American Journal of Obstetrics & Ginecology, como exemplo de estudo que comprovaria maior risco para nascimentos em casa.

"Nunca questionei o modelo, até acontecer comigo"

Carla Andreucci Polido é obstetra e professora assistente do Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos. Mestre em tocoginecologia e doutoranda em ciências da saúde pela Unicamp, a médica afirma que foi formada acreditando que o parto normal era realmente melhor que a cesárea, mas muito perigoso e imprevisível, dependendo, portanto, de intervenções médicas o tempo todo.

Em seu consultório, Polido realizava mais cesarianas eletivas (com data e horário marcado, sem que a mulher esteja em trabalho de parto) que partos normais, os quais também atendia. Ela nunca havia questionado o que aprendeu na academia, até engravidar e passar por uma cesariana por motivos que considerou fúteis e que a deixou insatisfeita com a forma pela qual seu filho nasceu. "Cheguei à conclusão de que a principal responsável pelo meu não-parto tinha sido eu mesma, uma vez que a assistência que me foi prestada era exatamente a que eu oferecia às parturientes sob meus cuidados".

Certa vez, conta, atendeu uma gestante que apresentava algumas contrações ao termo da gestação e, em consulta de rotina, frente a essa queixa, fez um toque vaginal e descolou suas membranas ovulares (procedimento realizado durante exame vaginal que pode desencadear o trabalho de parto). "Ela sentiu dor e perguntou o que eu fizera, e eu lhe disse. Ela ficou muito brava, e perguntou o porquê do procedimento. E eu não soube explicar! Era algo que haviam me ensinado, e eu fazia, e pronto". A médica admite que isso a incomodou bastante, mais ainda quando essa mulher não voltou para outras consultas e pariu em casa, com uma enfermeira obstetra. "Outros casos semelhantes aconteceram, e eu comecei a me perguntar de onde essas mulheres estavam tirando essas ‘ideias malucas’. Como decorrência, resolvi estudar de novo a assistência ao parto, ajudada por pessoas que já faziam parte do movimento da humanização, e descobri a medicina baseada em evidências, depois de 10 anos de formada."

Foi a partir de então que a obstetra passou a compreender o aspecto fisiológico do parto e rejeitar as intervenções rotineiras e sem bases científicas. Ela afirma que foram mulheres que "promoveram este despertar, e o resto veio de um desejo intenso de praticar a melhor assistência possível, e a obtenção de aprimoramento profissional". Hoje ela entende que casais devem ser informados de todos os riscos e benefícios das vias de parto, para fazerem suas próprias escolhas e que sua autoridade está restrita às indicações reais das intervenções.

Ela afirma que , com raríssimas exceções, toda mulher é capaz de ter um parto normal, e que a exceção é a necessidade da realização de cesariana. Sobre o parto em casa ela diz ser uma escolha possível para casais com uma gestação de risco habitual e que são esclarecidos sobre riscos e benefícios. "A autonomia de escolha do lugar do parto é um direito reprodutivo básico da mulher", finaliza.

A ciência é uma construção social e, assim sendo, está muito longe de ser neutra e isenta de conflitos de interesses, influências e pressões econômicas, políticas e sociais – muitas das controvérsias científicas, inclusive na área da saúde, se dão exatamente devido às dimensões sociais do conhecimento científico. As questões relativas ao atual modelo obstétrico brasileiro e ao movimento pela humanização do parto não ficam distante disso, com agentes determinados a defender seus pontos de vista com base em conhecimento científico, mas também em crenças, cultura e ideologias.

  
O renascimento do parto na telona: ciência e ativismo

O Renascimento do Parto chegou aos cinemas em 09 de agosto deste ano. Nas nove primeiras semanas em cartaz o filme já se revelou como um dos documentários de maior bilheteria nos cinemas do Brasil, com 25.000 espectadores em 30 cidades. O filme foi selecionado para quatro festivais internacionais de cinema e chamou também a atenção da Secretaria Geral da Presidência da República, que solicitou uma exibição seguida de debate no auditório do Palácio do Planalto.

O documentário traz depoimentos e entrevistas com diversos pesquisadores e especialistas ativistas do movimento pela humanização do parto no Brasil e no exterior. Entre eles está o obstetra e cientista francês Michel Odent, a obstetra e professora da Universidade de Brasília (UnB) Maria Esther Vilela, que coordena o Núcleo de Saúde da Mulher e o Programa Rede Cegonha do Ministério da Saúde, a epidemiologista e professora da UnB Daphne Rattner e a médica obstetra Melania Amorim. O movimento parece estar ganhando cada vez mais força no país, sendo respaldado por pesquisadores adeptos da medicina baseada em evidências científicas e encontrando forte expressão em blogs e redes sociais.