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Artigo
Vidas e datas*
Por Alberto Dines
10/02/2014

Recentemente, a caça aos biógrafos proposta por duas empresárias de um grupo de maravilhosos artistas e intelectuais como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Milton Nascimento, alinhados em torno de Roberto Carlos, escapa da esfera bacharelesca e do show-business, ganha extraordinária ressonância porque seus representados são ícones da luta contra a censura e contra a ditadura militar que tantos malefícios trouxeram às nossas vidas e cultura.

A controvérsia sobre a institucionalização da biografia autorizada, chapa-branca – justamente por causa de seus protagonistas – ganha esta incrível dimensão e impõe-se a emergências muito mais graves porque nenhuma contém tantas remissões e referências à tragédia instalada a partir de 1964.

A revolta dos biografados é uma tremenda injustiça às próprias biografias de artistas tão inspirados e corajosos. Quanto mais cedo abandonarem a canoa da arrogância, do delírio e, em alguns casos, também da cobiça, mais fácil se tornará a reconciliação. O marketing inspirou a perniciosa proposta do grupo “Procure Saber”, o marketing será a sua perdição.

Biografia é coisa séria, é jornalismo investigativo somado a esmero narrativo, trabalho de recuperação histórica, arte do reencontro. Tem algo de sublime, simbólica. Quando Plutarco resolveu comparar as existências de grandes figuras romanas com os equivalentes da Grécia, não estava apenas criando uma obra monumental, Vidas paralelas, estabelecia a noção de simbiose das civilizações.

Não existem biografias definitivas – assim como a vida, são incompletas, intermináveis. Mas esta caça aos biógrafos empurra os eventuais biografados para os braços da Santa Inquisição. Desta mácula é difícil livrar-se.

(…)

Com a entrada em cena do meritíssimo Joaquim Barbosa, presidente do STF, o debate sobre biografias não autorizadas ganhou uma repercussão raramente alcançada fora da arena partidária. Mais um pouco pode virar circo. Uma frase do encenador Gerald Thomas na prestigiada coluna de Ancelmo Gois, no Globo, acabou como título de grandes matérias em Veja e Época. Mau sinal.

Os meios intelectuais, midiáticos e o showbiz estão em polvorosa, excitadíssimos com este impagável friforó (free-for-all), especialmente porque entre os contendores está um coletivo constituído pelos sete mais famosos intérpretes e compositores da MPB, ídolos e ícones de algumas gerações de brasileiros impregnados não apenas com seus acordes e versos, mas também por suas convocações.

Do outro lado, um batalhão de notáveis e experientes profissionais de imprensa que optaram pelo gênero biográfico como último recurso para um exercício profissional qualificado e moralmente gratificante. Numa imprensa cada vez mais fragmentada, rasa e rala, a tarefa de reconstituir existências e tempos passados tornou-se a única alternativa para um exercício mais nobre de jornalismo. E quem o constatou foi o jornalista-biógrafo Lira Neto, uma das estrelas do time, na entrevista que concedeu ao programa de TV do Observatório da Imprensa.

 

Duas pontas

Biógrafos podem ser qualificados como bisbilhoteiros, alguns podem até chegar a charlatães – caso de uma tentativa biográfica de Paulo Francis, em boa parte responsável pelo enfarte que o matou –, mas o biógrafo egresso do jornalismo traz em sua bagagem os procedimentos deontológicos que adquiriu nos anos de redação como repórter, redator, editor ou colunista.

Uma entrevista sem pinceladas biográficas não será uma boa entrevista – esta talvez seja a grande falha dos papos sem diálogo, tipo pingue-pongue, hoje uma praga; um personagem recém-aparecido no noticiário precisa ser introduzido como pessoa, não basta reproduzir o seu currículo; o obituário é uma biografia genuína, ao revés, por força da cronologia, o pretexto é a morte do sujeito.

Nas diferentes esferas que compõem o relato jornalístico as técnicas da biografia estão presentes em quase todas, da análise política à crônica esportiva. Fatos não existem sem gente e quem sabe tratar de gente, gentificar, são os jornalistas quase sempre dublês de biógrafos.

É evidente que a capacidade de retratar seres humanos não é exclusiva dos profissionais de imprensa: críticos literários que não se contentam em avaliar obras e avançam em direção dos autores e os raros historiadores capazes de humanizar a história são igualmente confiáveis em matéria ética.

A má vontade do coletivo das celebridades com os biógrafos vem justamente do fato de que muitos são jornalistas qualificados, portanto menos vulneráveis a pressões e/ou seduções. Curioso que essa surpreendente caça aos biógrafos é obra de duas empresárias muito bem sucedidas. Acostumadas com os releases e a comandar dóceis assessores de imprensa nas duas pontas do processo de comunicação, querem transferir este tipo de relacionamento para a esfera literária.

A acusação de que os biógrafos ganham rios de dinheiro em cima dos pobres e miseráveis músicos é uma das mais infelizes gafes já cometidas em nosso mundo cultural. E escancara a gênese do presente baticum: cobiça, despeito, incômodo com a apropriação de suas “mercadorias”. Quando os jornalistas em solidariedade aos biógrafos começarem a boicotar os seus produtos, o que dirão – help?

O que nos leva a concluir que o desagradável episódio começou, engrossou e vai terminar por força do marketing. Em outras palavras: grana, vil metal, propriedade dos meios de produção. A propósito: a mais recente biografia de Karl Marx, Amor e capital, foi escrita pela tarimbada jornalista inglesa Mary Gabriel (com 20 anos de Reuters no currículo).

(...)

Vidas e datas

Empolgados com a telenovela sobre a proibição de biografias, esquecemos um enorme acervo com outros ingredientes e condimentos para animar o debate nacional. O direito de remexer na existência das celebridades, heróis e velhacos é uma questão palpitante, mas convém reconhecer que nesta mesma esfera palpitam demandas de maior transcendência.

Vidas não existem soltas no tempo, espetadas em episódios e coladas ao calendário compõem efemérides que – ao contrário do que sugere o senso comum – nada têm de efêmeras ou momentâneas. São fragmentos de muitas vidas e cujo inevitável encadeamento compõe a caprichosa artífice conhecida com o nome de História.

Esbarramos em efemérides em cada notícia ou página de jornal, mas o exercício de lembrá-las não chega a ser um esporte nacional. São complicadas, rebeldes, difíceis de explicar e, geralmente, mais demoradas do que a data designada para lembrá-las. Quanto mais vivemos mais efemérides se acumulam e, tal como no “Chão de estrelas”, de Orestes Barbosa, nelas pisamos distraídos, desatentos ao seu significado e advertências.

(...)

O desconforto dos críticos com as biografias

O primeiro dos três volumes da biografia de Getúlio Vargas, de Lira Neto ( Getúlio – 1882-1930. Dos anos de formação à conquista do poder, 624 pp., Companhia das Letras, São Paulo, 2012), foi acolhido generosamente pela imprensa. Resenhistas de alto nível, destaque, espaço e, sobretudo, boa-vontade marcaram o lançamento.

O caso de Olga, de Fernando de Morais, foi diferente: a espetacular repercussão 27 anos atrás (1985) deveu-se, sobretudo, à entusiasmada capa de Veja, então engajada na modalidade de criar o “livro do ano” mesmo com o ano mal começado. O resto da imprensa foi na onda com igual empenho. Não chega a ser uma biografia clássica, falta-lhe talvez o indispensável suporte psicológico, em compensação oferece um trepidante e trágico relato sobre a figura central que sai do livro direto para o panteão nacional.

Entre a biografia do caudilho gaúcho – que praticamente entregou a militante judia nas mãos da Gestapo – e a da sua vítima, é preciso registrar a trilogia biográfica de Ruy Castro publicada nos anos 1990 e protagonizada por Nelson Rodrigues, Mané Garrincha e Carmen Miranda. Sucessos editoriais extraordinários e não apenas pela fama dos personagens, mas pela habilidade do biógrafo em ressuscitá-los com um fantástico arsenal de informações. Muito contribuiu para isso sua convivência com o biografismo americano, legítimo herdeiro do britânico, seguramente a matriz do gênero.

Histórias de vida

O que chama a atenção na fortuna crítica do primeiro tomo de Getúlio é a falta de naturalidade dos resenhistas, sejam eles historiadores, politólogos ou mesmo jornalistas – portanto confrades – com a profissão do autor, jornalista consagrado com 25 anos em redações.

“Biografia jornalística”, “estilo jornalístico”, “pesquisa jornalística” são expressões que, embora em contextos inequivocamente elogiosos, não disfarçam uma atitude diferenciadora. Não chega a ser preconceito ou discriminação, é apenas uma caracterização, porém absolutamente desnecessária. E reveladora.

Qual seria a diferença entre uma biografia sem hífen nem aposto adjetivo e uma biografia “jornalística”? Uma narrativa é eletrizante ou fascinante qualquer que seja o ofício anterior do narrador. Esta falta de naturalidade decorre de antigas incompreensões no tocante à definição do que é biografia e tem a ver com uma obsessão classificatória, “científica”, que no mundo multidisciplinar de hoje não faz qualquer sentido.

Historiadores preferem empurrar biografias para o escaninho da literatura, mesmo quando fundadas em rigorosa pesquisa documental. Na área dos estudos literários, as biografias são direcionadas para a esfera jornalística e mesmo nesta, sobretudo quando se trata de biografias de escritores, são carimbadas como literatura.

Tantos cuidados, segregações e segmentações já deveriam ter sido eliminados há muito tempo. Raimundo Magalhães Jr. (1907-1981) foi repórter, homem de redação e autor de uma vintena de histórias de vida (além de dramaturgo, contista e ensaísta), mas suas biografias jamais foram acondicionadas em um subgênero. Algumas provocaram fortes emoções (caso de Rui, o homem e o mito, que ousou questionar a infalibilidade de uma glória nacional com dados rigorosamente pesquisados), não porque era jornalista, mas porque fez o dever de casa de qualquer biógrafo – questionar o biografado. Numa sociedade tribal como a nossa, a biografia geralmente segue os cânones da hagiografia.

Já o crítico literário Eloy Pontes (que assinava sua coluna em O Globo como E.P.) escreveu nos anos 1930 e 40 uma série de biografias com títulos apelativos ( A vida Inquieta de Raul Pompeia, A vida dramática de Euclydes da Cunha, A vida contraditória de Machado de Assis etc). Ninguém o enfurnou numa categoria; eram apenas medíocres.

Álvaro Lins, Gilberto Freire e Luiz Viana Filho teorizaram sobre as histórias de vida e lhes conferiram um status definido, sem qualquer downgrading depreciativo ou despectivo: são obras plenamente literárias e plenamente historiográficas. Jornalísticas apenas se o seu lançamento obedeceu a algum impulso relacionado com a atualidade. Mais recentemente Sérgio Vilas Boas ofereceu dois estudos sobre a biografia contemporânea brasileira: Biografias & biógrafos e Reflexões sobre a escrita da vida.

A jornalista Judith Lieblich Patarra preferiu designar o seu Iara como “reportagem-biográfica” – a modéstia é injustificável porque a trágica história da psicóloga e militante política Iara Iavelberg nada fica a dever em matéria de densidade às biografias de Fernando Morais e de Ruy Castro.

Literatura sob pressão

Exemplo dos estranhamentos e implicâncias que envolvem os estudos sobre o biografismo no Brasil é oferecido pela emérita professora da USP Walnice Nogueira Galvão, em “A biografia e o novo biografismo”, publicado na Revista da Biblioteca Mário de Andrade (nº 67, 2011), versão atualizada do texto “ A voga do biografismo nativo ” ( Estudos Avançados, set/dez 2005), por sua vez adaptada de um ensaio na Folha de S.Paulo” (“ Heróis do nosso tempo ”, 5/12/2004).

Em cada uma dessas versões, recortes diferentes, sempre restritivos, visivelmente ideologizados – ora os biógrafos são confinados num gueto porque seus protagonistas são judeus (as primeiras biografias de Lira Neto eram de cearenses ilustres e ninguém o discriminou por isso), ora não são “de esquerda”, ora as biografias literárias “são mais eruditas”, ora estão colocadas ao lado de romances-reportagem e depoimentos pessoais. A Ilha, de Fernando de Morais (1976) sobre Cuba, é apontada como paradigma do novo biografismo porque é a biografia de um país. O que é isso , companheiro, de Fernando Gabeira, é apontado como carro-chefe de uma segmentação do memorialismo – o político em contraposição ao memorialismo “de alto nível estético” (Pedro Nava).

Evidencia-se a falta de serenidade para avaliar a contribuição dos jornalistas ao novo biografismo brasileiro e isso, evidentemente, terá que ser feito por alguém que conheça não apenas o dernier-cri das teorias literárias, mas também as técnicas da reportagem, da entrevista, das remissões, dos desdobramentos factuais e o manejo do contraditório. Só assim será possível tirar da biografia seu ranço beletrístico para convertê-la numa harmoniosa combinação de literatura, historiografia e jornalismo.

Falta, sobretudo, a compreensão de que a saudável incursão de jornalistas no gênero biográfico decorre principalmente do empobrecimento do jornalismo impresso. A imprensa americana reagiu à TV com o New Journalism (que Gabriel García Márquez, ele também oriundo de uma redação, chama de Jornalismo Narrativo e outros de Jornalismo Literário). A solução brasileira foi, como sempre, mais sofrida, solitária e mais criativa: barrados da grande imprensa foram lutar em outra trincheira, a revitalização da biografia.

No momento, importa registrar que o tomo I de Getúlio, de Lira Neto, é uma biografia maiúscula: um bildungsroman, romance de formação, e, apesar do nome, uma elaborada reconstrução dos tempos, ideias e eventos que marcaram a vida do político que, anos depois de sua morte, continua impondo seus paradigmas à cena política nacional.

A brevíssima epígrafe desta monumental biografia (“Sou contra biografias”) é um achado literário, não tem nada de “jornalístico”. É coisa de narrador experimentado que mais tarde irá comprovar o contrário: Vargas adorava biógrafos e elogios.

Jornalismo é literatura sob pressão, escreveu o grande crítico e ensaísta Tristão de Athayde (Alceu Amoroso Lima). Seus herdeiros não compreenderam o que isso significa.

*Textos publicados originalmente pelo jornalista no Observatório da Imprensa.