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Reportagem
Generalizando a vida real. O que retratam as cinebiografias?
Por Cristiane Delfina
10/02/2014
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“Estou aqui na propriedade de Irapurú, mas eu nasci na cidade de Santa Cruz, daqui a trinta quilômetros, no 1903, no dia 23 de julho. De forma que sou um homem da agricultura...o homem do campo, e gosto da vida do campo. Agora, me falaram lá em Natal, me perguntando se eu aceitava ser televisionado. Eu estranhei, porque, realmente, eu não era um homem da altura, da vaidade, mas aceitei, fiquei satisfeito. E vieram me televisionar. Tô gostando porque eles tão televisionando dentro da simplicidade, televisionando gado, agricultura, conversando com os moradores, e também, e fazendo essas perguntas, mas tudo dentro da simplicidade. E que todos nós gostamos de atenção. Não há que não goste de um agrado. E eu gosto(...)”

A transcrição acima é do início da fala de Theodorico Bezerra, um dos últimos coronéis do Rio Grande do Norte, documentado por Eduardo Coutinho, premiado documentarista brasileiro, morto tragicamente em 2 de fevereiro. O filme intitulado Theodorico, i mperador do s ertão , foi feito em 1978 para o programa Globo Repórter, e o próprio personagem se apresenta, entrevista e quase dirige os empregados de sua fazenda, chegando a dizer o que eles sentem e pensam. Uma condução condizente com quem Coutinho encontrou, e que poderia até ser uma autobiografia, se o senhor Bezerra também se ocupasse da montagem do filme.

Segundo seu próprio relato, Theodorico Bezerra não era um homem da "altura" nem da "vai dade" para ser biografado, mas sentiu-se lison j eado com a oportunidade. Qual seria, então, a importância de se registrar a vida de alguém como ele em filme? Seria o registro de uma personalidade única ou uma generalização? De qualquer forma, esse tipo de obra atrai cada vez mais a atenção.

Graziela Cruz, no artigo "Biografias no cinema: resgate da memória individual e coletiva" relaciona o aumento das produções cinematográficas do gênero, no final do século XX, à boa recepção do público e ao aumento das biografias literárias publicadas no Brasil e em outros países, já que muitos filmes partem de livros. Espectadores sentem-se atraídos pela ilusão de que a vida possui um sentido, e conforme adentram as histórias se identificam com as personalidades que conhecem.

Dados da Ancine mostram que Lúcio Flávio – passageiro da agonia (1977), de Hector Babenco, ocupa o 6º lugar entre todos os filmes brasileiros campeões de bilheteria nos últimos 40 anos, atrás somente de Tropa de e lite 2 , Dona Flor e seus dois maridos, Se eu fosse você 2 e filmes da Xuxa e dos Trapalhões. O fime que relata a história do famoso assaltante de bancos da década de 1970 obteve contagem de bilheteria de mais de 5,4 milhões de pagantes, seguido por Dois filhos de Francisco (2005), dirigido por Breno Silveira, visto por 5,3 milhões nos cinemas. Logos depois da biografia ficcionada da dupla sertaneja Zezé de Camargo e Luciano, grandes produções foram lançadas seguindo os mesmos moldes: Chico Xavier, Bruna Surfistinha e Somos tão jovens (sobre o cantor Renato Russo), e não passaram desapercebidos em meio aos filmes americanos.

Esse crescimento das biografias cinematográficas traz inúmeras reflexões, dentre elas o ponto sobre o entendimento futuro da obra. É sempre importante levantar o momento em que o filme foi produzido e lançado, ou a trajetória política da personalidade retratada, para se ter visão crítica de que uma biografia pode não ser somente um registro artístico ou jornalístico, mas inclui intenções contemporâneas ao seu lançamento/exibição.

Em 2010, a polêmica cinebiografia do então presidente Lula, produção cara e ambiciosa dirigida por Fábio Barreto, alimentou discussões até mesmo antes da estr e ia, por ocorrer às véspera de eleição presidencial. Em análise minuciosa , no texto “Lula, filho do Brasil: de retirante da seca à presidência da R epública – uma história, muitos sentidos", Aline Torres Souza Carvalho e Guilherme Jorge de Rezende concluem que "a principal crítica feita a essa cinebiografia, pela opinião pública, é a acusação de que ela é mais eficiente como uma propaganda política que como cinema. O que se pode afirmar, a princípio, é que ela é uma propaganda, até política de certa forma, mas, sobretudo, uma propaganda da indústria cultural. A história do ex-presidente do Brasil tornou-se um produto comercializável. Sua vida adquiriu status de imagem na sociedade da visibilidade. Resta ao telespectador decidir se compra ou não esse produto e com que moeda deve pagá-lo".

No Reino Unido, o filme sobre a ex- primeira ministra Margaret Thatcher , A d ama de f erro , lançado em 2011 e dirigido por Phyllida Lloyd , também gerou polêmica por tratar de uma personalidade que marcou a história e por trazer opiniões divergentes. Segundo Ronaldo Pelli , em texto na R evista de História da Biblioteca Nacional , acusavam o filme de omisso à face liberal da ministra, enquanto para ele a proposta seria mostrar uma mulher forte e com princípios. Para Carla Luciana Silva, docente do curso de h istória da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, em uma crítica publicada no site Pittacos, uma produção como essa perigosamente tornou a líder "admiravelmente" autoritária e omitiu o contexto em que se movia.

Organizando as memórias

Para Marcio Markendorf, doutor em literatura e professor do curso de cinema da Universidade Federal de Santa Catarina , as biografias e cinebiografias adquirem o papel de organizadoras de memórias, organizações repetidas em produções que podem refletir valores ou mesmo induzi-los, formatando registros que deveriam ser únicos – como cada indivíduo é – em fórmulas e caracterizações de vida.

Ele diz, ainda, que biografias e cinebiografias contêm predicados de gênero em sua construção, via memória social: o feminino tem como atributos a fragilidade e o emocionalismo; o masculino, a força e o racionalismo. E, culturalmente, por associar-se o feminino à mulher e o masculino ao homem, matriz tradicional de identidade na qual o gênero corresponderia imediatamente ao sexo biológico, a primeira está condenada às dores do amor e o segundo, aos resultados dos excessos de uma personalidade viril. Tem-se também o sucesso e ascensão conquistados pelo trabalho árduo e persistência, como podemos observar, inclusive, em Lula: filho do Brasil e Dois filhos de Francisco, em que os protagonistas vivem a infância em lugares pobres e com poucos recursos, mas perseguem seus objetivos até atingir o sucesso na carreira, no caso dos músicos, e a presidência da República no caso do político.

Personalidades podem ser retratadas como marcos representativos de suas sociedades, seus gêneros, áreas de atuação, etnias, religiões, maneiras de moldar a memória do mundo. E no caso do cinema esses registros passam por muitas mãos, olhos e ouvidos até tornarem-se ora filmes de ficção que enfeitam, adicionam e subtraem referências e narrativas que nunca fizeram parte da vida dos retratados, ora em documentários que expõem documentos e depoimentos na tentativa de disciplinarem as memórias.

Em entrevista para a então estudante Mariana Simões, em 2011, Eduardo Coutinho afirmou: "Me interessa que as pessoas tratem de sua vida. A partir de suas vidas, as pessoas vão ter opiniões de direita e esquerda, tanto faz, mas que são viscerais. Eu não estou interessado no conteúdo social da vida da pessoa, eu estou interessado no que a pessoa fala a partir de sua experiência sabendo que, como é memória, toda memória é mentirosa, portanto tem verdade e mentira juntas, isso é inevitável".

O documentarista destacou-se em sua área de atuação adentrando o universo psicológico dos entrevistados e explorando a relação câmera versus personagem, sem se preocupar com as factualidades. Filmes como Jogo de cena (2007) levantaram discussões justamente sobre depoimentos e encenações, verdades e mentiras.

Celso Sabbadin, jornalista e crítico de cinema, dirigiu o documentário Mazzaropi, lançado pela Imagem Filmes em 2013. Ao falar de sua experiência com o filme, afirma como ser jornalista foi determinante para o resultado, uma vez que o cineasta costuma priorizar a estética da linguagem cinematográfica, enquanto o jornalista prioriza o conteúdo.

"Eu tinha em mente duas linhas básicas de investigação: como era, na vida cotidiana, esse ser humano chamado Mazzaropi, e o que justificaria seu sucesso tão desproporcional. Sabia também que não queria fazer uma hagiografia (ou seja, endeusar o personagem a qualquer custo), nem o que eu chamo brincando de 'googlomentário’, ou seja, um documentário com as mesmas informações que já estão no Google. Como jornalista, eu queria ouvir diferentes correntes e tendências e colocar todas no filme, sem a interferência do meu gosto pessoal".

Nos depoimentos captados, Sabadin deparou-se com contradições sobre a personalidade do biografado, o que considerou importante e positivo: "Tem gente que diz que Mazzaropi era pão duro, tem gente que diz que era generoso. Tem gente que diz que ele era amigão de todos, tem gente que diz que ele era fechado e reservado, tem gente que diz que ele era genial, tem gente que diz que ele era meio tosco e assim por diante . Isso foi ótimo, pois mostra que Mazzaropi, acima de tudo, era uma pessoa comum, plural como todos nós, e não unidimensional”.

Generalizadas ou não, cinebiografias não tratam somente dos biografados. Como afirma Marcio Markendorf, s e postos em paralelo, o empreendimento de um biógrafo e a tarefa de um roteirista (de drama biográfico) têm equivalência: ambos contam uma história a partir de uma interpretação pessoal. “O meio de circulação da obra será o princípio ordenador da história. E o cinema, em vista do caráter coletivo da construção, contará com outras interpretações diferentes para a mesma história concebida pelo roteirista, por exemplo, por parte do diretor de fotografia, da direção de arte, da direção de atores etc. Ou seja: quanto maior o número de intérpretes, mais distante também uma história pode ficar daquilo que – problematicamente – se chama real ou verdade. A força das cinebiografias reside, pois, nesta capacidade de tratar a vida de sujeitos de forma dramática, romanesca e condensada e, assim, transformar o espectador mais próximo do biografado do que aquela figura descrita nos livros. Com uma conexão entre os fatos mais evidente, como é a proposta da narrativa clássica do cinema, o público acaba por entregar-se muito mais às próprias emoções, uma vez que está diante de uma verdade poética”, finaliza.