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Editorial
A bola de capotão
Por Carlos Vogt
10/04/2014

Tenho algumas lembranças atadas ao futebol e com ele penduradas na presilha dos pressentimentos. Claro que dos pressentimentos que, passados, já deram certo ou deram errado, isto é, acertaram no erro, ou erraram no acerto. São pressentimentos lanterna na popa. Não mudaram nada na vida, nem na história de ninguém, a não ser na minha própria, se é que se pode chamar mudança as pequenas inscrições da memória incisas em paredes invisíveis e que ajudam as lembranças a não perder-se inteiramente no labirinto do tempo.

A mais antiga e mais persistente é a do Natal em que achei, menino em Sales Oliveira, que os presentes recebidos eram poucos, pequenos, sem sentido diante do sentimento de que me faltava com urgência uma bola de capotão, igual às tantas que vi meu pai fazer, ou consertar na selaria. Ganhei a bola com dois dias de atraso, depois do Natal, tempo triste de ansiedade e de espera para o menino, mas necessário e imprescindível para que a pelota fosse confeccionada pelo meu pai.

Joguei muito futebol nos campinhos de terra e de grama de Sales Oliveira e a bola de meu Natal tardio deu-me, durante o tempo em que permaneceu redonda, além do prazer do jogo, o prazeroso gostinho de ser o dono da bola e, independente do desempenho e da concorrência, permanecer na quadra o tempo que quisesse.

Jogava-se descalço e a bola tinha uma irregularidade constitutiva decorrente de duas características físicas e funcionais importantes. A primeira é que ela era feita de duas partes independentes, mas atadas: a câmara de ar com o bico e a cobertura de couro, costurada em gomos, que a abrigava; a segunda, consequência da primeira, é que o arremate da esfera de borracha, ar e couro, era feito no manchão que cobria o bico que, dobrado e espremido para não sair o ar, formava, com a costura também em couro, uma protuberância da qual, teoricamente, se fugia nos chutes também de bico, que os pés descalços sabiam perigosos, mas que nem sempre conseguiam evitar.

Nas bolas paradas o ritual se cumpria. Com a pelota rolando, ou saltando, dependendo das condições do campo e de suas próprias condições anatômicas, a conversa era outra e o que havia de dedo machucado na peleja só era comparável ao número de gols que generosamente se registravam em cada partida para ambas as equipes adversárias.

Num domingo de maio de muitos anos atrás estava agendada a minha Primeira Comunhão com terno azul marinho de calças curtas, meias brancas, sapato preto, camisa branca e gravata.

Sábado era dia do enfrentamento futebolístico da turma da linha de cima e da turma da linha de baixo, a qual eu pertencia. Num sábado o jogo era em um campinho no extremo da cidade perto da saída para Nuporanga e no outro, em um campinho ao lado da estação da Mogiana, cuja estrada de ferro era responsável por essa geografia esportiva que, se não dividia nossos corações e mentes, nos rivalizava para a disputa do futebol e para o jogo de outras disputas.

E aqui entra o pressentimento. De mãe, de minha mãe que, logo no sábado, pela manhã, me disse que não fosse jogar futebol naquele dia, véspera de minha Primeira Comunhão, para não correr o risco de me machucar. Dito e feito. Concordei com ela pela manhã e discordei à tarde quando, carregando minha bola de capotão, fui me juntar ao time da linha de baixo para, mais uma vez, enfrentar o da linha de cima numa partida memorável pelo que aconteceu com o meu dedão do pé direito.

Tudo ia bem até que, com os gritos, apitamos uma falta contra os adversários. Como eu era dono da bola, era também, ao menos em parte, dono das decisões: fui escolhido para bater a falta.

Ajeitei a pelota em cima de um tufo de grama para ajudar a levantá-la com o petardo; posicionei a face do bico e do manchão voltada para o goleiro; tomei a distância que calculei necessária para imprimir força ao chute e objetividade de gol à bola; tomei impulso corri e desferi uma pancada formidável com a ponta do pé, quer dizer dei um chute de bico, com a força necessária para furar a meta do guardião e acertei em cheio o tufo de grama.

A bola mal se mexeu e a grama nem se tocou. Mas a minha unha sentiu todo o impacto do insucesso da empreitada. Foi praticamente arrancada junto com um tampão na ponta do dedo o que me fez chorar, urrar de dor e sair, aos prantos, em choros e gritos para casa. Não sem esquecer a bola, que apesar de tudo levei comigo, num abraço de solidária derrota.

Eu chorava de dor, pelo ferimento que era feio, chorava de medo, pela bronca que levaria e chorava de arrependimento por não só não ter ouvido minha mãe como tê-la enganado, fingindo concordar com a sua prudência e sendo temerário, sem precaução.

Chorei mais ainda aos pés de Santa Terezinha e de Santa Rita, no quarto de minha irmã e mais chorei, contudo, depois de feito os curativos e a desinfecção do machucado, diante da perspectiva de não ir à festa da Primeira Comunhão, ou, o que era pior, ir de terno com um pé de sapato e outro de chinelo.

Quando meu pai chegou da selaria as coisas se resolveram com a solução que ele encontrou: cortar o bico do pé direito do sapato de modo que a assimetria não fosse total e a minha infelicidade não fosse completa.

Fui à cerimônia, fui iniciado no rito, fui à festa para celebrar com meus pais, com a família, com os amigos das duas linhas e fui fazer a foto que registra o menino ajoelhado com o terço, com o terno, com a camisa e as meias brancas, com a gravata mas não deixa perceber nem o sapato com o bico cortado, nem a comunhão do futebol com a alegria e a dor, com o prazer e o sofrimento.