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Entrevistas
Katia Rubio
Nos últimos 13 anos a professora da Escola de Educação Física e Esporte da USP Katia Rubio se dedica a registrar a história de todos os atletas olímpicos da história do Brasil, e um dos resultados do estudo estar� disponível em breve, com o lançamento de uma enciclopédia. Abaixo, a bacharel em jornalismo e psicologia, mestre em educação física e doutora em educação fala sobre o que tem aprendido com os protagonistas da cena esportiva nacional. E, às vésperas de uma Copa do Mundo e de uma Olimpíada no país, não est� otimista.
Valéria Zukeran
10/04/2014

Estamos a dois meses da Copa do Mundo e a dois anos de uma Olimpíada. Como voc� v� a situação do país em função dos dois eventos? A expectativa inicial em relação ao desenvolvimento dos esportes brasileiros est� se cumprindo?

Eu não vejo a Copa do Mundo servir a esse propósito. A Copa do Mundo não tem qualquer relação com o desenvolvimento do esporte no Brasil. � um negócio, e um negócio que vai causar um prejuízo muito grande tanto do ponto de vista material quanto do ponto de vista moral. Estamos a poucas semanas da Copa e o que se v� � um exemplo de m� gestão e mau planejamento, uma vez que estádios não estão prontos e h� construções superfaturadas, além de obras de infraestrutura prometidas para as cidades-sede que não foram feitas. O que fica � um grande prejuízo para a nação. E ser� uma festa para gringos verem porque o público brasileiro ter� pouco acesso aos estádios e aos jogos.

Voc� faz um trabalho envolvendo os atletas olímpicos. Qual a expectativa em relação aos Jogos Olímpicos no Brasil? Afinal, ao mesmo tempo em que teremos uma Olimpíada em casa, temos os gastos, que não serão poucos...

Com os Jogos Olímpicos a situação não ser� muito diferente (da Copa) porque os investimentos que se esperavam para o desenvolvimento do esporte não aconteceram como se desejava. H� apenas alguns poucos investimentos nos atletas com chances de medalha para 2016 e isso não � desenvolvimento esportivo. E, mesmo assim, o número de medalhas que o Brasil vai ganhar não deve ser muito maior do que nas três últimas edições, porque o tempo necessário para o desenvolvimento de um atleta de nível olímpico � de oito a doze mil horas de treinamento. Não existe mágica. Ninguém ser� formado em dois ou quatro anos para chegar aos Jogos Olímpicos e ser um expoente, porque isso � impossível. Atleta olímpico se faz com treinamento, com preparação e planejamento, e isso não aconteceu. Talvez seja um pouco diferente do evento da Fifa, pois a Olimpíada � mais concentrada � tudo acontecer� no Rio de Janeiro. Porém � um Rio que tem de se transformar completamente em dois anos. E, assim como não se forma um atleta da noite para o dia, não se muda uma cidade em um estalar de dedos. Veja que recentemente foi anunciada a demissão da pessoa que ocupava a presidência do comit� gestor da cidade do Rio de Janeiro (a Empresa Olímpica Municipal). Ela pediu demissão porque o projeto da matriz de responsabilidade não � aprovado. De quem � a responsabilidade? Do governo federal, estadual e municipal. A matriz define de quem são as responsabilidades, os investimentos. Se isso não est� aprovado, significa que as obras não estão sendo feitas.

Detalhe seu trabalho com os atletas olímpicos. Imagino que localizar alguns deles seja complicado.

São treze anos de pesquisa e s� agora as pessoas têm um pouco mais de informação a respeito dela. J� temos 1200 entrevistas realizadas com 1816 atletas e o levantamento do número de falecidos em 320. Estamos perto de fechar esses números, porque h� uma quantidade de atletas inacessíveis, cerca de duas centenas, quase todos do futebol. � uma modalidade na qual os atletas jogam fora do país e, curiosamente, não têm identidade com o esporte olímpico. Nós telefonamos, fazemos o contato e pedimos a entrevista, mas eles têm coisas mais importantes para fazer do que falar com uma professora da USP para uma pesquisa olímpica. Enfim, estamos na reta final da coleta de dados e de entrevistas, e começamos a produzir o material acadêmico a respeito dessas informações. Para este ano teremos o lançamento da enciclopédia olímpica brasileira, na qual essas histórias serão apresentadas no formato de verbetes biográficos. Cada atleta ser� retratado como um verbete com a síntese de sua história de vida.

Seu trabalho permite o contato com atletas que h� muito tempo j� encerraram a carreira, enquanto outros ainda estão em atividade. Hoje, por exemplo, se fosse explicar a diferença entre um atleta dos anos 1960 e um da atualidade, o que chamaria mais a atenção, além do conhecido amadorismo antigo e do atual profissionalismo?

Amadorismo e profissionalismo determinam as trajetórias e também a identidade do atleta. Mais do que treinar por amor, que o amadorismo preconizava, h� a relação profissional estabelecida entre aquilo que o atleta faz e o desenvolvimento de sua trajetória de vida. Se at� os anos 80 as pessoas se dedicavam at� os 25 anos, aproximadamente, para o esporte, e buscavam estudar, vislumbravam alternativas para o pós-carreira, isso se transformou a partir dos anos 80, com a perspectiva de ganho material com a atividade esportiva. As carreiras tornaram-se mais longevas, e h� a expectativa de aproveitamento do atleta também após a “aposentadoria�, a continuidade da carreira esportiva na condição de dirigente, técnico ou gestor.

Das entrevistas que fez, o que mais surpreendeu ao desvendar a história de um determinado atleta?

Todos os atletas que foram aos Jogos têm histórias muito interessantes, porque ser atleta olímpico no Brasil � uma aventura, e a conquista da vaga olímpica � uma superação tanto dos limites individuais quanto de limites sociais � superação da falta de apoio, de condições materiais, de conhecimento técnico... Tudo isso � incrível. Mas o que chamou a atenção, especialmente, são as famílias de alguns atletas j� falecidos que não sabiam que eles tinham sido olímpicos. � incrível! Nos deparamos com três famílias que não sabiam ou que tentavam esconder esse passado.

Mas por que esconder?

Questões familiares, como o homem que se separou e casou de novo e a nova mulher faz questão de apagar o passado dele. Também um caso de ex-marido. Isso dificulta o trabalho de preservação de memória. Encontramos um atleta que participou da Revolta da Chibata e por isso a família tentou, de alguma forma, não falar do passado dele, com receio de suscitar essa participação. Ele era marinheiro, e � uma história realmente maravilhosa. Outra coisa surpreendente são atletas homônimos de atletas olímpicos, e quando fazemos o contato eles inventam uma história para participar do projeto. J� houve dois casos desses. A pessoa se d� ao trabalho de criar uma história sobre si mesmo para ter a foto aparecendo no facebook, ou seja l� o que for. Isso acaba sendo tão importante nesse contexto da pesquisa quanto � história dos atletas, que eu me sinto constrangida de dizer: “gosto mais dessa ou mais daquela� porque para mim todas são muito especiais.

Voc� contou com ajuda por parte das entidades esportivas no acesso a dados?

Nenhuma, pelo contrário. Fazemos um trabalho de detetive. Tenho uma equipe de três pessoas que buscam incessantemente os falecidos e atletas que sumiram. Fazemos um levantamento em jornal de época e contato com a família. Toda e qualquer pista � sempre muito valiosa. As instituições que colaboram são os clubes � isso eu não posso deixar de citar, pois têm sido grandes parceiros. Também o CNPq e a Fapesp, que entraram com apoio material para que esse projeto se realizasse ao longo de quinze anos e, recentemente, um aporte pela Lei Rouanet e o Bradesco � para a publicação da enciclopédia.

Como � o relacionamento dos atletas com a maioria dos dirigentes? � difícil para um atleta em atividade ser crítico, por temer represálias, mas os que encerraram a carreira devem se sentir mais � vontade.

H� diferentes momentos históricos e essas relações são contextualizadas. H� a época na qual o esporte � dirigido pela aristocracia, com atitude muito blas� em relação � prática esportiva. H� o momento no qual começa a entrar dinheiro nas institui ções, e isso muda a atuação do dirigente, com inúmeros casos de corrupção relatados pelos atletas. Além disso, h� a dificuldade muito grande em fazer o atleta ocupar, na entidade esportiva, o papel que lhe cabe, que � ser protagonista de tudo. H� uma disposição, um trabalho quase hercúleo, das instituições em afastar os atletas das posições de gestores e partícipes das grandes decisões. � absolutamente surreal porque são eles que promovem toda a existência do movimento olímpico.

Existe uma reclamação de longa data no meio esportivo no que diz respeito � longevidade dos dirigentes nos cargos de chefia das entidades. Existe alguma opção fora do país que se possa usar como exemplo?

Isso � uma característica da organização olímpica desde sua formação. Eu, recentemente, publiquei a seguinte frase do Barão Pierre de Coubertin (criador da versão moderna dos Jogos Olímpicos) “Nós não nascemos para ser um sistema democrático�. Em suma: que se dane a sociedade � nós achamos que � desse jeito e assim ser�. Voc� tem desde a fundação uma instituição que não se organiza para ser democrática, mesmo que se passe um século e se transforme como o mundo se transformou no século XX. A estrutura tem uma cultura que não est� preocupada com a democracia, mas com o sistema criado para ser ele mesmo: aristocrático, feudal, autocrático. E pouco importa a sociedade. Mas o que o Barão de Coubertin não viu e que os dirigentes esquecem � que todas as entidades esportivas dependem dos estados nacionais e das organizações sociais. Não adianta fazer um discurso de autonomia que não corresponde � realidade da sociedade e do esporte contemporâneo. Como o esporte do Brasil vive? Das verbas da Lei Piva. E de onde vem a verba da Lei Piva? Do poder público. Então, que autonomia � essa? Parece criança quando quer sair da casa dos pais: “quero viver sozinho, mas me d� uma mesada de R$ 10 mil para eu poder me sustentar�. Extruder Machine

Existe luz no fim do túnel? � possível ter esperança mesmo vendo as instituições mal geridas? � possível pensar em um esporte brasileiro forte no futuro?

A esperança est� na mudança das estruturas. Se elas mudarem, eu acredito que sim. Mas sem que ocorra essa mudança de cadeira, de nomes, de rostos, de identidade, isso não vai acontecer. Vai haver a perpetuação de um sistema corrompido, viciado e que em nada contribui para o desenvolvimento do esporte, porque a máxima � tirar proveito daquilo que o esporte d�, e não desenvolver aquilo que o esporte pode ser.