REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
A longa marcha para a imobilidade - Carlos Vogt
Reportagens
A trajetória da solidez de uma ideia em transformação
Rodrigo Cunha
Os caminhos atuais do evolucionismo
Ana Paula Morales
Humano, demasiadamente orgânico?
Danilo Albergaria
A corrente econômica que veio da biologia evolutiva
Fábio Reynol
Alessandro Piolli
Um Darwin “humanizado” circula pelo mundo
Enio Rodrigo
Artigos
Ao redor de Charles Robert Darwin
Dalton de Souza Amorim
O ensino da evolução biológica: um desafio para o século XXI
Rosana Tidon
Eli Vieira
Afinidades entre Karl Marx e Charles Darwin
Igor Zanoni Constant Carneiro Leão
Porque somos como somos? A psicologia evolucionista e a natureza humana*
Maria Emília Yamamoto
A evolução da teoria darwiniana*
Charbel Niño El-Hani
Diogo Meyer
Resenha
Navegar é preciso
Por Vera N. Solferini
Entrevista
Eduardo Rodrigues Cruz
Entrevistado por Por Flavia Natércia
Poema
Roda da fortuna
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Entrevistas
Eduardo Rodrigues Cruz
Para o físico e teólogo é bom que a teoria da evolução tenha dispensado a figura de um Deus criador, do contrário não haveria lugar para a fé
Por Flavia Natércia
10/04/2009


Eduardo Rodrigues Cruz é físico, mas se tornou professor e pesquisador de teologia e ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Com isso, porém, não abandonou as ciências naturais; ele apenas as analisa sob um outro prisma. Entre seus interesses como pesquisador estão a cultura científica moderna, a história e a filosofia da ciência e a ambivalência do progresso científico. Para ele, toda a confusão entre a teologia e o darwinismo vem da mistura entre natureza, um conceito filosófico-científico, e a criação, um conceito teológico. Mas, por ser o darwinismo uma teoria de amplo espectro, não vê separação possível entre a explicação dos fenômenos naturais e a administração dos desejos e sentimentos humanos, diferentemente do paleontólogo e divulgador da ciência Stephen Jay Gould, para quem ciências naturais e religião representam dois “magistérios não-interferentes”. Por outro lado, Cruz acredita ser bom que a teoria da evolução tenha dispensado a figura de um Deus criador, do contrário não haveria lugar para a fé. No lugar do salto conjunto (consiliência) do conhecimento proposto pelo mirmecólogo Edward Osbourne Wilson, o teólogo aposta na ideia de consonância – coerência entre visões de mundo para a qual devem contribuir ciência, religião e outros “construtos humanos”–, projeto do filósofo e historiador da ciência Ernan Mcmullin. Veja abaixo a entrevista que Eduardo Cruz concedeu à revista ComCiência.

Do que tratam os conceitos de consiliência e consonância. Dentre eles o senhor aposta no segundo. Por quê?
Eduardo Rodrigues Cruz:
Dois são os conceitos em pauta: o de “consiliência” (cunhado por William Whewell e recentemente utilizado por Edward Wilson; também traduzido por “concordância”), que diz respeito a diferentes processos de indução a partir dos fenômenos, e que conduzem a um modo mais abrangente de explicação; e o de “consonância”, cunhado pelo filósofo e historiador da ciência Ernan McMullin, em 1981. Este fala de duas descrições do mundo (a científica, que explica a natureza, e a teológica, que explica a criação), que reverberam mutuamente (daí a referência ao som) sem se confundir. O primeiro termo retoma o sonho empirista de uma descrição unificada do mundo, o segundo admite o limite cognitivo humano, e fala da autonomia das várias ciências em seus esforços de descrever a realidade. No fundo, são duas atitudes epistemológicas que muito tem contribuído para o avanço do conhecimento humano. O sonho da unidade das ciências vem desde o século XIX, com vários defensores e propostas, de modo geral dentro do positivismo. Este sonho tem sofrido inúmeros reveses, mas alguns cientistas mais entusiastas parecem ignorá-los. A filosofia da ciência depois de Thomas Kuhn já devia ter jogado uma pá de cal no assunto. A insistência de Edward Wilson tem assim um caráter quase religioso.

Na sua visão, de onde nasce a necessidade de grandes narrativas? Sua gênese é biológica, cultural, ocidental?
Eduardo Rodrigues Cruz:
Há certamente uma raiz biológica na inclinação humana por totalidades. Essa busca, que envolve diferentes áreas, se manifesta historicamente de modos variados e os exemplos mais citados são o marxismo, o capitalismo e o nacional-socialismo. Essa manifestação histórica, é claro, ocorre em outras culturas. Onde houver mito, aí haverá uma grande narrativa.

O senhor afirmou, no artigo “Ser ou não ser consiliente”, que autores como Jacques Monod, Prêmio Nobel de Medicina (1965) que escreveu O acaso e a necessidade, e Richard Dawkins são defensores do conhecimento científico como provedor de um “realismo sóbrio” que seria o caminho para manter nossa humanidade. Mas o “realismo sóbrio” de Dawkins não teria se transformado em uma espécie de fundamentalismo darwinista ou ateu, uma escalada que começou com O relojoeiro cego até chegar a Deus, um delírio?
Eduardo Rodrigues Cruz:
Se notarmos o contexto da afirmação, vemos que Dawkins concebe algum tipo de continuidade entre "é" e "deve ser", e, assim, vê uma linha de continuidade da ciência para a moralidade. É "sóbria" porque minimalista e, assim, o combate à religião se dá tanto pelo distanciamento desta com aquilo que "é" (a realidade assim como descrita pelas ciências empíricas), quanto pela profusão de normas e ritos. A proposta de Dawkins é sóbria, mas o mesmo, claramente, não se pode dizer de sua prática fundamentalista.

Em que a teologia pode entrar em consonância com o darwinismo, se esta teoria tornou dispensável a figura de um Deus criador? Há consonância possível entre, por exemplo, a noção de desígnio, de um lado, e a de acaso versus necessidade de outro?
Eduardo Rodrigues Cruz:
Ainda bem que se tornou dispensável, pois de outro modo não haveria lugar para a fé! Toda a confusão repousa na mistura entre natureza e criação. Criação é um conceito teológico, no qual ela é dependente do criador. Já a natureza (um conceito filosófico-científico) dá apenas vestígios de Deus criador, como bem diz a Carta aos Hebreus, cap. 11, vers. 3: "Pela fé nós compreendemos que os mundos foram organizados pela palavra de Deus. Segue-se daí que o mundo visível não tem sua origem em aparências". Com isso, "acaso e necessidade" e desígnio são duas maneiras diferentes (mas compatíveis!) de se ver o mundo.

O senhor cita em seu artigo programas de pesquisa compatíveis com a “consonância”. Pode nos dar um exemplo?
Eduardo Rodrigues Cruz:
Entre os que mais se destacam hoje são os resultantes da colaboração entre o CTNS Centro de Teologia e Ciências Naturais e o ObservatórioVaticano, que vem desde 1988 e já está em sua segunda fase. Outra que se destaca é o Projeto STOQ, envolvendo universidades romanas, e o Sophia Europa. Todos eles envolvem pesquisas interdisciplinares de alto nível. Infelizmente não há nada equivalente no Brasil.

Nessa perspectiva, como o senhor avalia o surgimento do “design inteligente” (ID)? Este se distingue em algo do relógio que pressupunha um relojoeiro de William Paley?
Eduardo Rodrigues Cruz:
William Paley representava uma tradição de teologia natural, que pretendia servir apenas como suporte à teologia revelada. Já o "design inteligente" se apresenta como pura ciência, sem identificar o "agente" do plano, uma forma sofisticada, mas matreira de escapar das críticas ao criacionismo "científico". O relógio deixa de ser uma imagem sugestiva e passa (no caso do ID) a ser apresentado como "prova" de uma irredutibilidade.

A “teoria do design inteligente” pode produzir hipóteses falseáveis? E a complexidade irredutível de Michael Behe (A caixa preta de Darwin)?
Eduardo Rodrigues Cruz:
Bem esta última já foi mostrada problemática por um sem número de pesquisadores. Pode produzir hipóteses falseáveis sim, e é em parte por isso que tem sido tão fácil abordá-las criticamente. O que grande parte dos cientistas ignora é que essas hipóteses também são problemáticas do ponto de vista religioso, pois reduzem Deus a uma mera inteligência organizadora.

É próprio das grandes narrativas suscitar periodicamente interpretações literais, radicais de seus textos? Por quê?
Eduardo Rodrigues Cruz:
Colocando em outros termos, as grandes narrativas podem facilmente gerar ideologias, quando interesses em termos de poder entram na história. Afinal de contas, o confronto entre o "espírito" e a "letra" remonta às origens da humanidade. A letra fornece segurança ao homem, o espírito fornece criatividade.

Depois de 200 anos de teoria da evolução como avançou o debate entre as interpretações da religião e da ciência sobre a origem da vida? Podemos dizer que as discussões em cada um desses campos do conhecimento contribuíram para o avanço do outro? Por quê?
Eduardo Rodrigues Cruz:
Essa é realmente uma história muito longa. Remeto os interessados ao meu ensaio "Diálogo e construções mútuas: Igreja Católica e teoria da evolução", em João D. Passos e Afonso Soares, orgs. Teologia e ciência: díálogos acadêmicos em busca do saber (São Paulo: EDUC/ Paulinas), 65-85. Que a teoria da evolução darwiniana, uma vez que se estabeleceu no âmbito científico (lembrar que isto só ocorreu no século XX), têm contribuído para a descrição do processo divino de criação, é inegável. Mais sutil é a contribuição inversa. Creio que a teologia contribui para a teoria da evolução a partir das metáforas que emergiram no ocidente cristão. Por exemplo, Darwin utilizou a imagem de Providência para caracterizar o funcionamento da seleção natural como sustentadora das espécies (com mais força na primeira edição da Origem das espécies ), e muitas outras entraram em seus escritos e no de biólogos desde então, principalmente no plano da (boa) divulgação científica. Muitos estudos têm apontado a influência de imagens que tradicionalmente têm sido analisadas pelos teólogos (ver livros de Michael Ruse a respeito).

Por que metáforas religiosas (novo Éden, Santo Graal, Livro da Vida) têm sido usadas pela mídia para abordar temas como a biodiversidade e os projetos genoma?
Eduardo Rodrigues Cruz:
Só pela mídia? Esta as usa porque os próprios cientistas recorrem frequentemente a elas! Os cientistas em suas afirmações coloquiais entre si e com o grande público, recorrem (muitas vezes de modo inconsciente) a imagens profundamente enraizadas em nossa cultura. Como a ciência contemporânea trata das grandes questões da existência, é natural que imagens religiosas sempre pipoquem.

Na sua opinião, o darwinismo é, em ampla medida, aceito acriticamente? O que o darwinismo não explica?
Eduardo Rodrigues Cruz:
Toda teoria que toca diretamente o humano pode gerar aceitações acríticas de todos os naipes. A web está cheia delas. É o preço do sucesso! O darwinismo não tem-fronteiras pré-definidas em termos de explicação, mas deve-se ter cuidado ao se usar a metáfora do "ácido universal" (Daniel Dennett). Não só o darwinismo compete com outras teorias científicas, em áreas afins, mas também lida com o óbvio caráter fragmentário das fontes de seus dados (p.ex., fósseis).

Como a discussão sobre a teoria da evolução pode contribuir para promover diálogos entre ciência e religião?
Eduardo Rodrigues Cruz:
Em primeiro lugar, é claro, ela serve de plano de fundo comum para que cientistas e teólogos se aliem em face de ameaças como o criacionismo e o ID. Depois, lembremos que a teoria da evolução, enquanto teoria de largo alcance, vai muito além dos limites da explicação científica – ela auxilia a criar visões de mundo. Nesse sentido, questões que tradicionalmente são tratadas pelos mitos (qual a origem de tudo? Por que a natureza é assim, e qual o nosso lugar nela? Há uma alguma finalidade em todo o processo vital?), são reelaboradas e discutidas no seio desse novo paradigma evolutivo. Também há de se levar em conta o impacto dessas ideias no plano da moral, na política, na economia, etc... Descontando a atitude prometeica daqueles que se acreditam auto-suficientes na apreciação do que é verdadeiro, e na esteira disso, do que é bom e belo, os cientistas têm a aprender em como compatibilizar uma teoria que repousa sobre mecanismos cegos e indiferentes ao humano com aquilo que é sublime no homem. Quanto aos teólogos, eles podem voltar a tomar a sério os paradoxos de uma natureza que parece ter sido abandonada por Deus e que, ao mesmo tempo, é manifestação de sua glória. Além disso, eles podem voltar ao bom e velho Tomás de Aquino, que muito bem descreveu a integridade e a autonomia da natureza e seu estudo.