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Entrevistas
José Guilherme Cantor Magnani

O antropólogo José Guilherme Cantor Magnani, coordenador do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU), da Universidade de São Paulo (USP), comenta nesta entrevista como deve ser trabalhado o olhar do pesquisador envolvido com a etnografia urbana, com o desafio de compreender a dinâmica das cidades perante suas fragmentações e com a busca de uma análise dessa dinâmica priorizando os circuitos da cidade utilizados por cada grupo. Os trabalhos desenvolvidos pelo NAU – composto por Magnani, seus alunos e por pesquisadores associados de outras universidades além da USP –, envolvem tanto pesquisas etnográficas realizadas na cidade de São Paulo quanto em outras cidades brasileiras. Eles procuram identificar e analisar regularidades urbanas, construídas pelos próprios atores sociais, usando certas categorias de análise, como o pedaço e o circuito .

Carolina Simas
10/05/2010

Você diz que no momento da pesquisa etnográfica urbana, é muito importante o antropólogo ter um olhar “de perto e de dentro” e não um olhar “de fora e de longe”. Poderia explicar isso melhor?

José Guilherme Cantor Magnani – Eu uso essa proposta de análise, contrastiva, para esclarecer como a etnografia pode contribuir para o conhecimento, por exemplo, da dinâmica urbana em sua aparente heterogeneidade. O olhar “de longe e de fora” seria aquele que prioriza um ponto de vista mais “macro”, que olha a cidade de uma maneira mais geral. O olhar etnográfico é mais detalhista, ele vai privilegiar não as grandes variáveis, mas busca chegar até o plano do modo de vida dos atores sociais. Então, ao invés de procurar entender a dinâmica urbana a partir de determinantes de ordem macroeconômica, demográfica etc (que certamente existem e são condicionantes), vai experimentar um outro caminho para entender como a cidade funciona. Esse caminho é proporcionado pela etnografia e se caracteriza pelo termo “olhar de perto e de dentro”, à medida que opta por uma visão que leva em conta – ainda que não exclusivamente – a dimensão da vida cotidiana dos atores sociais.

Qual o motivo de você achar que o termo “tribo”, quando está se referindo a tribos urbanas, deve ser pensado como uma metáfora e não como uma categoria?

Magnani – A metáfora é um recurso de linguagem que permite iniciar o entendimento a respeito de um fenômeno que ainda não se conhece: é resultado de uma operação mental que desloca um significado de seu contexto original para a nova situação que se pretende apreender; de certa maneira trata-se de um recurso mais aproximativo que explicativo. Afirmo que a maneira como a mídia usa a questão das “tribos urbanas” é metafórica porque ela usa um termo, empregado na etnologia indígena – tribo – e o aplica para a grande cidade, que apresenta outra escala, diferente do contexto onde aquele termo originalmente é empregado. A metáfora que, num primeiro momento, até pode ser interessante, criativa, neste caso termina sendo pouco efetiva porque vai ser usada para identificar “tribos” dentro da cidade numa direção totalmente oposta à que ocorre no contexto indígena. Nas sociedades indígenas, esse termo aponta para estratégias de alianças mais amplas, enquanto sua transposição para a cidade implica em um uso voltado para identificar pequenos grupos isolados e muitas vezes marcados pela violência, como se a violência fosse característica intrínseca das sociedades indígenas. Trata-se, portanto, de uma transposição indevida. Cabe reconhecer, contudo, que esse termo, “tribos urbanas” já está consagrado na mídia, mas, como categoria, não explica, gera equívocos. Termina produzindo um significado que fica distorcido quando transposto para a realidade urbana.

Explique um pouco as categorias “pedaço”, “mancha”, “circuito” e “trajeto” utilizadas nos seus estudos urbanos.

Magnani – Na verdade, elas surgiram por necessidade metodológica de pesquisas realizadas na cidade do porte de São Paulo, onde a heterogeneidade, a diversidade e até mesmo o “caos urbano” aparecem como a tônica. No entanto, quando se olha “de perto e dentro” começa-se a descobrir regularidades e não o caos e a fragmentação como normalmente aparecem na mídia, ou até em alguns estudos. Esse olhar permite ultrapassar a barreira do senso comum e descobrir que os atores sociais, no seu cotidiano – na religiosidade, no trabalho, no lazer, na sua vida associativa – têm padrões de comportamento que são regulares. Para poder captar esses padrões, é preciso empregar certas categorias. A pesquisa antropológica, no contexto urbano, tem que construir o seu objeto de pesquisa, porque ele não existe in natura . O fato de descobrir uma festa religiosa, um grupo de jovens praticando lazer na cidade, isso em si não significa que se tem um objeto de pesquisa. É preciso que o pesquisador, para levantar e organizar os dados, parta de alguma questão, de um problema teórico. E para que a perspectiva “micro” não termine sufocando o estudo, é preciso usar categorias de análise que façam a mediação entre o geral e o particular. No caso de minhas pesquisas, utilizei algumas categorias como “o pedaço”, “o trajeto”, “a mancha”, “o circuito” e “o pórtico”, que fui desenvolvendo justamente para poder identificar na cidade certas regularidades e não me perder na fragmentação. Uma delas surgiu quando estava fazendo uma pesquisa sobre lazer na periferia e me deparei com o uso de um termo absolutamente comum que é o “pedaço”. As pessoas que eu estava entrevistando e observando sempre distinguiam quem era ou não era “do pedaço”. Os que se encontravam naquele lugar, naquela esquina, naquele bar, naquela festa, por exemplo, eram sempre os mesmos. Havia uma espécie de identidade dos frequentadores de um mesmo lugar, que se transformava para eles num ponto de referência comum. E a passagem dessa categoria “nativa” para categoria analítica deu-se quando a coloquei em diálogo com a conhecida dicotomia proposta por Roberto da Matta, “a casa e a rua”. E o resultado foi um triângulo: o pedaço, a casa e a rua. Entre a casa e a rua, havia um espaço intermediário onde se encontram os colegas, os “chegados”, com outro tipo de sociabilidade, diferente tanto das relações que organizam o plano doméstico, como daquelas presentes no âmbito público e impessoal. Assim surgiu uma categoria que permitiu visualizar e descrever uma certa ordem naquilo que aparentemente era a indiferenciação. Para tanto, foi preciso treinar o olhar, aproximá-lo da perspectiva “de perto e de dentro”.

O emprego dessas categorias é o mesmo, tanto no estudo da periferia de São Paulo como no da região central?

Magnani – Há diferenças e semelhanças. Quando comecei a estudar a sociabilidade por meio da categoria do “pedaço” no contexto da periferia, do bairro, ela aparecia muito ligada com a questão da vizinhança que, ao aproximar as pessoas, permitia que conhecessem os gostos, o trabalho, os laços familiares, as preferências esportivas uns dos outros. Essa proximidade e conhecimento mútuo e a consequente construção de laços não se verificavam no centro da cidade. Na famosa Galeria do Rock, onde fiz uma pesquisa com vários alunos meus, o que chamou a atenção foi a presença, num mesmo espaço físico, de gente de variadas procedências: o pessoal que gostava de rock, a galera dos esqueitistas, os tatuadores, os grafiteiros, enfim, eram muitos grupos no mesmo lugar. Percebi, então, que essa categoria de “pedaço”, que funcionava bem na periferia, precisava, aqui, de ajustes. Diferentemente do contexto do bairro, onde as pessoas se conhecem, nesse espaço do centro da cidade, para onde acorre gente de todos os lugares, as pessoas não necessariamente se conhecem, porém se reconhecem , como portadoras de certos sinais, de símbolos, de um linguajar, uma forma de se vestir, de um gosto musical etc. Podiam ser jovens que vinham da Grande São Paulo, do litoral, dos bairros periféricos, mas acabavam se reconhecendo como portadores de padrões e códigos compartilhados.

Como pensar um estudo etnográfico na cidade de Brasília, por exemplo, onde você não tem muito a experiência da rua, de pedestres circulando...

Magnani – Acabo de ministrar, numa disciplina do curso de ciências sociais da USP, uma aula sobre a cidade modernista. Brasília, que é o grande exemplo, foi projetada com base no princípio estabelecido pelo arquiteto e urbanista Le Corbusier, a normatização do espaço urbano. Uma cidade modernista deve cumprir quatro funções: trabalho, moradia, circulação e lazer; na “Carta de Atenas”, Le Corbusier acrescentou uma quinta função que seria o espaço público onde está o centro do poder. Essa cidade bem organizada supõe cada atividade em seu lugar apropriado. Já na cidade tradicional, há mais “misturas”: a rua, por exemplo, é lugar da passagem mas também do encontro. Um exemplo clássico dessa cidade tradicional é Paris da segunda metade do século XIX, com seus bulevares, seus cafés e galerias. Nós estamos mais acostumados com o espaço público compartilhado; numa cidade modernista típica, o espaço é de certa maneira especializado, ele deveria abrigar funções específicas. Mas não quer dizer que aí não haja sociabilidade. Certamente vamos encontrar outras formas, diferentes das que existem numa cidade cortada por ruas convencionais. Para a antropologia, não há nenhum problema em fazer etnografia nesse contexto ou no outro. Brasília vai fornecer outros tipos de sociabilidade. Em termos tradicionais, a rua é como um emblema, porque é aí que se encontram os diferentes. Onde está a rua – ou melhor, a sociabilidade proporcionada por ela – em Brasília? Pode ser que esteja em outro lugar: no shopping center, em algum recorte da superquadra e assim por diante. A antropologia não vai decidir qual cidade oferece melhores espaços de troca e encontro; em cada uma, certamente, haverá espaços para o exercício da sociabilidade.

Existem pesquisas etnográficas do seu Núcleo feitas em outras capitais brasileiras além de São Paulo?

Magnani – Sim, inúmeras. Cito uma, de um aluno, Antonio Maurício da Costa, que fez doutorado comigo sobre o “circuito bregueiro” em Belém do Pará. Como se sabe, o termo “brega” tem outro sentido, lá: um gênero musical que combina músicas do Caribe, da jovem guarda etc e que atualmente é executada com base em equipamentos eletrônicos de grande porte. Trata-se de um estudo etnográfico realizado numa capital que não é do tamanho de São Paulo, mas que, por isso mesmo, estabelece um contraponto interessante com o que ocorre na área do lazer, lá e cá.

O que o NAU está pesquisando no momento?

Magnani – Temos vários grupos com pesquisas novas. O funcionamento do Núcleo tem como base o trabalho e o contínuo debate entre meus orientandos de pós-doutorado, doutorado, mestrado e iniciação científica. De cada uma dessas etapas de treinamento, espera-se uma contribuição especial: um aluno de iniciação pode recorrer a um aluno de doutorado ou mestrado (e vice-versa) com o intuito de compartilhar as pesquisas, a bibliografia, os achados de campo. Essa é a proposta didática do Núcleo: formação compartilhada. E como houve alguns interesses específicos, formei alguns grupos. Temos uma equipe de pesquisa sobre os surdos, que está sendo feita juntamente com membros do Departamento de Letras Modernas e de Linguística da USP. Eles trabalham a parte da língua de sinais e o NAU estuda mais a sociabilidade. Outro estudo é sobre os dekasseguis : por causa da crise econômica, o Japão está expulsando os trabalhadores de origem estrangeira, e o retorno desses imigrantes ao Brasil é o tema de um grupo que agrega estudantes de outras disciplinas, ademais da antropologia. Além desses, temos um projeto em andamento denominado “Índios na Cidade”. É uma proposta de aproximar etnologia indígena com a antropologia urbana a partir de uma pesquisa em Manaus, proporcionada pelo convênio Procad, da Capes. A religiosidade no contexto urbano e um estudo sobre o a internet como espaço virtual de sociabilidade e também como ferramenta de pesquisa são outras linhas de pesquisa. Cabe lembrar, finalizando, que o Núcleo mantém um site http://www.n-a-u.org e uma revista eletrônica, Ponto Urbe : http://www.pontourbe.net .