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Resenhas
A harmonia do mundo
Transitando em um gênero diferente, o romance, o professor de astronomia Marcelo Gleiser conta as aventuras e desventuras de Johannes Kepler
Rodrigo Cunha
09/08/2007
Maio de 1618. O astrônomo luterano Johannes Kepler, matemático oficial do Sacro Império Romano-Germânico, prestes a deixar a pequena Linz, em sua Alemanha natal, devido à guerra entre católicos e protestantes, finaliza o extenso livro em que apresenta sua teoria sobre a harmonia dos movimentos dos planetas na sinfonia cósmica arquitetada por Deus. O título dessa grande obra, As harmonias do mundo, é tomado de empréstimo pelo físico brasileiro e professor de astronomia Marcelo Gleiser, como uma espécie de homenagem a Kepler, em seu quinto livro pela Companhia das Letras, lançado em 2006. Ousando transitar por um gênero diferente de suas publicações anteriores – um saboroso romance –, Gleiser aponta, já no longo subtítulo, que seu livro conta as “aventuras e desventuras de Johannes Kepler, sua astronomia mística e a solução do mistério cósmico, conforme reminiscências de seu mestre Michael Maestlin”.

Ex-professor de astronomia do Seminário Teológico da Universidade de Tübingen e alquebrado pelos oitenta anos já vividos, Maestlin passa seus últimos dias entre sonhos e lembranças da trajetória meteórica e atribulada de seu antigo pupilo que, de pobre estudante de teologia chegou a matemático imperial e astrônomo conhecido em toda a Europa. Essas reminiscências são alimentadas pela leitura de um diário fictício que Kepler teria deixado para Maestlin, em que narra desde sua incansável busca pelos segredos da mente divina, através da explicação da arquitetura cósmica, até as alegrias e tristezas por ele vividas no seio familiar e na sempre instável e errante carreira profissional. Trata-se de um romance em que é tênue a fronteira entre a reverência a um gênio, tratado quase como um imortal semi-deus – original, por colocar em evidência um personagem que geralmente não é tão reverenciado quanto Newton ou Galileu – e a sua humanização, os medos, anseios, prazeres, amores e dores que Kepler, como qualquer outro homem, teria experimentado ao longo da vida.

Gleiser - que estudou manuscritos originais dos séculos XVI e XVII e livros raros de Tübingen, na Alemanha, antes de conceber A harmonia do mundo - pinta bem o cenário medieval em que emergem as idéias de Kepler que mudariam dois mil anos de tradição astronômica. Das caóticas, sujas e barulhentas feiras livres em que se vendiam animais e as colheitas da primavera às intermináveis viagens dificultadas pelo rigor do inverno, seja no lombo de uma mula ou na carruagem de um nobre aristocrata; das casas simples em ruas de calçamento irregular à suntuosidade de castelos imperiais; da caça às bruxas – praticada não apenas pela Inquisição católica, como normalmente se supõe – à Guerra dos Trinta Anos entre católicos e protestantes; as cenas ambientam historicamente dois dramas pessoais. Um, o do mestre que inicia o pupilo no estudo da astronomia e o apresenta às idéias de Copérnico, mas que não tem coragem para defendê-las abertamente e nem ousadia para mudar a tradição astronômica. O outro, o do astrônomo que um dia quis ser pastor luterano mas, forçado a mudar sua trajetória, se entrega com devoção à tarefa de celebrar sua fé na explicação matemática dos arranjos dos céus.

O protagonista é caracterizado pela imagem romântica do cientista que deixa de comer ou passa a noite em claro, absorto em seus estudos, e aparece na manhã seguinte atrasado, com olheiras e despenteado para dar aula de astronomia em uma escola luterana; ou que se apega à beleza e aos mistérios dos céus em meio às atribulações humanas na Terra. Também é romântica a obsessiva busca de Kepler pela “verdade”, busca essa que Gleiser expressa em artigos recentes como sendo uma espécie de missão de todo cientista, como se verdades não fossem invenções humanas e estivessem “prontas” em algum lugar praticamente inatingível, para um dia serem “desvendadas” pela Ciência. Romantismos à parte, é uma boa história e daria até uma bela adaptação para o cinema.

E como obra de divulgação científica, atividade que dá inegável reconhecimento e notoriedade a Gleiser, o que dizer de A harmonia do mundo? Sua primeira investida se dá já nos primeiros capítulos, com o debate promovido por Maestlin no Seminário Teológico em que Kepler defende o sistema cósmico de Copérnico e seu colega Brenz, o sistema de Ptolomeu. O senso comum conhece o primeiro como heliocêntrico – ou seja, com o Sol no centro e os planetas girando em torno dele –, modelo proposto cerca de quatorze séculos depois ao de Ptolomeu, conhecido como geocêntrico – ou seja, com a Terra no centro e os planetas girando em torno dela. Mas no debate, Brenz explica que “o modelo ptolomaico não é estritamente geocêntrico”, pois desloca a Terra ao longo do diâmetro (linha central) do círculo que representa a órbita do planeta – seja ele Marte, Júpiter ou Saturno – até um ponto em que a distância da Terra ao centro do círculo seja igual à distância do centro a um ponto imaginário no lado oposto do diâmetro, que Ptolomeu chamou de “equante”, cuja distância para a Terra é igual à sua distância até o planeta. Para facilitar o entendimento desse modelo, Gleiser lança mão de um recurso gráfico, o diagrama reproduzido abaixo.

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Além do diagrama, também facilita para o leigo a comparação que o personagem faz desse sistema com um moinho de água, cujas pás ao longo do círculo maior giram cada uma delas em um círculo menor ao serem atingidas pela queda d’água. Essa comparação é feita por Brenz para explicar o movimento de um planeta em torno de seu “epiciclo”, que combinado com o movimento em torno do círculo maior (a órbita), dá a impressão ao observador na Terra de que o movimento do planeta se assemelha a um laço, e por isso, não veríamos um simples movimento circular. Mas o debate apresentado por Gleiser pode nos levar a uma questão: se Ptolomeu não desenhou um outro círculo orbital e a órbita do planeta continua sendo o círculo do diagrama acima, por que Brenz diz que o giro se dá “em torno do equante” e “não do centro do círculo ou da Terra”? Ptolomeu não poderia mesmo desenhar outro círculo em que o equante fosse o centro do movimento orbital, pois isso implicaria em um choque entre o planeta e a Terra. Nesse caso, a afirmação de Brenz carece de uma explicação para o leigo.

Gleiser também sente a necessidade de ilustrar com um diagrama a primeira idéia revolucionária de Kepler, apresentada em seu Mistério cosmográfico, de 1596. Ao tentar explicar a distância entre os planetas e o fato de eles serem seis – e não três ou dez –, Kepler desenha, a princípio, triângulos, quadrados e pentágonos dentro de cada órbita circular, mas descarta essa tentativa por causa dos infinitos arranjos que as inúmeras figuras planas poderiam proporcionar. Decide então por figuras sólidas, tridimensionais, escolhendo para o seu arranjo dos céus os cinco sólidos considerados “perfeitos” por Platão. No fictício diário de Kepler, não há uma explicação de porque os tais cinco sólidos são “perfeitos” e outros não são. E o diagrama reproduzido abaixo permite a visualização apenas de sólidos bem conhecidos, o cubo e a pirâmide (ou tetraedro), mas dificilmente o leitor consegue vislumbrar como entrariam no arranjo o octaedro, o dodecaedro e o icosaedro – ainda que soubesse o que esse último representa. O fato é que nem os artesãos do duque de Stuttgart conseguiram reproduzir tal arranjo.

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Ao perceber que suas idéias não apenas demorariam para serem entendidas mas encontrariam fortes resistências entre seus pares, Kepler, já maduro e experiente, decidiu partir do modelo de Ptolomeu, que ele havia chamado de “corcunda” naquele debate de sua juventude de seminarista, para conciliar a tradição com a proposta heliocêntrica de Copérnico. Kepler substitui a Terra do sistema ptolomaico pelo Sol, mantendo a idéia do equante, que agora ele considera “genial”, mas cuja posição é para ele dificílima de ser calculada. Recorre então a outro sábio da Antiguidade, Arquimedes, que dividiu o círculo em triângulos para encontrar a razão entre sua circunferência e seu diâmetro, com o objetivo de calcular a posição de Marte em sua órbita num dado momento. Mais uma vez, além de diagramas, a comparação com uma torta que dividimos em pedaços triangulares facilita o entendimento do leigo.

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O difícil, para o leigo, é entender a discrepância de 8 minutos de graus que Kepler encontrou ao aplicar a Marte a lei segundo a qual a linha que liga o Sol ao planeta varre áreas iguais em tempos iguais. E é justamente essa discrepância que o leva à principal contribuição pela qual ele ficou conhecido: ou sua lei estava errada ou estava errada a hipótese de que as órbitas dos planetas são circulares. Em sua Astronomia nova, de 1605, ele expõe como chegou à descoberta de que os planetas giram em elipses em torno do Sol e lança a idéia de que uma força magnética emanada do astro seria responsável pelas órbitas planetárias – uma explicação das causas dos movimentos dos planetas que até então a astronomia não havia buscado. Para facilitar a visualização das elipses, Gleiser, dessa vez, não utiliza diagramas, se limitando a falar no achatamento de um círculo, que no limite pode se assemelhar a uma salsicha; e quanto menos achatada, mais próxima de um círculo será a elipse, como é o caso da órbita da Terra.

No diário fictício imaginado por Gleiser, Kepler diz mais uma vez ter recorrido aos gregos da antiguidade para chegar às conclusões que expõe em A harmonia do mundo, de 1618. Os gregos descobriram que os sons das cordas da lira são agradáveis aos ouvidos – harmônicos – quando a razão dos comprimentos de duas cordas é simples: uma tem metade do comprimento da outra, ou três quartos, ou cinco oitavos. Ao se questionar por que uma razão envolvendo o número 7 (como 1/7 ou 3/7) seria dissonante, Kepler usa a geometria para explicar que triângulos, quadrados e pentágonos, quando inseridos em um círculo, o dividem em arcos de tamanhos iguais, o que não ocorre com o heptágono (figura de sete lados).

Gleiser não explica por que Kepler retorna aos círculos após ter chegado às elipses de sua Astronomia nova; e aponta – através do diário do protagonista – uma “intuição louca” que levou Kepler a testar a razão entre a velocidade mais lenta do planeta e a mais rápida do ponto de vista de um hipotético observador no Sol, descartando a razão entre as distâncias dos planetas ao Sol – que poderia ser mais facilmente associada pelo leigo à razão entre os comprimentos das cordas de uma lira. Com algum conhecimento de música – sabendo, por exemplo, o que é uma terça maior, uma terça menor ou uma quinta –, o leigo pode entender a harmonia encontrada por Kepler na razão entre a fração de arco percorrida em um dia no ponto mais distante do planeta em relação ao Sol (sua velocidade mais lenta) e a fração percorrida no ponto mais próximo (sua velocidade mais rápida). Você seria capaz de “ouvir” essa música dos céus?