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Resenhas
Corra Lola, corra
Alucinante, frenético e eletrizante, este filme apropria-se e representa um tempo industrializado-tecnológico-globalizado.
Susana Dias
10/11/2007

Alucinante, frenético, eletrizante. A velocidade é um signo do filme Corra Lola, corra (Lola rennt, 1998) dirigido por Tom Tykwer. Velocidade que remete à linha de produção, produção em série, que nunca pára; ao tempo da indústria, do mercado, das instituições hegemônicas, da produção científica e tecnológica; ao avanço desenfreado, ao bonde do progresso a todo custo. Associações analógicas que transformam velocidade em sinônimo de rapidez, que colam o tempo aos movimentos e transformações dos corpos, à noção de tempo cronológico.

R apidez e lentidão emergem não como meras quantificações do movimento, mas antes como qualificações do movimento. Rápido, o tempo do massacre, da superficialidade, da eficiência tecnocientífica, das mídias, da informação a serviço do marketing. Lento, o tempo da poesia, da imaginação, da ciência desvinculada do mercado, da arte. Qualificações que condicionam as formas, espaços e tempos onde pensamento, criação e liberdade se fazem possíveis. Mas a fala zombeteira do segurança do banco logo no início do filme - “A bola é redonda. O jogo dura 90 minutos. Isso é um fato. Todo o resto é teoria” - já anuncia a travessura que Corra Lola, corra propõe: desviar da tranqüilidade das associações analógicas e libertar um tempo sem correspondência, enlouquecido, labiríntico, incorpóreo. Tempo em que velocidades de outra natureza ganham intensidade: dos afetos, da criação e do pensamento.

Lola é uma máquina. Ela não pára. Corre contra o tempo. O efeito de rapidez no filme é potencializado pela eletrizante trilha sonora, pelos deslocamentos rápidos de câmera, pela montagem que brinca com os efeitos dos jogos eletrônicos. Também pela presença dos templos do mercado: a quadrilha de contrabando de diamantes, o banco, o supermercado, o cassino. E pela história que gira em torno do “campo de forças” criado pela sacola de dinheiro, para usar uma expressão que o italiano Italo Calvino usa em sua obra Seis propostas para o próximo milênio. A sacola de dinheiro tornar-se-ia o “verdadeiro” protagonista do filme. Tudo giraria em torno do centro organizador: uma corrida em busca de 100.000 marcos em 20 minutos.

Nessa lógica, Corra Lola, corra emerge como um filme que se apropria e representa um tempo industrializado-tecnológico-globalizado. Como se o mundo fosse um grande quebra-cabeças e a tela-do-cinema dele retirasse uma peça. O quebra-cabeças pressupõe um jogo de encaixar diferentes peças para com elas formar um todo, um rosto, uma paisagem, um mapa. É a velha e conhecida relação entre parte e todo que permite esse conjunto de associações analógicas. Mas essas associações não encontram ressonâncias nos desejos do diretor do filme, expressos nos encartes que acompanham o DVD: “É a paixão desta mulher sozinha que derruba as rígidas regras e regulamentos do mundo que a cerca. O amor pode mover montanhas e move. Acima de qualquer ação, a força central deste filme é o romance”.

Parece ser próprio de signos presos ao mundo material, como a velocidade, induzirem à interpretação do todo do qual, presumidamente, fariam parte. Mas há outra possibilidade de pensar a velocidade em Corra Lola, corra. Como um fragmento que vale por ele mesmo, que não pertence a nenhuma totalidade, que se distingue da rapidez e que não está vinculado aos movimentos dos corpos. Este é um convite que os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari fazem em sua obra Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Para eles, um movimento pode ser muito rápido, nem por isso é velocidade. Já a velocidade pode ser muito lenta, ou mesmo imóvel, ela é, contudo, velocidade.

É interessante pensar em Corra Lola, corra por esses deslocamentos. Enquanto Lola corre, a trama do filme não ganha velocidade. São antes momentos de desaceleração fílmica, momentos de parada na trama. Lola corre e cruza duas vezes com o mendigo, que carrega a sacola de dinheiro esquecida, sem percebê-lo. O filme ganha velocidade nos momentos de menor movimento dos corpos. Instantes em que ocorrem transformações que não estão nos corpos, mas que são atribuídas a eles. Como no momento em que Lola se transforma em bandida, assaltando o banco, e o corpo banco se transforma em um corpo prisão. Ou ainda quando Lola descobre que seu pai não é seu pai. Seu corpo filha se transforma num corpo bastardo, sem que nenhuma mudança no corpo físico de Lola ocorra. São apenas mudanças de gestos e expressões da atriz que emergem na tela, criando sensações de dor, sofrimento, abandono e vazio nas cenas. Uma eternidade se passa em segundos. Lola na porta do banco com o olhar perdido. Vemos uma jovem de azul se aproximar, que em um instante vira uma senhora de idade. “O que foi?”, pergunta a senhora. Lola sente que perdeu muito tempo e corre em direção a Manni. Chega atrasada. Durante todo o filme a estranha sensação de que Lola está fora do tempo. Sempre atrasada ou adiantada.

Essas são transformações incorpóreas, que criam na trama uma velocidade que não pode ser mensurada, que não permite comparações ou disputas, nem pode dispor os resultados numa perspectiva histórica. Acelerações de outra natureza. No início do filme, assistimos uma longa cena em que Lola está em seu quarto ao telefone com Manni. Quando ele lhe coloca uma prova de amor – conseguir 100.000 marcos em 20 minutos para salvá-lo –, Lola se transforma numa heroína, como nas histórias em quadrinhos, ou nos jogos eletrônicos. Efeito potencializado pela passagem de Lola para a tela da TV numa animação. Ainda no quarto, o efeito de velocidade máxima, “pensamentos a mil”, surge na cena em que Lola está imóvel e a câmera gira ao seu redor como uma roleta-pensamento, selecionando, por meio de imagens, a quem ela poderia recorrer para pedir ajuda.

O quarto de Lola traz ainda inúmeras montagens de cenas/cenários em que o tempo se desvincula do movimento. Possibilidades de pensar o tempo desvinculado da sucessão, desenvolvimento, do antes e do depois. As bonecas, algumas vestidas outras nuas, em cima da cômoda de Lola, trazem juntos na tela, ao mesmo tempo, infância-adolescência-maturidade. Também no relógio antigo com pequenos adesivos que sobrepõem os números arábicos aos romanos, temos ao mesmo tempo, o ontem e o amanhã, o oriente e o ocidente, o repouso e a velocidade. São como que fragmentos de outro mundo ali colocados/colados. Pequenos fragmentos que não fazem da obra uma totalidade orgânica. Os gritos de Lola ecoam por todo filme arruinando e estilhaçando o tempo marcado pelas espirais, túneis, relógios. Gritos que matam o tempo, que abrem brechas para a libertação de um tempo sem representação.