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Resenhas
Um amoroso cerco à escrita
Saramago, nessa História do cerco de Lisboa, cria uma armadilha à escrita que se pretende objetiva, histórica, universal.
Por Susana Dias
10/11/2008

O premiado escritor português José Saramago volta a ganhar destaque com a filmagem de seu famoso romance Ensaio sobre a cegueira, dirigido por Fernando Meirelles. Mas é uma obra, talvez, menos conhecida no Brasil, História do cerco de Lisboa, lançada em 1989, que nos permite uma aproximação com o universo das editoras, tema deste número da ComCiência. Nessa obra, Saramago faz um cerco, cria uma armadilha, de escrita, na escrita e pela escrita. Um cerco amoroso, como o cerco do relevo que o artista Arthur Luiz Piza cria e que aparece na capa desta edição da Companhia das Letras. Papel, que cerca papel. Um cerco de delicadas e pequenas setas que apontam em todas as direções. Um centro, que não se afirma central, mas que também escapa numa pluralidade de possibilidades e de saídas.

É a escrita que se pretende objetiva, histórica, universal que o autor cerca com seus personagens: narrador, autores, historiador, revisor, tipógrafos, diretores de produção, diretores literários, editora, os personagens da história inventada dentro da história contada por Saramago e a própria palavra. Esta última, personagem que permite o encontro e confusão de todos os outros. Especialmente a palavra NÃO aparece como um personagem que mobiliza muitos pensamentos sobre a escrita e a construção cultural da autoridade de determinados tipos de escrita em detrimento de outros.

“Então o senhor doutor acha que a história é a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenha a menor dúvida, Que seria de nós se não existisse o deleatur, suspirou o revisor” (p. 16). O deleatur (em latim, destrua-se) é um sinal de revisão usado para indicar que a letra ou a palavra deve ser suprimida. É com essa provocação que Raimundo Benvindo Silva termina uma conversa com o autor da obra História do cerco de Lisboa, que está em suas mãos para ele revisar.

Deliberadamente, Raimundo Silva faz uma alteração na obra durante a revisão e entrega à editora uma versão que contará uma falsa história, num livro que se pretende histórico, verdadeiro. Altera um fato incontestável da história portuguesa inserindo um NÃO: “os cruzados NÃO auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa” (p. 50). Trata-se da tomada de Lisboa pelos mouros no ano de 1147. O revisor nunca havia feito uma ato dessa natureza, e invertendo a lógica do seu trabalho, que seria exatamente corrigir os erros, ele introduz um. O revisor se espanta com sua ação, mas não volta atrás. O leitor é convidado a procurar a causa, o porquê dele ter alterado a História do cerco de Lisboa. Em sua avaliação, tratava-se de 437 páginas enfadonhas, sem nenhum fato novo, nenhuma interpretação polêmica, nem um documento inédito, ou uma releitura interessante. “Apenas mais uma repetição das mil vezes contadas e exaustas histórias do cerco”. Mas o fato de o revisor não gostar da obra não justifica sua intervenção.

Aí encontramos mais uma armadilha de Saramago. Não há porquê, nem explicação, nenhuma compreensão e entendimento possível do fato. “Nem eu próprio saberia dizer hoje por que o fiz”, admite o revisor. (p.330). Coloca-se em dúvida a lógica que atravessa a escrita que quer explicar fatos que aconteceram, como se Saramago afirmasse que a força da escrita está, exatamente, em questionar a relação linear, conseqüente, de causa-efeito. O livro expõe o ato da escrita como efeito sem causa: “...torna-se impossível estabelecer aquela desejada e tranqüilizadora relação directa que faria de qualquer humana vida um encadeamento irresistível de factos lógicos, todos perfeitamente travejados, com seus pontos de apoio e calculadas flechas” (p. 121). O momento do ato de traição de Raimundo Silva – dupla traição, como historiador, porque torna-se autor e escreve um fato incorreto, e como revisor, porque não corrigiu o erro – é marcado por uma atração impossível de conter. Aquela linha, lida e relida, palavras reunidas numa sentença provocante, como se dissessem ironicamente: “Faz de mim outra coisa, se és capaz” (p. 48). A escrita, a revisão e a tradução aparecem como traições inevitáveis aos originais, aos referentes, à realidade e à autoria. Diante da chegada de um novo livro para revisar, Raimundo faz quase uma reza:

“... oxalá não me saia uma História de Portugal completa, que não faltariam nela outras tentações de Sim e de Não, ou aquela, quiçá ainda mais sedutoramente especulativa, de um infinito Talvez que não deixasse pedra sobre pedra nem facto sobre facto. Afinal, é apenas um romance entre os romances, não tem que preocupar-se mais com introduzir nele o que nele já se encontra, porque livros destes, as ficções que contam, fazem-se, todos e todas, com uma continuada dúvida, com um afirmar reticente, sobretudo a inquietação de saber que nada é verdade e ser preciso fingir que o é, ao menos por um tempo, até não se poder resistir à evidência inapagável da mudança, então vai-se ao tempo que passou, que só ele é verdadeiramente tempo, e tenta-se reconstituir o momento que não soubemos reconhecer, que passava enquanto reconstituíamos outro, e assim por diante, momento após momento, todo romance é isso, desespero, intento frustrado de que o passado não seja coisa definitivamente perdida. Só não se acabou ainda de averiguar se é o romance que impede o homem de esquecer-se, ou se é a impossibilidade do esquecimento que o leva a escrever romances” (p. 56).

Com sua traição, o revisor fere a confiança do que Saramago chama de Produção, referindo-se, ao mesmo tempo, à equipe da editora e ao mercado editorial. Mas Saramago também inverte a lógica da Produção. Se, ao mesmo tempo, ela aparece como aquela que vence sempre, que não tem outro objetivo senão o lucro, as vendas, a rapidez, ou seja, a lógica de mercado, é surpreendente a reação da Produção diante do erro deliberado, e assumido, do revisor. Raimundo Silva não é demitido, mesmo com a ridícula errata que a editora teve que colocar na obra do historiador, mas ganha uma espécie de acompanhante, de fiscal de suas ações dali para frente. Maria Sara torna-se mais do que uma fiscal, mas a paixão de Raimundo, e o revisor, torna-se mais do que um revisor, um escritor, criando a sua História do cerco de Lisboa.

Saramago, que trabalhou como gerente de produção numa editora, cria histórias dentro de histórias. Perdemos a possibilidade de saber, muitas vezes, quem é o historiador, o revisor e o narrador. Num jogo de espelhos em que suas imagens se mesclam, confundem. A mudança na pontuação efetuada por Saramago confere à conversa, de revisor e historiador no primeiro capítulo, um ritmo enlouquecido, uma velocidade alucinante. Não há pontos, apenas vírgulas. Após as vírgulas, maiúsculas para indicar o início de uma fala. Embora o autor tenha o cuidado de nos oferecer pistas para saber quem fala, se o revisor ou se escritor, a mistura entre os dois personagens é inevitável, diria, proposital. Uma intensa e amorosa experimentação que o próprio Saramago faz com a escrita, com suas regras, normas, potencialidades. Um cerco amoroso, que afirma o fim do cerco: “Claro que estamos em guerra, e é guerra de sítio, cada um de nós cerca o outro e é cercado por ele, queremos deitar abaixo os muros do outro e continuar com os nossos, o amor será não haver mais barreiras, o amor é o fim do cerco” (p. 330).

História do cerco de Lisboa
José Saramago, 9ª. Reimp.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989. (348 p.).