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Resenhas
Corpo, doença e liberdade
O escafandro e a borboleta convida o telespectador para uma reflexão sobre as superações humanas. Mostra a resistência e a coragem de um homem diante de dificuldades da vida.
Por Juliano Sanches
10/06/2009

O filme se passa na década de 1990 na França. O jornalista Jean-Dominique Bauby, representado pelo ator Mathieu Amalric, 43 anos, editor da revista Elle, é o protagonista do filme que explora a história de uma vida reformulada após um acidente vascular cerebral (AVC). Ele fica em coma duas semanas e, ao acordar, sente o corpo paralisado. No entanto, consegue mexer o olho esquerdo. E, por meio dele, passa a expressar as sensações vividas ao longo das etapas desse desafio humano. No começo, Bauby tem dificuldade para aceitar a condição vivida. Mas, ao longo do tempo, aprende a representar as letras do alfabeto por meio das piscadas de olho. Há, no filme, uma aposta em mostrar como a doença, e as condições que são impostas devido a ela, geram uma busca pelo autoconhecimento.

A obra literária O escafandro e a borboleta, de Jean-Dominique Bauby, é a narração dos momentos vividos desde a cirurgia até os passeios na cadeira de rodas. Ao passar pelas mãos do roteirista Ronald Harwood e do diretor Julian Schnabel, a obra se torna um filme sobre os limites da resistência emocional. Entre as obras cinematográficas de Schnabel, estão Antes do anoitecer, de 2000, e Basquiat: traços de uma vida, de 1996. Também construiu um documentário em 2007, chamado Lou Reed's Berlin.

No começo do filme, as imagens distorcidas de ossos humanos criam expectativas no observador. Aparentam comunicar sentimentos e até mesmo personalidades, como se fossem mapas das subjetividades dos seres humanos. E, partir daí, uma sala de cirurgia cria um cenário de base para a construção do enredo. A partir da estética dessa sala de cirurgia, O escafandro e a borboleta cumpre o desafio de desenvolver uma narrativa capaz de explicar o porquê dessa situação clímax. O filme recebeu quatro indicações ao Oscar, sete indicações ao César, indicação ao Grande Prêmio Cinema Brasil de melhor filme estrangeiro e os prêmios de melhor diretor e o Grande Prêmio Técnico no Festival de Cannes.

Imaginação e memória

Para tratar a doença, Bauby é submetido a uma cirurgia, mas a reabilitação deixa a desejar. Apenas o olho esquerdo se recupera e o olho direito fica sem irrigações, sendo costurado para não ficar exposto às bactérias. Apesar de imaginar a reprodução de sons, como se, de fato, falasse palavras, Bauby não consegue mover a boca. Depois de alguns testes, ele percebe isso. Para se alimentar, recebe nutrientes através da traqueostomia.

Em certo momento, os médicos comunicam ao jornalista sobre a ocorrência do AVC, que deixou o tronco vascular, que liga o cérebro à espinha dorsal, inabilitado. Na narrativa é destacado o fato de que se o caso fosse diagnosticado antes, provavelmente ele morreria, pois ainda não haviam sido desenvolvidos métodos para estabilizar o estado de saúde de pacientes com derrame. No filme, há uma esperança de recuperação pelo fato do cérebro não ter deixado de funcionar completamente. Mesmo com paralisia da cabeça aos pés, o jornalista encontra em referenciais íntimos motivos para continuar vivo. Os médicos, fisioterapeutas e psicólogos ficam surpresos em saber do histórico de vida daquele paciente, isso porque o AVC geralmente ocorre quando a pessoa fuma, bebe e é sedentária; ele não fumava, nem bebia em demasia.

Devido às condições, ele cria uma maneira pessoal de compreender o mundo. A imaginação e a memória agem, para Bauby, como lâmpadas mágicas, ou seja, ferramentas de criação. Ele consegue dar vida às suas imaginações. Nessa condição, de quase total imobilidade, os prazeres de Jean-Dominique Bauby vêm das imagens e vivências mentais, como a Torre Eiffel, andar de carro, entre outras. Imagens fotográficas de familiares, de geleiras que derretem, e de um mergulhador revestido por um escafandro, são devaneios constantes. No filme, visam expressar os sentimentos diante das circunstâncias físicas e psicológicas. É como se a roupa de mergulhador, esse arranjo gerado pelas imagens e vivências, fosse uma silhueta da sensação de estar aprisionado no próprio corpo. E, como desfecho, a borboleta citada na narrativa se faz imagem de uma liberdade almejada. Liberdade essa, talvez, conquistada com a desvinculação do corpo.

Num diálogo com seu pai, já idoso, ele comenta sobre o escafandro. “Você está prisioneiro do corpo, e eu estou preso no apartamento”, lamenta o pai, que apresenta dificuldades para andar. Esse devaneio de prisão, construído a partir do símbolo do escafandro, está interligado à água. Nos mitos, muitas vezes, a água é associada à purificação e aos conteúdos internos da pessoa. A obra parece querer revelar o lado marinho, ou seja, esse mundo abstrato, como uma maneira de se desapegar e desvincular dos estigmas e limitações de uma racionalidade predadora, egocêntrica e preconceituosa. As metáforas do escafandro e da borboleta também servem para mostrar como as pessoas, ao observarem-no, apenas conseguem imaginar a aparência causada pela doença, ou seja, a debilidade manifesta. As metáforas do filme também fazem lembrar os lados sombra e luz, presentes em oposições, separações e classificações feitas pela sociedade.

O Silêncio dos inocentes, de 1991, do diretor Jonathan Demme, apresenta o devaneio de encarar a borboleta como imagem da liberdade, como se o corpo humano fosse um casulo. As cenas mentais, produzidas a partir da leitura dos dois filmes, convidam a pensar uma questão: até que ponto as pessoas limitam a existência ao escafandro do corpo, a ponto de não visualizarem o lado borboleta da vida, ou seja, a capacidade de recriar os modos de existência até possíveis liberdades idealizadas? Em outras palavras, existe uma criação e recriação constante do humano? Ou ele está estagnado? Perguntas como essa, de uma maneira latente, parecem ser suscitadas pela obra cinematográfica. O filme mostra o quanto a antropogênese se faz verbo e carne na existência humana.

E, ao pensar na antropogênese, é possível refletir também as possibilidades da cosmogênese, ou seja, de uma criação contínua do cosmos, num processo ininterrupto de nascimento. As dimensões caos e cosmos se fazem presentes tanto na antropogênese quanto na cosmogênese. E o filme parece apontar pistas sobre isso, pois a situação de AVC, tida no início como caos, ao longo do tempo, após ganhar significações, passa a representar o cosmos. Isso porque, a partir dela, Jean-Dominique Bauby passa a se sensibilizar em relação aos valores pessoais, a ponto de rever e querer mudar a postura das relações sociais com os familiares e amigos. O caos da vida dele não foi absoluto. A situação anterior ao AVC, representada como ordem ou como cosmos, conforme se optou por apresentar, aparentava a sensação de segurança, mas, assim como o caos, estava em aberto, à espera de um porvir de nascimentos. Ou seja, após o caos, surgem outras possibilidades de reorganização da vida dele, a ponto de culminar com a realização de um desejo há muito tempo imaginado: escrever um livro. E, assim, a narrativa apresenta uma abordagem do homem desvinculada de conclusões ou ciências fechadas.

Na obra literária A águia e a galinha, do filósofo Leonardo Boff, também são discutidos os arquétipos humanos. Tratam-se de padrões de comportamento do inconsciente coletivo, ou seja, de figuras e símbolos com significações culturais e sociais universais. Baseado numa representação do educador africano James Aggrey, Leonardo Boff vê no ser humano as metáforas da águia e da galinha. Aggrey conta uma anedota sobre uma águia criada como galinha. Essa águia, conforme a narrativa, passa a se comportar como galinha. Isso faz o leitor pensar no quanto os seres humanos estão domesticados, a ponto de serem feitos galinhas pelas imposições exteriores. Mas, assim como no filme, há um desfecho para essa sensação. O renascimento da dimensão águia, proposta pelo livro, se assemelha à metáfora do surgimento da borboleta, após eclodir do casulo. Isso porque ambos tratam da representação da libertação das catividades, sejam físicas, espirituais, psicológicas ou sociais. O imaginário sobre o escafandro, por sua vez, se assemelha às limitações da metáfora da galinha. As visões sociais sobre o caso de Jean-Dominique Bauby o reduziam à dimensão galinha, por serem limitadas e empobrecidas. Mas, a partir de resistências e resignificações instintivas, meditativas, potenciais e pessoais, ele descobre a dimensão águia da vida, ou seja, uma essência para justificar a existência.

No filme, as ferramentas usadas para escapar do escafandro são a imaginação e a memória. Para os amigos, ele está incapaz de se comunicar, mas, para ele, as linguagens imagéticas e do piscar de olhos se fazem constantes. O jornalista passou se comunicar também consigo mesmo, ou seja, com as referências e personagens registradas pelas experiências e pela inventividade. O lado borboleta da personalidade desse jornalista também se faz presente quando ele desiste de ter pena de si. Jean-Dominique começa a prestar atenção no corpo, e descobre detalhes inexplorados. E isso o faz encontrar novos sentidos para a existência.

(Les scaphandre et le papillon)
Diretor: Julian Schnabel.
Roteiro: Ronald Harwood.
França/EUA, 2007.