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Resenhas
Imponderável deriva ibérica
Como num regresso aos áureos tempos em que reinaram sobre os mares, Portugal e Espanha, nessa fábula, se descolam da Europa e se deslocam pelo Atlântico
Rodrigo Cunha
10/11/2011

Em 1986, ano em que os países europeus assinaram um Ato Único para dar início à consolidação de uma comunidade continental gestada três décadas antes pelo Tratado de Roma, o escritor português José Saramago lança seu sexto romance, A jangada de pedra, que só seria publicado no Brasil dois anos depois. Ante aquele ato político que dava nova força à proposta unificadora da França acatada em 1957 por Alemanha, Itália, Luxemburgo, Bélgica e a atual Holanda, surge essa fábula que rompe os laços físicos da Península Ibérica com o continente, a partir de suas fronteiras com o território francês, e a coloca à deriva, a navegar pelos mares do imponderável.

É inevitável pensar que se trata de um olhar enviesado e cético diante da proposta de união dos povos europeus calcada em bases econômicas. Mas A jangada de pedra é, antes de tudo, uma saborosa odisseia navegante, ora trágica, ora cômica, de Portugal e Espanha, de portugueses e espanhóis. É conhecida a relação da parcela lusa da Ibéria com a navegação e com o épico, cantada em versos de Camões e de Pessoa; assim como também é característica a nostalgia lusitana, simbolizada pelo mito do eternamente esperado regresso de Dom Sebastião. Saramago, não por acaso, inclui nessa viagem insólita a coirmã espanhola, com quem Portugal dividiu os domínios do mundo em seus áureos tempos de desbravadores navegantes.

Aquele período das grandes navegações do século XVI colocou em destaque a arte da cartografia. Os autores dos mapas da época não podiam contar com as atuais fotos de satélite, que Saramago traz para seu romance como recurso dos especialistas para traçar as novas localizações da península. Por mais imprecisos que fossem os mapas do passado, um cartógrafo chamado Ortelius observou que os desenhos dos continentes europeu e africano se encaixavam, como peças de quebra-cabeças, ao traçado das Américas. Ele sugeriu, em seu Tesouro geográfico, de 1596, que aqueles continentes já haviam sido unidos antes. Mas é só no começo do século XX, com o auxílio de áreas como a paleontologia e a descoberta de fósseis similares em continentes separados pelo oceano, que surge a hipótese da deriva continental.

Subvertendo a lógica científica do movimento das placas tectônicas que levou à lenta navegação dos continentes por centenas de milhões de anos até chegarem à atual conformação, Saramago imagina um improvável racha na cordilheira dos Pirineus que separa a França da Península Ibérica e coloca, em questão de dias, portugueses e espanhóis a reviverem seus tempos de grandes navegadores, agora em uma imensa barca de terra e pedra. “Todo futuro es fabuloso”, diz a epígrafe do livro. E é a partir de uma confluência de episódios fabulosos, tanto no sentido de sua espetacularidade quanto de sua natureza onírica, que Saramago começa a narrativa de duas sagas paralelas: a da jangada de pedra peninsular e a de três portugueses e um espanhol, cujos nomes não poderiam ser mais representativos da identidade ibérica. Em sua jornada, Joaquim, José, Joana e Pedro, tentam juntar as pontas dos acontecimentos fantásticos que os une e aos quais atribuem à navegação insólita de seus países.

Nessa alternância entre a viagem dos protagonistas e a viagem da jangada de pedra – e o desdobrar dos acontecimentos na vida de portugueses e espanhóis –, a primeira é a que dá mais sabor à narrativa, não só pelo fato de Saramago carregar demais nas tintas do trágico e do cômico na segunda, mas por ser a outra mais humana, mais verdadeira, mais universal. O autor chega até a brincar com as limitações de sua forma de narrar esses acontecimentos alternados, lamentando não poder contar essa história como em uma ópera, em que as linhas melódicas de cada uma das vozes masculinas e femininas, graves e agudas, podem falar ao mesmo tempo de coisas diferentes.

E esse brincar consigo mesmo – que o faz referir-se, em determinado trecho da narrativa, a seu inexplicável estilo de pontuação – é mesclado com brincadeiras com a ciência, com a mídia, com os políticos e com as formas de lidar com o inesperado. No campo científico, além de geólogos, sismólogos e oceanógrafos que debatem ideias antagônicas para tentar explicar a inusitada navegação peninsular ou prever suas consequências, Saramago também faz menção à arqueologia e à antropologia, ao situar na cidade natal de Pedro o sítio onde supostamente teria sido encontrado o fóssil do mais antigo ancestral dos europeus, e à psicologia e à sociologia, que se debruçam sobre o movimento social dos jovens europeus solidários aos navegantes ibéricos.

Um gracejo familiar a quem trabalha no campo da divulgação científica aparece na cena do especialista convidado por um programa de TV, em que o entrevistador pede que ele seja mais claro em sua explanação, para que o público não especializado entenda, e o entrevistado sai com uma afirmação ainda mais obscura que a primeira. Mas Saramago erra na dose, ao reduzir o trabalho do Instituto Tecnológico de Massachussets ao processamento de dados que resultaria em frases explicativas para os fenômenos observados. E, em certos trechos, exagera, ao enumerar uma enorme sequência de elementos químicos que compõem as águas oceânicas – que alguns leitores podem considerar tão enfadonho quanto aquele em que aparecem as traduções nas diversas línguas europeias da frase símbolo do movimento dos jovens do continente.

O ponto forte da narrativa são as relações de amor, amizade e companheirismo construídas pelos protagonistas ao longo de sua viagem terrestre sobre a jangada de pedra, à qual se juntam Maria, um cão e dois cavalos. A segunda etapa da jornada é como um retorno no tempo, seja na forma cigana de deslocamento e subsistência, seja em diálogos nas paradas, como os que relembram batalhas decisivas na história de portugueses e espanhóis. Assim como as centenas de pássaros que inusitadamente acompanham José por onde ele for fazer seus desvios para beber água ou comer frutas, os viajantes unidos pelo insólito também têm suas preocupações terrenas, tanto com a logística quanto com os gastos da viagem. E é dessa odisseia terrestre sobre a pedra navegante que aflora o que há de mais humano e universal, as origens e o devir, o nascimento e a morte, as paixões e os desejos. Como se Saramago estivesse a dizer que, independentemente das separações ou junções geográficas, é o humano que nos une.


A jangada de pedra

Autor: José Saramago

Editora: Companhia das Letras

Ano: 1988

Nº de páginas: 317