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Resenhas
A guerra contra os fracos
A idéia de eugenia nasceu na Inglaterra, prosperou nos EUA e teve seu ponto alto na Alemanha nazista. Com nova roupagem e outros nomes, ela sobrevive até hoje.
Rafael Evangelista
09/02/2006

As atrocidades cometidas pelo nazismo em nome da construção de uma Alemanha exclusivamente para a “raça ariana” foram tão grandes e tão chocantes que tiveram como efeito um imbricamento da idéia de nazismo e eugenia no senso comum. Após o fim da Segunda Grande Guerra, o sentimento de repulsa e revolta com a revelação das torturas e mortes nos campos de concentração talvez tenha sido uma das razões que levaram a opinião pública em geral a se “esquecer” de que a idéia de higiene racial não foi uma invenção original de Hitler e de seus companheiros de partido. Ela nasceu na Inglaterra, mas prosperou e ganhou adeptos inicialmente no outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos. E foi patrocinada por instituições relevantes, como a Fundação Rockfeler e o Instituto Carnegie, de Washington.

A história está no livro de Edwin Black, A guerra contra os fracos. O autor é o mesmo de A IBM e o Holocausto, e faz um exame exaustivo nos arquivos públicos e privados, bibliotecas, jornais e outros documentos em busca da história da eugenia, a ciência (ou pseudociência) que se dedicou ao “melhoramento racial”. Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha – países visitados pela equipe de Black – foram, em momentos diferentes, os principais centros de divulgação e implantação de políticas de controle populacional eugenistas. Estas iam desde campanhas de incentivo aos “nórdicos” para que tivessem mais filhos, até o extermínio dos judeus em câmaras de gás, passando por leis que autorizavam a esterilização dos “socialmente inadequados”.

A guerra contra os fracos procura contar essa história desde seu princípio, examinando as primeiras leis contra a vadiagem que, na verdade, já eram leis de perseguição aos pobres. Mostra a influência fundamental das idéias do economista inglês Thomas Malthus, produzidas no século XVIII sobre este pensamento. O malthusianismo afirma que a expansão humana é limitada pela capacidade de produção de alimentos e chegou a defender que a caridade provocava a persistência da pobreza, embora criticasse a injustiça da estrutura econômica e social. No século XIX, o também filósofo inglês, Herbert Spencer, contribuiu para as bases teóricas da eugenia ao, antes de Darwin, afirmar a que a “sobrevivência do mais capaz”, seria algo determinado hereditariamente. Spencer também criticava a caridade, afirmando que “toda imperfeição deve desaparecer”.

Mas todo esse percurso dos filósofos ingleses culminou, no final do mesmo século XIX, com a teoria social do matemático Francis J. Galton. Obcecado pela construção de uma engenharia social que regulasse os casamentos, incentivando a procriação dos “melhores”, Galton construiu as bases da chamada “eugenia positiva”, que não falava em limitar a reprodução daqueles tidos como inferiores.

Já do outro lado do Atlântico, a eugenia ganhou sinal invertido, tornou-se “eugenia negativa”. As teorias do século XVIII e XIX nasceram de uma Inglaterra incomodada com as vítimas das duas revoluções industriais. No início do século XX elas floresceram e ganharam sentido próprio nos Estados Unidos, país onde ganhou força com a chegada de imigrantes vindos das partes mais pobres da Europa e com uma grande população negra, libertada legalmente em meados do século XIX. Para a “eugenia negativa”, era preciso esterilizar o “décimo inferior”, aquela parte da população tida como “socialmente incapaz”. Na maior parte das vezes o termo era um sinônimo para se referir à população pobre. A desigualdade social passou a ser justificada biologicamente.

O modo de ação preferido da eugenia estadunidense foi a esterilização compulsória. Houve também isolamentos – para que os “débeis mentais”, conceito que nunca foi explicitado com clareza, não se reproduzissem – e restrição a casamentos, principalmente entre brancos e negros, mas a grande vitória do movimento eugenista dos Estados Unidos foi conseguir aprovar leis estaduais que permitiam a médicos esterilizar seus pacientes.

O mais irônico é que, nos Estados Unidos, a eugenia encontrou seu ninho justamente em instituições de caridade, que deveriam cuidar dos pobres. Os patronos dessas instituições foram convencidos, pelos eugenistas, a contribuir financeiramente de maneira consistente com estudos que procuravam provar a hereditariedade da criminalidade, de doenças como a tuberculose e da incapacidade mental. Sem rigor e partindo de pressupostos questionáveis, mesmo assim essas pesquisas prosperaram e foram aceitas nos tribunais e casas legislativas. Possivelmente porque diziam o que os socialmente mais fortes queriam ouvir. O teste de QI, popular até hoje, é derivado direto desses testes.

Black coloca o nome de Charles Benedict Davenport, chefe do laboratório Cold Spring Harbor, ligado ao Instituto Carnegie, como líder do movimento eugenista americano. Sob seu comando e influência foram realizadas as principais pesquisas e estudos legais que deram base às leis de esterilização compulsória. Muitas dessas leis continuaram vigentes em certos estados dos Estados Unidos até a década de 1970, mas o brilho e a liderança mundial da eugenia estadunidense dura até o fim da década de 1920, quando o dinheiro dos mecenas corporativos começa a minguar devido à quebra da bolsa em 1929.

A década de 1930 marca o início da liderança alemã. Toda a teoria e propaganda eugênicas faziam um grande elogio aos “nórdicos”, ao povo de olhos azuis e cabelos louros e a eugenia já encontrava grande simpatia nos países do norte da Europa. Com a ascenção dos nazistas, ela se tornou a teoria perfeita para cimentar a união de um Estado-nação ainda frágil e dividido em diversos grupos culturalmente distintos como a Alemanha. Bastava escolher um inimigo comum, os judeus.

A liderança alemã não significou o silêncio dos Estados Unidos. Pelo contrário, Black documenta que houve intensa comunicação entre os países e, mesmo durante a guerra os estadunidenses recusaram-se a admitir os horrores nazistas. O mentor de Josef Mengele, Otmar Verschuer, chegou a pedir emprego, logo após a guerra, a Paul Popenoe, eugenista proeminente da Califórnia. Para Black, somente após racionalizar cientificamente o racismo e o ódio grupal a humanidade foi capaz as ações destrutivas contra os indesejados e os desprezados.

Entre as virtudes do livro de Black está não fechar os olhos para as conexões entre as idéias eugênicas do início do século passado e a nova-genia do século XXI. Ele alfineta até mesmo a James Watson, co-descobridor da hélice dupla do DNA e atualmente presidente do mesmo Cold Spring Harbor, de Charles Davenport, que afirmou, em 2003: “Se uma pessoa é realmente estúpida, chamo a isso de doença. O que provoca o nascimento dos 10% de seres humanos inferiores que realmente têm dificuldades, mesmo na escola elementar? Muitas pessoas poderão dizer: 'Bem, a causa é a pobreza, coisas desse tipo'. Provavelmente não é. Desse modo, eu gostaria de eliminar isso, de ajudar esses 10%”.

De fato, as idéias eugênicas sobrevivem, muitas vezes com outros nomes. Assim como a tática de dar um verniz científico a instituições que, na verdade, são apenas lobistas: uma das práticas dos eugenistas era reunir um conselho consultor de “notáveis”, para ganhar prestígio, mesmo que esse conselho não participasse de nenhuma decisão.

A guerra contra os fracos é um trabalho de fôlego, com farta documentação. Falta, talvez, um pouco mais de refino na interpretação, na reflexão sobre o que impulsionou o movimento. Black atribui isso simplesmente à arrogância de alguns. Mas fica bastante clara, ao final do livro, a idéia de que, desde seu nascimento, a eugenia foi o modo escolhido por uma classe dominante para controlar e disciplinar um setor da população excluída.

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A guerra contra os fracos. Editora: A Girafa, 2003. 860 páginas