REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Ciência e contingência - Carlos Vogt
Reportagens
O clube da bomba atômica
Fabiana Silva
Energia nuclear no cenário pós-Fukushima
Sarah Schmidt
Mil sóis, os hibakusha e a responsabilidade dos cientistas
Kátia Kishi
De Gen Pés descalços ao Godzilla: como a bomba atômica inspirou a ficção japonesa
Tiago Alcântara
Vantagens e controvérsias do uso da energia nuclear no Brasil
Fernanda Grael
Artigos
A radioatividade e a história do tempo presente*
Fábio Merçon e Samantha Viz Quadrat
Imigrantes nipônicos segundo Oswald e Mário
Roberto Goto
A história da radioatividade na medicina
Antonio Carlos Pires Carvalho
Os efeitos biológicos do acidente com o césio-137 em Goiânia
Emico Okuno
Os hibakushas brasileiros
Roberto Sagawa
Resenha
Os sobreviventes
Carolina Medeiros
Entrevista
Luiz Pinguelli Rosa
Entrevistado por Denise Lourenço
Poema
Receitinha
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Artigo
A história da radioatividade na medicina
Por Antonio Carlos Pires Carvalho
10/09/2015

Heráclito de Éfeso (570-480 a.C.) disse que a guerra é o principal motor da ciência. Isso é uma grande verdade, especialmente no campo da radiação. Tanto para o bem quanto para o mal. Hiroshima e Nagasaki ainda têm sobras das bombas lançadas sobre elas em 1945. Sem falar em Three Mile Island (1979), Tchernóbyl (1986), Fukushima (2011) e o acidente de Goiânia com césio (1987). Esses são os que sabemos, sem ter ideia se algum outro foi “abafado”.


Habitualmente, quando se abordam os aspectos históricos dos raios-X e da radioatividade, começamos pela data 08 de novembro de 1895, consagrada como o dia da descoberta dos raios X por Wilhelm Conrad Röntgen.

http://www.labjor.unicamp.br/imagens/reportagens/bomba_atomica/imga.jpg
Wilhelm Conrad Röntgen

Porém, penso que essa abordagem histórica deve recuar um pouco mais no tempo. Do meu ponto de vista, a observação que levou a tudo isto foi feita por Thales de Mileto, lá pelo ano 600 a.C. Ao esfregar um pedaço de âmbar amarelo com a lã de suas vestes, Thales notou que o âmbar (electron em Grego) passava a atrair pequenos pedaços de palha e fiapos de lã ou algodão. Essa observação ficou por séculos sem explicação, até que um médico inglês, William Gilbert, repetindo a experiência de Thales no século XVI, criou o termo “electric”.

Dois séculos mais tarde, Charles Du Fay e Benjamin Franklin descreveram com mais detalhes que havia dois tipos de eletricidade, ficando mundialmente aceita a denominação “positiva e negativa” de Franklin.

No fim do século XIX, os físicos andavam entusiasmados com as experiências envolvendo faíscas elétricas criadas em tubos de vidro a partir de bobinas e baterias. A cena foi imortalizada pelo cinema, com “faíscas subindo” no filme Frankenstein, caracterizando um laboratório.

Gigantes da física andavam na Terra nesta época: Crookes, Hertz, Hittorf, Röntgen, Becquerel, Pierre e Marie Curie, entre muitos outros notáveis. Aristóteles, Galileu e Newton tinham criado algumas bases do que hoje chamamos de ciência. Rutherford e Bohr seriam conhecidos pouco depois com as teorias e modelos atômicos. De concreto havia os estudos de Lavoisier sobre um componente indivisível da matéria e elementos químicos. O átomo ainda era desconhecido.

Voltando ao dia 08 de novembro, Röntgen estava em seu laboratório repetindo metodicamente as experiências relatadas por outros físicos sobre os raios catódicos. Intrigava-se, particularmente, por uma observação descrita por um pesquisador que os raios catódicos se propagavam para fora do tubo de vidro. Como esses raios são de elevada luminosidade (semelhante ao filamento de uma lâmpada incandescente), não conseguia ver com nitidez o que de fato ocorria. Resolveu, então, envolver o tubo com uma cartolina preta e se trancou numa sala totalmente escura para repetir a experiência e ver a citada propagação. Depois de algum tempo, com a visão adequadamente adaptada ao escuro, pôde observar que a certa distância havia um brilho débil que se apagava ao desligar a corrente. Foi ver o que era, viu tratar-se de um cartão coberto por platinocianureto de bário, substância que brilha em certas condições. Havia a descrição feita por outro físico que os “raios catódicos” faziam brilhar tal substância. Como tinha certeza que os raios catódicos não se propagavam para fora do tubo, concluiu que algum outro tipo de raio invisível causava esse brilho.

Aqui me permito fantasiar um pouco – Röntgen, ao pegar o cartão em sua mão e ligar o aparelho, pôde ver por transparência os ossos de sua mão, fazendo a grande descoberta. Consciente do potencial de sua observação, sofregamente, passou a fazer todos os testes conhecidos sobre os raios. Percebeu que os novos raios pareciam se originar do ponto em que os raios catódicos atingiam a parede do tubo de vidro, raios e ponto de choque que ele conseguia deslocar com o uso de um imã. Em seguida, convencido de suas conclusões, fez a famosa radiografia da mão esquerda de sua esposa, e descreveu suas observações em um artigo considerado um clássico da ciência (“Ueber eine neue Art von Strahlen” – “Sobre uma nova espécie de raios”). Posteriormente, escreveu mais dois artigos sobre os raios X e nenhuma de suas conclusões foi até hoje refutada.

http://www.labjor.unicamp.br/imagens/reportagens/bomba_atomica/imgb.jpg
Mão esquerda de Anna Bertha Röntgen.

Por sua descoberta, Röntgen recebeu o Nobel de Física em 1901. Seu laboratório está conservado, virou um museu. Outros museus (Alemanha, Bélgica, Itália) foram feitos para homenagear sua grande descoberta. Selos foram emitidos em praticamente todo o mundo em 1995, pelos 100 anos dos raios X.

Outros tiveram a oportunidade de fazer a descoberta. Todos estudavam os mesmos raios catódicos, todos tiveram sob seus olhos a possibilidade, mas somente Röntgen percebeu que havia algo a mais.

É famosa a fotografia de duas “imagens arredondadas” que apareceram “manchando” um filme, obtida no laboratório de Goodspeed 15 anos antes. Mas quem lá estava não percebeu que o filme estava ao lado de um tudo de raios catódicos, com duas moedas pousadas sobre ele, filme que foi revelado tempos depois. Diz a lenda que 10 anos antes da descoberta, em 1885, Röntgen estava no seu laboratório com alguns alunos e um deles queimou um tubo de raios catódicos ao ligar o equipamento. Alguém teria percebido um brilho fugaz num catão revestido pela mesma substância fluorescente, platinocianureto de bário, mas ninguém fez a associação correta dos fatos. Somente 10 anos depois, W. C. Röntgen fez a observação que iniciou o que viria a ser o estudo da radioatividade.

http://www.labjor.unicamp.br/imagens/reportagens/bomba_atomica/imgc.jpg
Manchas” arredondadas num filme (Goodspeed, 1880)

A partir dessa portentosa descoberta, logo encampada pela medicina, o diagnóstico de muitas doenças passou a ser feita de forma mais segura, confiável e precoce. Em alguns casos, também o tratamento. Radiação é um risco, tomar sol ou ir a uma estação de esqui nos Alpes ou Aspen também, mas o benefício do seu uso quando bem indicado, é muito superior.

Pouco depois, Becquerel e o casal Curie observaram que filmes expostos ao urânio e outras substâncias ficavam “manchados”. Já havia o conhecimento dos estudos de Röntgen, daí o termo radioatividade ser introduzido. Com isso receberam um Nobel. Pela descoberta do polônio e rádio, Marie Curie foi a primeira receber o segundo prêmio Nobel.

Certamente foi a partir dos estudos da radioatividade que surgiu a medicina nuclear e o uso de marcadores radioativos para localizar “focos de doença”. Certamente também foi a partir dos estudos de seus efeitos que a radioterapia surgiu. Já em 1896, Thomas Edison escreveu que o uso repetido de raios X causava vermelhidão na pele. Observação feita também por um médico brasileiro no mesmo ano. A mesma radiação que pode causar o câncer, também pode ajudar a tratá-lo.

Alguns anos depois, outra experiência casual ocasionou mais uma revolução na medicina. No início dos anos 1960, G. N. Hounsfield recebeu da Scotland Yard a incumbência de avaliar o uso de computadores para “reconstrução” de retratos falados de criminosos, reconhecimento de padrões de escrita e impressões digitais.

Engenheiro, com experiência em computadores, radares, piloto da R.A.F. e com verbas abundantes, passou anos estudando as bases matemáticas e físicas da proposta. Após esse tempo, a S. Yard desistiu da proposta, e ele ficou com quase 10 anos de estudos sem uso.

Também diz a lenda que um médico, neurocirurgião, que tinha alguma noção de física e matemática, perguntou se aquilo não podia ser usado com radiação para ver por dentro do crânio. Talvez inspirado por estudos anteriores de Oldendorf, que mostrava descontinuidades de densidades no interior de objetos fechados, estudados por uma fonte de raios gama em movimento ao seu redor, e Cormack, que também havia publicado seus trabalhos matemáticos sobre as equações de Radon e sua utilidade em estudos desse tipo.

Hounsfield pensava que um feixe de raios X continha mais informação que a mostrada pelo filme radiográfico. Desenvolveu um protótipo da máquina, inicialmente com isótopo radioativo e depois, com raios X, conseguiu uma peça anatômica de cérebro humano conservado em formol. Os dados matemáticos foram processados por 48 horas e mostraram algo novo. Os pontos calcificados podiam ser vistos com alguma nitidez, assim como as diferentes densidades do cérebro. A tomografia computadorizada tomava forma, ganhava bases científicas e o mundo. Hoje é um dos métodos de imagem mais eficazes no estudo do corpo humano. Hounsfield e Cormack recebem o Nobel de Medicina em 1979. Há quem diga que a academia sueca devia ter incluído Oldendorf no prêmio.

http://www.labjor.unicamp.br/imagens/reportagens/bomba_atomica/imgd.jpg
Protótipo do primeiro tomógrafo de Housnfield.


http://www.labjor.unicamp.br/imagens/reportagens/bomba_atomica/imge.jpg
Tomografia de um cérebro humano – primeira obtida no protótipo.

Com os riscos do uso das radiações cada vez mais evidentes, surgem novas pesquisas sobre métodos de diagnóstico sem uso de radiação ionizante. A ultrassonografia foi pensada a partir do desejo de estudar o feto dentro da bolsa de líquido amniótico. E os sonares submarinos serviram de inspiração, pois se era possível localizar submarinos no fundo do mar, usando o mesmo método, devia ser possível ver um bebê dentro da mãe usando um feixe sonoro.

Em 1794 Spallanzani havia observado que os morcegos se orientavam pelo som e seu eco. Em 1877 Lord Rayleigh publica a teoria do som, base da física acústica (ganhou Nobel em 1904 pelo isolamento do argônio). Em 1880, Pierre Curie e seu irmão Jacques observam que certos cristais, sob pressão, emitiam eletricidade (efeito piezoelétrico). Pouco depois descrevem o efeito inverso, de forma que eletricidade em certos cristais provoca ultrassom. Em 1912 (logo depois do Titanic), foi patenteado o primeiro “rastreador submarino”. A piezeletricidade teve seus princípios explorados no início do século XX por Jean Paul Langevin, que inventou os primeiros transdutores ultrassônicos a quartzo para detectar submarinos durante a I Guerra Mundial, em 1917. Desse salto técnico ao exame de ultrassonografia foi uma questão de tempo e evolução de equipamento.

Toda substância (átomos ou núcleos) tem propriedades magnéticas, magnetismo de intensidade variável. A ressonância ocorre quando estimulamos prótons, que estão sob o efeito de um campo magnético, com ondas de radiofrequência. Há absorção e devolução de energia ao campo magnético. O átomo mais importante é o hidrogênio, pois 70% do corpo humano é água.

A ressonância é um fenômeno descrito em 1946 por Bloch e Purcell – Nobel em 1952. Datam de 1973 as primeiras publicações por Lauterbur, relativas à localização espacial e à técnica de reconstrução projetiva por ressonância magnética, denominada então de zeumatografia. Em 1975 foi desenvolvido o primeiro protótipo de um magneto com fins comerciais e, subsequentemente, de 1980 a 1983, os primeiros estudos clínicos começaram a surgir na literatura.

Mais um Nobel – 2003 (Lauterbur e Mansfield), mostra que a importante relação entre descobertas no diagnóstico médico e o Nobel não é coincidência.


Antonio Carlos Pires Carvalho é professor do Departamento de Radiologia da FM-UFRJ.



Bibliografia consultada

Francisco, F.C.; Maymone, W.; Carvalho, A.C.P.; Francisco, V.F.M.; Francisco M.C. “Radiologia: 110 anos de história”. Rev Imagem 2005; 24:281–6.

Carvalho, A.C.P. “Sobre uma nova espécie de raios”. Rev Imagem 2005; 27:287–93.

Carvalho, A.C.P. “Observações adicionais das propriedades dos raios X (terceiro comunicado)”. Rev Imagem. 2006; 28:135–43.

Carvalho, A.C.P. “O mundo ao redor dos raios X”. Rev Imagem 2006; 28(3):209–217

Carvalho, A.C.P. “História da tomografia computadorizada”. Rev Imagem 2007; 29(2):61–66