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Editorial
A mudança em construção
Por Carlos Vogt
10/04/2016
Nas férias de verão de 1963, eu estava na cidade agrícola de grandes fazendas que era Sales Oliveira, onde meu pai era seleiro, enquanto eu estudava em São Paulo, na então FFCL-USP, localizada na rua Maria Antônia, na mistura juvenil do prazer ardente do descompromisso boêmio com a seriedade fácil e sincera da militância política estudantil.

O Cine Santa Rita, no Largo da Matriz, em Sales Oliveira, era uma das cidadelas que conquistávamos todos os dias nas tardes quietas da população pequena e tranquila. Tomávamos de assalto o cinema para, na verdade, invadir-lhe o serviço de som e espalhar pelos alto-falantes presos ao telhado do coreto, a programação de música, poesia e textos de incitação ideológica que muitos achavam peraltices, outros, esquisitices e alguns, "senhores barões da terra", graves ameaças:

Era ele que erguia casas
onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
ele subia com as casas
que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
não sabia, por exemplo
que a casa do homem é um templo
um templo sem religião
como tampouco sabia
que a casa que ele fazia
sendo a sua liberdade
era a sua escravidão1.

Vinícius de Moraes, Moacyr Félix e os três volumes de Violão de rua  ̶  série de livros de bolso com poemas engajados, publicada pelo extinto Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional de Estudantes (UNE)  ̶ , Francisco Julião e as Ligas Camponesas  ̶  ancestrais do Movimento dos Sem-Terra (MST), na luta pela reforma agrária. Em Sales Oliveira, nós assustávamos as noites das famílias pelos mesmos alto-falantes do Cine Santa Rita, imitando vozes tenebrosas deste e de outros mundos e, durante o dia, preocupávamos, nas tardes, os fazendeiros temerosos da propaganda "comunista" que o "bando de jovens desocupados e irresponsáveis" propalava na calma quente dos dias de janeiro:

Senhores barões da terra
Preparai vossa mortalha
porque desfrutais da terra
e a terra é de quem trabalha2.

O Brasil espreguiçava contente ao sopro da democracia do pós-guerra e do pós-getulismo. Esticava-se dengoso e descontraído na rede do desenvolvimentismo dos anos do governo Juscelino Kubitschek (JK) e vivia a euforia do novo tudo  ̶  Novacap, bossa nova, cinema novo, vida nova ̶ , e nós, da vida vadia. Mas discutíamos apaixonados e a pregação comia solta:

E foi assim que o operário
do edifício em construção
que sempre dizia sim
começou a dizer não3.

A poesia, além de Vinícius, tinha o peso e a leveza de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Mário Chamie, gerações diferentes, mas convivendo no mesmo tempo, mágico e conflitante, de afirmação lírica da alma brasileira. João Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, Murilo Rubião, Dalton Trevisan, Jorge Amado, Clarice Lispector, Raquel de Queirós, Ligia Fagundes Teles, Antonio Callado, Mário Palmério são outras convivências, em prosa, que adensam o período.

E no Cine Santa Rita, seguia a doutrinação:

Dia seguinte, o operário
ao sair da construção
viu-se súbito cercado
dos homens da delação
e sofreu, por destinado
sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
teve seu braço quebrado
mas quando foi perguntado
o operário disse: “não”4.

Os anos anteriores tinham sido pródigos na criação de instituições culturais e na multiplicação de universidades: em 1947, o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp); em 1948, a Escola de Arte Dramática (EAD), o extinto Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), que, em 1949, teve seu equivalente no Rio de Janeiro (RJ); em 1951, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); em 1962, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), depois de uma longa negociação que teve início com os trabalhos da Constituinte, em 1947.

O presidente JK, seresteiro e sedutor, imprimiria a marca de suas iniciais aos anos de seu governo na Presidência da República (1956-1960), depois de ter passado pela prefeitura de Belo Horizonte (1940-1945), capital de Minas Gerais, estado que também governou (1950-1955). Ele deixaria saudades e a sensação de incompletude que sempre permeia a interface entre a realidade e o mito.

A fundação de Brasília mobilizou o país e sua inauguração foi a apoteose do desenvolvimentismo do governo JK. As crises políticas durante os anos de seu governo não tinham também sido poucas: agravaram-se, na sequência, com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, e com o governo João Goulart, seu vice-presidente, que o sucedeu, em meio a tensões e anúncios de conflagrações generalizadas, até que, em 1964, o golpe militar, em março-abril, fechou, com águas sazonais torrenciais e duradouras, a agitada expectativa de futuros promissores e tranquilos que tão bem caracterizou a efervescência cultural e política dos anos anteriores:

Em vão sofrera o operário
sua primeira agressão
muitas outras se seguiram
muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
ao edifício em construção
seu trabalho prosseguia
e todo o seu sofrimento
misturava-se ao cimento
da construção que crescia5.

O Brasil vinha, há alguns anos, de um esforço intelectual de ajuste de contas com seu passado escravista. O binômio escravidão-latifúndio engendrou no Brasil a predominância dos valores da vida rural, com uma "monarquia tutelar", do ponto de vista político, uma economia escravista e monocultora e um ethos social, como bem mostrado em Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, fundado na cordialidade. Esse esforço intelectual, que se estendeu até os anos 1960, reuniu obras de referência indispensáveis para a compreensão do país e de suas transformações, e as congregou, de um modo geral, em torno dos processos de formação de sua modernidade e de sua contemporaneidade, contando, inclusive, entre seus autores, com a contribuição de pesquisadores estrangeiros.

Não é por acaso que todas as obras produzidas pelos intelectuais desse período trazem em seu título o termo formação. Em ordem cronológica Casa-grande e senzala: formação da família patriarcal brasileira (1933), de Gilberto Freyre; Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr.; Formação histórica de São Paulo: de comunidade a metrópole) (1954), de Richard Morse; Formação da literatura brasileira (1957), de Antonio Candido; Formação econômica do Brasil (1958), de Celso Furtado; Os donos do poder: formação do patriarcado nacional (1959), de Raimundo Faoro; A formação do federalismo no Brasil (1961), de Oliveira Torres; Formação histórica do Brasil (1962), de Nelson Werneck Sodré; Formação política no Brasil (1967), de Paula Beiguelman.

Quando esse ciclo se fechou, o Brasil estava pronto para colher a grande obra literária que nasceria da dinâmica dessas transformações e eclodiria como metáfora definitiva da ruptura entre o rural e o urbano: Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, pela tessitura da linguagem mutante, pelo contencioso da convivência entre o regional e o universal, pela universalização do local e do específico, pela localização dos conflitos universais entre o real, o mítico e o místico, pela desconstrução da memória e pela memória de um mundo em desconstrução, grande sertão, veredas da transformação:

um silêncio de torturas
e gritos de maldição
um silêncio de fraturas
a se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
de todos os seus irmãos
os seus irmãos que morreram
por outros que viverão.
Uma esperança sincera
cresceu no seu coração
e dentro da tarde mansa
agigantou-se a razão
de um homem pobre e esquecido
razão porém que fizera
em operário construído
o operário em construção6.

As Ligas Camponesas estão lá atrás no registro devido de sua importância histórica e Francisco Julião, depois de anos de lutas, de exílio forçado e de exílio voluntário, morreu no México, em 1999, aos 84 anos de idade.

O mundo mudou muito nesses anos. O capitalismo mudou, os embates ideológicos mudaram e a globalização da economia se espalhou pelo planeta, envolvendo as nações e suas lutas na malha de aço transparente dos compromissos com a livre circulação do capital financeiro internacional.

Sales Oliveira há muito não tem a Mogiana, e a estação de trem seguiu o destino de suas congêneres pelo interior do estado de São Paulo: transformaram-se em centros culturais simpáticos e espremidos entre o mundo, pela televisão e a internet, e as tradições locais que teimam, acanhadamente, em frequentar mostras e festivais da produção regional.

Os conflitos de terras foram alçados a pautas urgentes de políticas públicas governamentais e o MST nasceu, cresceu, espalhou-se pelo país e adquiriu uma maturidade conflituosa que permanece estirada na tensão contemporânea entre a economia voltada para a produção e o consumo locais e a economia orientada para a exportação.

A reforma agrária no país evoluiu de palavra de ordem de movimentos políticos organizados para bandeira civil de movimentos sociais.

O Cine Santa Rita, na Praça da Matriz, em Sales Oliveira, há muito tempo fechou suas portas, e os alto-falantes de seu serviço de som, mudos há muitos anos sobre o teto do coreto do jardim, já não existem mais. 

No cenário dessas mudanças, a imprensa, sobretudo, mais recentemente, sob o impacto das novas tecnologias de informação e de comunicação (NTICs), também mudou e, com sua mudança, fez também mudar, no próprio cenário, o ritmo de suas transformações, adquirindo, assim, novas configurações, cujos desenhos são objeto deste número da revista ComCiência.

 

* Este texto reproduz, com exceção do último parágrafo, a parte VI, de mesmo título, do ensaio “Álbum de retalhos”, do livro A utilidade do conhecimento. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015, p. 166-171. 

 

1 Moraes, Vinícius de. O operário em construção. In: Sant’anna, Affonso Romano de et al. Violão de rua. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962. (Col. Cadernos do Povo Brasileiro). p. 86.

2 Moraes, Vinícius de. Homens da terra. In: Sant’anna, Affonso Romano de. et al., op. cit., p. 82.

3 Moraes, Vinícius de. O Operário em construção. Sant’anna, Affonso Romano de. et al., op. cit., p. 89.

4 Moraes, Vinícius de. O Operário em construção. Sant’anna, Affonso Romano de. et al., op. cit., p. 90.

5 Moraes, Vinícius de. O Operário em construção. Sant’anna, Affonso Romano de. et al., op. cit., p. 90.

6 Moraes, Vinícius de. O Operário em construção. Sant’anna, Affonso Romano de. et al., op. cit., p. 92.