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Reportagem
A briga pela TV Digital agora é no campo jurídico
Por Carolina Cantarino
10/10/2006

O Ministério das Comunicações promete, ainda para este mês, a divulgação de um cronograma detalhado da digitalização da TV aberta no Brasil. A transição do sistema analógico para o digital começará pelo fornecimento, através de consignação, de canais digitais para as atuais emissoras concessionárias. Depois da escolha do padrão – preferido pelas emissoras de modulação japonês (em detrimento do padrão europeu, do estadunidense e de desenvolver um brasileiro), esse “empréstimo” dos canais digitais para as redes privadas de TV derrubou boa parte das expectativas daqueles que apostavam que a digitalização poderia favorecer a democratização da TV aberta no país.

Não só o Decreto 5820/06, assinado em julho deste ano pelo presidente Lula, mas o processo como um todo de tomada de decisões em torno da TV Digital, tem mostrado que a possibilidade de democratização não é dada unicamente pela tecnologia já que, a despeito dela, o cenário que favorece o monopólio das emissoras privadas de TV vem sendo mantido. O campo jurídico é a nova seara de embates em torno da digitalização da TV aberta no Brasil: além do questionamento da legalidade do decreto presidencial, um novo marco regulatório para o setor de comunicações, reivindicado há muitos anos, continua, mais do que nunca, em pauta. E não só para os movimentos sociais e organizações não-governamentais que reivindicam a democratização do setor: os radiodifusores e as empresas de telefonia (as chamadas telecom) também querem discutir uma Lei Geral de Comunicações para resguardar seus interesses num cenário próximo de convergência tecnológica.

Tecnologia em primeiro lugar?

“Tudo o que havia sido conquistado através do Comitê Consultivo e do Conselho de Comunicação Social da Câmara do Deputados e que constava no Decreto 4.901/03 que criou o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (SBTVD-T) foi ignorado pela gestão de Hélio Costa. O ministro das Comunicações retrocedeu e adotou a proposta que havia sido feita durante o governo FHC, e que contempla apenas os interesses dos radiodifusores privados”, afirma Celso Augusto Schröder, coordenador do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e secretário-geral da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). No final de setembro, o FNDC entregou um documento aos candidatos à presidência, com uma série de propostas para a área das comunicações, pedindo, inclusive, a revogação do Decreto 5.820/06 que institui a TV Digital.

Única instância de participação da sociedade civil, o Comitê Consultivo deixou de ser convocado em 2005, durante o mandato do atual ministro. A sociedade civil foi excluída mas a comunidade científica ainda participa das discussões sobre as diretrizes da digitalização, embora também pairem dúvidas sobre o que será feito com as pesquisas desenvolvidas pelas universidades brasileiras. Financiados com R$ 38 milhões do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel), 22 consórcios formados por 77 universidades e instituições de pesquisa desenvolveram, sob a coordenação da Fundação CPqD, pesquisas e soluções para a estrutura de transmissão e modulação dos sinais de vídeo, áudio e dados; equipamentos de recepção; e opções para o canal de retorno, necessário para a interatividade.

O Fórum do SBTVD-T previsto no decreto (e que exclui a chamada sociedade civil) foi instituído e tem trabalhado para que algumas inovações tecnológicas nacionais sejam incorporadas ao padrão de sinais japonês. “A dificuldade de se testar em campo os padrões de modulação desenvolvidos no Brasil tornaram a escolha do padrão japonês mais viável. Mas é preciso lembrar que a tecnologia japonesa se restringe à modulação, que é só uma parte do sistema. Os padrões de middleware, por exemplo, serão aqueles que reunimos no Ginga. Pelo menos essa é a recomendação, já aprovada pelo Fórum do SBTVD-T que faremos ao governo”, afirma Guido Lemos de Souza Filho, do Laboratório de Aplicações de Vídeo Digital (Lavid), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). O Lavid liderou o consórcio responsável pelo desenvolvimento desse software, o Ginga, necessário para a execução de aplicativos na TV, e que reuniu também a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Puc-Rio).

Segundo Souza Filho, essas decisões estão sendo tomadas no âmbito do Fórum do SBTVD-T, criado pelo Decreto 5.820 e composto por representantes das emissoras de TV, do setor industrial, das universidades e institutos de pesquisa. Mas não há, ainda, garantia de que as inovações ali discutidas e aprovadas serão, de fato, incorporadas. “Temos dois meses para concluir a redação dos documentos relativos aos padrões de middleware e encaminhá-los ao governo. A decisão caberá ao conselho ministerial que trata desse tema”, lembra o engenheiro.

Questões menosprezadas

O Ministério das Comunicações tem enfatizado que o aspecto mais importante da TV Digital seria o estímulo ao desenvolvimento industrial do país. As emissoras privadas de TV, por sua vez, transformaram a digitalização numa discussão meramente técnica, na qual a transmissão em alta definição seria o elemento mais importante. O próprio Decreto 5.820 – ao garantir a continuidade dos radiodifusores, do setor industrial e da comunidade científica nas discussões e excluir a chamada sociedade civil – reforça o tipo de tratamento que vem sendo dado à digitalização. Suas potencialidades relativas ao conteúdo (produção independente e regional), à entrada de novas emissoras, ou mesmo à questão da interatividade e da inclusão digital foram deixadas em segundo plano.

A digitalização permite, por exemplo, o aumento do número de canais, o que poderia abrir espaço na TV aberta para a entrada de novas emissoras (públicas, estatais e privadas) e novos produtores – independentes e/ou regionais - de conteúdo. Com a compressão de sinais possibilitada pela digitalização, sobrará espaço na freqüência de 6 MHz – o popular “canal de TV” que poderia, assim, abrigar até oito programações diferentes. Mas o decreto estabelece que a divisão do espectro eletromagnético deve ser feita entre as emissoras já existentes, através de uma consignação, baseada num suposto direito adquirido das atuais concessionárias. Ou seja, a possibilidade oferecida pela digitalização de que novas emissoras ingressem no sistema de radiodifusão, não foi contemplada pelo decreto.

O elemento, portanto, em disputa é a divisão do espectro eletromagnético por onde trafegam os sinais de televisão. Para que as atuais emissoras iniciem a transmissão digital, elas necessitam de novos canais, uma vez que, durante o prazo máximo de 10 anos, a transmissão analógica deverá ser mantida. O problema é que ao “emprestar” os canais digitais para as atuais concessionárias de televisão, todo o espectro será ocupado, inviabilizando a entrada de novas emissoras no sistema. Além disso, a entrega dos novos canais, segundo a Constituição, necessitaria de uma nova outorga – na medida em que se trata de um concessão pública, já que o espectro é público – o que não foi feito.

As ilegalidades desse processo estão sendo apontadas pelo Ministério Público Federal e por organizações da sociedade civil como o coletivo Intervozes que apostavam que a digitalização seria a oportunidade de se democratizar o setor de comunicações no país. Para tanto, defenderam a necessidade de que a legislação sobre o setor fosse revista antes mesmo de se iniciar a implantação da TV Digital.

O setor de comunicações ainda é regido pelo Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117), aprovado em 1962. Ele foi “atualizado” em 1997 através da separação entre radiodifusão e telecomunicações para que fosse realizada a privatização da telefonia no Brasil. Historicamente, o setor de radiodifusão no Brasil é dos que mais carece de regulação e a pouca legislação existente está se tornando anacrônica diante das novas tecnologias. “É preciso lembrar que a digitalização não é apenas um upgrade tecnológico e nem mesmo se restringe à TV aberta. É uma mudança de paradigma das comunicações como um todo que exige, portanto, uma nova legislação”, lembra Celso Schröder.

Convergência tecnológica

A princípio, as redes de televisão foram as principais vitoriosas com a escolha do padrão de modulação de TV Digital japonês porque ele é o que traria menos impacto ao seu modelo de negócios, bloqueando a concorrência das empresas de telecomunicações que defendiam a adoção da modulação européia, que permitiria a sua participação no espectro de TV para a transmissão de vídeo para celulares. Mas com a chamada convergência tecnológica, as teles prometem não ficar de fora. “As empresas de telecomunicação entrarão no sistema, quer os radiodifusores queiram, quer não. Porque a possibilidade da convergência tecnológica já está posta. Se não houver regulação, esse mercado se converterá numa carnificina tendo em vista o imenso poder das teles diante dos radiodifusores”, adverte Schröder.

Visando obter proteção diante das empresas transnacionais de telecomunicações, os radiodifusores mostram-se cada vez mais dispostos a rever a legislação, o que pode parecer estranho tendo em vista as resistências que esse setor sempre demonstrou diante de quaisquer iniciativas de regulação – traduzidas muitas vezes como tentativas de censura da mídia, como no caso recente da Agência Nacional de Audiovisual (Ancinav). Mas não se pode esquecer que a aprovação da legislação deverá ser feita no âmbito do Congresso Nacional: segundo lista divulgada pelo próprio Ministério das Comunicações (na gestão de Miro Teixeira), a atual legislatura conta com 28 senadores e 51 deputados federais que detêm concessões públicas de rádio ou de TV, embora a Constituição os proíba.

Segundo o documento “As telecomunicações e o próximo governo”, encaminhado no início de outubro por associações de operadoras de telefonia e fabricantes de equipamentos aos candidatos à presidência, o setor de telecomunicações também defende mudanças na legislação. Uma das propostas diz respeito à interatividade da TV Digital e à necessidade de que o governo estimule a inclusão digital “com a utilização complementar das redes de comunicação existentes”.

Interatividade

Outra possibilidade oferecida pela digitalização é a inclusão da população que ainda não possui acesso à internet. Mas o modo como os serviços de interatividade serão oferecidos ainda não foi definido. Não há garantias de que o canal de retorno – necessário para a interatividade - será gratuito e nem mesmo se as caixas conversoras – que farão a transformação do sinal analógico em digital para aqueles que não puderem adquirir uma TV de alta definição cujo preço gira em torno de R$ 10 mil permitirão o acesso da população a correio eletrônico, serviços bancários, educação à distância, telemedicina ou governo eletrônico.

Tecnicamente, no que diz respeito ao canal de retorno, não se sabe se ele será via linha telefônica, satélite ou se será via serviços de banda larga, como as rede sem-fio (wireless). A briga recente das empresas de telefonia pela participação no leilão de freqüências Wi-Max deixa claro que as teles não estão fora do páreo da implantação da TV Digital no Brasil.