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Entrevistas
Flávio Comim
A construção de indicadores amplos, como o Índice de Desenvolvimento Humano ou as Metas do Milênio possibilita comparabilidade internacional, oferecem uma grande fonte de motivação doméstica e servem de guia para ajuda internacional, em particular para países mais pobres
Por Luiz Paulo Juttel
10/03/2008

A partir de 1990, o Programa das Nações Unidas para O Desenvolvimento (PNUD) passou a publicar anualmente o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Esta ferramenta tem como característica principal gerar uma tabela de comparação do nível de desenvolvimento humano entre 177 países (o Brasil ocupa a 70 a posição em 2007) levando em consideração três aspectos: a economia que se apresenta através do cálculo do PIB per capita, depois de corrigido pelo poder de compra da moeda de cada país; a longevidade e a educação. “ Não somente o IDH, mas toda a família de indicadores que é construída ao seu redor fornece subsídios para que se pense no que anda certo ou errado em determinada nação. Ele é um convite a reflexão sobre o desenvolvimento de um país”, diz o economista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e divulgador do último IDH no Brasil, Flávio Comim. Nesta entrevista, Comim fala sobre a formulação dos indicadores que compõem o IDH, suas complexidades metodológicas, além de comentar o último Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) do PNUD que aborda a influência das mudanças climáticas sobre o desenvolvimento humano das nações.

ComCiência - O conceito de indicador tem sido estudado amplamente nos últimos anos e, segundo especialistas, há diversas definições que geram metodologias e resultados diferentes. Qual noção de indicador é trabalhada na construção do IDH do PNUD?
Comim -
Grande parte da discussão sobre o uso de indicadores evita fundamentar suas escolhas em função dos paradigmas conceituais que sustentam a análise normativa "escondida" na sua formulação. No caso do IDH, a metodologia sustenta-se na abordagem das capacitações desenvolvida pelo economista indiano e professor da Universidade de Harvard, Amartya Sen, e na distinção entre meios e fins do desenvolvimento. Pelo fato do desenvolvimento humano valorizar os fins da vida humana, Sen inspirou uma metodologia que neutraliza o impacto da renda no desenvolvimento através do seu tratamento conceitual e matemático (no caso, pelo uso da paridade de poder de compra da renda per capita e pelo cálculo baseado no logarítimo).

Mais do que isso, o IDH atende o propósito da simplicidade, com o objetivo de servir como um instrumento de divulgação e comunicação na sociedade sobre como anda o desenvolvimento humano. Ele oferece uma visão multidimensional do desenvolvimento humano e, com isso, quebra o paradigma da renda como único meio de se avaliar a qualidade de vida.

ComCiência - Que tipo de benefício se tem ao construir indicadores amplos, que comparam grandes categorias em diversos países? Quais são as críticas mais freqüentes a esse tipo de indicador e o que o PNUD tem feito para sanar os problemas apontados?
Comim -
A grande vantagem de indicadores amplos, como o IDH ou as "Metas do Milênio" é que eles possibilitam comparabilidade internacional. Como tal oferecem uma grande fonte de motivação doméstica e serve de guia para ajuda internacional, em particular para países mais pobres.

No caso do IDH ele é frequentemente criticado por ter apenas três dimensões e prefixar os pesos das dimensões. A primeira crítica revela uma incompreensão do problema que indicadores têm foco e extensão e que se aumentamos a extensão deles, diminuímos o seu foco. Ao incluirmos, por exemplo, mais 7 variáveis no IDH, a única coisa que faríamos de imediato seria reduzir o peso da expectativa de vida, de 1/3 para 1/10.

Em relação à segunda crítica, podemos dizer, hoje, que os indicadores do milênio conseguiram superar parcialmente o problema da prefixação de pesos ao propor um sistema de metas universais combinadas com objetivos contexto-específico. A experiência dos indicadores do milênio dá nova luz à importância de combinarmos comparabilidade internacional com elevância local na formulação de indicadores.

ComCiência - Dados numéricos são considerados fatores quantitativos. Há como se medir qualidade através dos números? O que o senhor pensa a respeito da oposição entre quantidade e qualidade?
Comim -
Eu penso que essa é uma discussão ultrapassada, pois toda a perspectiva de desenvolvimento humano trouxe à tona a necessidade de mensurarmos o qualitativo. O quantitativo é importante como instrumento de política social e como objeto de comparabilidade, o que é fundamental na gestão de projetos e investimentos (públicos ou privados) sociais. Mas a "alma" da mensuração tem que ser qualitativa, no sentido de mostrar novos fatores e elementos. O problema até agora tem sido pensar a formulação de indicadores como dissociada dos raciocínios normativos fundamentais à seleção e ponderação de variáveis. Esse processo, que é participativo, na sua natureza, tem que ser apreciado pelas suas contribuições qualitativas.

ComCiência - De que modo se pode garantir que os indicadores utilizados pelo PNUD conseguem realmente refletir a capacidade de desenvolvimento de um país? E como se pode atestar a credibilidade do IDH no que diz respeito a alterações de longo prazo?
Comim -
O desenvolvimento de um país é um processo complexo que envolve a transformação qualitativa de suas instituições, leis, políticas sociais e grau coesão social. Todos esses fatores são influenciados pelas dimensões do IDH, mas de modo algum podem ser reduzidos a elas. Isso quer dizer que o IDH fornece apenas uma primeira leitura do processo de desenvolvimento de um país. Como tal, deve ser visto como uma fonte de perguntas iniciais, não como uma fonte de respostas definitivas sobre o desenvolvimento de um país. Não somente o IDH, mas toda a família de indicadores que é construída ao seu redor fornecem subsídios para que se pense no que anda certo ou errado em determinada nação. Ele é um convite a reflexão sobre o desenvolvimento de um país. A credibilidade desse índice deve ser medida em comparação à do PIB per capita, seu principal concorrente. Dentro da perspectiva do desenvolvimento humano, o PIB é um "indicador imperfeito de bem-estar" devido ao fato dos indivíduos serem conversores diferenciados de renda em bem-estar, o que é garantido por diferentes características posicionais dos mesmos e grande diversidade humana (idade, gênero, raça, etc).

ComCiência – Depois da publicação dos primeiros RDH nos anos 90, cálculos foram refeitos para estabelecer um IDH anual de 1975 até hoje. O último relatório publicado mostrou uma melhora harmônica no índice de desenvolvimento humano brasileiro daquela época para os dias atuais. Até que ponto essa melhora reflete ações da sociedade e até que ponto ela indica um aperfeiçoamento da metodologia que forma os indicadores?
Comim -
Os dois fatores são importantes. Não podemos dizer que o IDH brasileiro melhorou somente por questões metodológicas, nem que o aperfeiçoamento dessas medidas não tornou o tal índice mais confiável enquanto medida de desenvolvimento humano. Na minha opinião, não resta dúvida que ações sociais e governamentais, nesses últimos 20 anos, fizeram grande diferença no desenvolvimento do Brasil. Uma questão interessante é saber se elas foram introduzidas na velocidade necessária. Outra é saber se elas não poderiam ter sido melhor executadas. Ser crítico perante o ainda alto nível de desigualdade de renda, mortalidade infantil e materna, baixo nível de saneamento e o inaceitável mapa da pobreza no país é, na minha opinião, um dever cívico. O RDH levanta todos esses dados. O que fazemos com eles é um problema nosso.

ComCiência - Esse mesmo RDH alerta para a necessidade de se concentrar nos impactos das mudanças climáticas que podem trazer reversões sem precedentes na redução da pobreza e nos avanços alcançados em setores como saúde e educação. Como se dá, metodologicamente, a incorporação dessa variável das mudanças climáticas e de seus possíveis efeitos como falta de água e desequilíbrios ecológicos na composição de indicadores de pobreza, educação e saúde?
Comim -
Eu recentemente coordenei um trabalho para o Pnuma da África sobre "Indicadores de Pobreza & Meio Ambiente" no qual procuramos capturar os links entre pobreza e meio ambiente dentro de uma perspectiva de desenvolvimento humano. O principal desafio consiste em encontrar esses elos e depois escolher uma representação para eles dentro das categorias do IDH. A mudança climática será o grande desafio de nossa geração devido aos seus impactos cumulativos, irreversíveis, imprevisíveis e sistemáticos. Ela afetará a provisão de água, comida, energia e sujeitará todos os indivíduos no planeta a uma escala de desastres naturais que pode comprometer os recentes avanços ligados ao desenvolvimento humano. A integração de uma perspectiva de sustentabilidade na formulação do IDH é um dos desafios a serem enfrentados nesses próximos anos.

ComCiência - Quando o indicador em questão é o nível de emissão de carbono de um país o PNUD recomenda que os países desenvolvidos reduzam a emissão de gases que provocam o efeito estufa em pelo menos 80%, em relação aos níveis de 1990, até 2050. Para países em desenvolvimento o corte fica em 20%. Na sua opinião, como o ONU vê a relutância, tanto de líderes de países em desenvolvimento, como o Brasil, quanto do maior poluidor do mundo, os Estados Unidos, para estabelecer suas metas de redução nas emissões de carbono?
Comim -
Essa é uma pergunta que a ONU deveria responder, mas de qualquer modo a minha opinião é que a ONU vê essa relutância como temporária, seja porque os efeitos da mudança climática estão ficando mais claros, seja porque começa a criar-se uma nova cultura mundial pró-sustentabilidade, dentro da qual instituições internacionais, governos, sociedades civis, empresas, etc. começam a contribuir para a geração de um novo clima de oportunidades. Para chegar à redução de 80% (que possivelmente não será atingida) os países desenvolvidos estão mudando suas matrizes energéticas e estimulando novos hábitos de consumo, transporte, moradia, entre outros. O Brasil tem a oferecer um grande potencial de liderança ao mundo, devido a sua matriz energética que é muito limpa e ao seu programa de biodiesel. Ao mesmo tempo há muito o que ser feito no país, principalmente no sentido de se construir um futuro mais sustentável para a Amazônia.

ComCiência - O PNUD sugere a remoção das tarifas impostas pelos países desenvolvidos ao etanol brasileiro produzido a partir da cana-de-açúcar, por ser mais eficiente que outros biocombustíveis e não contribuir para o desmatamento da Amazônia. Mas segundo o presidente executivo do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e Lubrificantes, quase 90% do biodiesel brasileiro, outro biocombustível que reduz as emissões de carbono, é feito hoje a partir de óleo de soja, cujo plantio em certas regiões tem se expandido graças à derrubada de mata amazônica. O que o Brasil pode fazer para reduzir os índices de desmatamento, principal fonte das emissões de carbono no país?
Comim -
Sim. O etanol brasileiro é, ao mesmo tempo, mais eficiente do que alternativas oferecidas por outros países (como o milho) e excessivamente taxado internacionalmente. No entanto, deve-se reforçar o mapeamento da origem do biodiesel brasileiro para que não se pague um alto custo ambiental por essa iniciativa. O Brasil deve também colocar um preço para o seu biocombustível que reflita não somente o custo ecológico hoje, mas o custo de oportunidade do futuro, em termos da água e solo que se usa hoje para essa produção. De outro modo, podemos incorrer em transferência de renda ao exterior, exportando barato o que pode ter um alto custo ambiental. Eu tenho a impressão que esses estudos são de alta prioridade para o governo brasileiro hoje, mas concordo que cabe à sociedade civil organizada fiscalizar e estimular o governo a agir o mais próximo dos nossos interesses sustentáveis.