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Rearticulação do território metropolitano: a orla ferroviária paulistana

Carlos Leite

A orla ferroviária é território disponível precioso na metrópole paulistana - verdadeira mutação urbana - e opera como objeto para potencial intervenção linear na metrópole. Trata-se, provavelmente, da última possibilidade de rearticular o território fragmentado e gerar um desejável eixo metropolitano. O ensaio projetual desenvolvido para este território recai sobre a área da antiga linha férrea Santos-Jundiaí no seu trecho central, do Moinho Central (Barra Funda) à Estação Mooca.

A orla ferroviária corresponde ao território onde a ferrovia se instalou e mais às áreas contíguas à linha férrea. Está presente no desenho da cidade de forma inexorável. O desenvolvimento da ferrovia, desde a virada do século XIX e o seu auge, enquanto instrumento viabilizador da economia industrial paulistana no meio do século XX, determinou definitivamente a estruturação metropolitana.

As mudanças recentes geradas pela passagem da cidade industrial para a metrópole pós-industrial, de serviços, produziram um retrato cruel naquele território. Com o esvaziamento da ocupação industrial, a ferrovia perdeu muito de sua função. A falta de incentivo claro à malha ferroviária paulistana, enquanto sistema de transporte público eficiente e integrado ao sistema do metrô, corroborou decisivamente para esse esvaziamento de importância. A sua decadência nas últimas décadas representa também a desqualificação espacial de suas bordas urbanas.

Tem-se então um território fragmentado e descaracterizado. As estruturas que definiram a sua ocupação e consolidação hoje representam a sua obsolescência: os terrenos vagos (brownfields ou wastelands)(Ver Solà-Morales, Ignaci. Terrain Vague In: Anyplace, 118-123: Cambridge: MIT/Any. 1995, p.123 e Leite, Carlos. Projetos urbanos: operando nas bordas: São Paulo: vitruvius.com.br, 2004.). É este o território do ensaio projetual. Aplicar novas possibilidades de reorganização territorial. Definir novas estratégias de ocupação.






A orla ferroviária de São Paulo e
seus espaços residuais, os terrenos vagos.

Qual o potencial dos vazios urbanos presentes na orla ferroviária de São Paulo? Como trabalhar novas funções e programas contemporâneos a partir das infra-estruturas latentes da urbe? É possível construir um território público metropolitano - a desejável "cidade para todos" - a partir desse território fragmentado?

Desarticulação do território: fluidez, rede de fluxos e terrenos vagos
A metrópole contemporânea apresenta imensas áreas desarticuladas e dispersas pelo território. A espacialização da chamada rede de fluxos elimina a escala precisa. Pode ser local, global ou urbano-regional. A rede de fluxos espalha-se por um território dinâmico, de desenho líquido, mutante. O território metropolitano passa a ser fluído. (Cf. Peixoto, N. B. Arte/Cidade: Grupo de Intervenções Urbanas: Brasmitte: São Paulo, Berlim. [Acessado em 30.08.2000].)
Como contraponto inexorável aparecem os espaços residuais. Emergem do processo de mudança dos modos de produção capitalista e de seus reflexos no território metropolitano. São conseqüências diretas das mutações urbanas. O terreno vago é, portanto, resultante do processo de desindustrialização metropolitana do final do século XX. Terrenos baldios e galpões desocupados junto aos antigos eixos industriais. Antigas áreas produtivas, hoje inoperantes. Massas arquitetônicas do passado industrial, atualmente vazias, em processo de deterioração física (os moinhos presentes na orla ferroviária).
Mas eles também surgem das mal planejadas intervenções rodoviaristas, como as áreas residuais presentes no tecido urbano tradicional cortado por gigantescos sistemas de vias expressas: cicatrizes urbanas; terras de ninguém.

Os terrenos vagos são também facilmente explicáveis pela renegação do mercado imobiliário e do poder público. Foram ignorados pelos urbanistas e tiveram quase nenhuma atenção por parte da municipalidade na última década. Representam os espaços que sobraram entre as ilhas de desenvolvimento imobiliário da cidade. Os atuais enclaves urbanos - como os condomínios fechados em meio ao território desarticulado -, valorizados comercial e culturalmente, são o contraponto natural dos terrenos vagos.

O território metropolitano conforma-se por uma rede desses espaços residuais e uma rede de fluxos que se complementam. Apesar do avanço vertiginoso do processo de globalização e de suas conexões nodais, no âmbito do espaço territorial, a metrópole ainda detém os chamados "espaços banais", conforme descrito por Milton Santos.


A estratégia urbanística baseia-se na sobreposição de 4 matrizes
urbanas: infraestruturas, fluxos, eixo verde e bordas urbanas.


Presencia-se um processo de crise, de mutações constantes, onde, por hora, verifica-se o surgimento da metrópole fragmentada, constituída por fraturas urbanas.

Além dessas características, acrescente-se ainda o processo de urbanificação ocorrido na metrópole: um urbanismo de caráter meramente técnico, implementado sem o desenvolvimento concomitante de sua outra dimensão, a desejável urbanidade.

A potencialidade do vazio urbano: São Paulo precisa do silêncio arquitetônico
Mas, concomitantemente, está presente no vazio urbano a expectativa do novo.

As áreas residuais são também a presença viva de um potencial imenso. Da reconstrução, renovação, mudança. A construção do novo território. Da nova vida coletiva. Da nova metrópole que está à espreita. A crise traz a angústia da ausência clara do uso atual, mas também a esperança de algo novo, indeterminado e promissor:
O urbanismo contemporâneo deve absorver todos esses parâmetros - inscrições presentes no território - e, a partir da realidade existente, desenvolver novas possibilidades de intervenção. Ou seja, a cidade existente, com os seus diversos fragmentos, operando como elemento potencial para a construção de um território articulador.

Portanto, os vazios urbanos devem surgir como a oportunidade rara da construção de novos territórios. Novas proposições que lhes dotem de significado, no contraponto da cidade massivamente construída, cinza. A chance de um território central público em meio à massa construída. Sua necessária complementaridade. De significado (plural) e função (social).

A orla ferroviária como nova territorialidade metropolitana
As hipóteses que colocamos para a estratégia de intervenção na orla ferroviária paulistana são:

- O desafio da arquitetura contemporânea é trabalhar sobre a cidade existente, sem negá-la, a partir de seus condicionantes, i.e., a reparação da cidade existente.
- A cidade contemporânea terá de ser pensada a partir das suas estruturas existentes. As infra-estruturas urbanas devem definir a construção de novos territórios metropolitanos.
- As áreas residuais devem suportar os novos projetos urbanos e articular as novas territorialidades metropolitanas.
- Os projetos urbanos contemporâneos devem basear-se em um urbanismo dinâmico: flexível, estratégico.
- Operar a refuncionalização das áreas urbanas deterioradas resultantes do processo de transformação produtiva, provendo o desenvolvimento urbano através de novas funções produtivas. Gerar ambientes de inovação e eficiência coletiva - tais como os clusters e tecnopólos - na regeneração urbana destas áreas e propiciar novas possibilidades de desenvolvimento local.

Lança-se, então, uma estratégia projetual de intervenção para um trecho da orla ferroviária paulistana: um eixo linear de 12,6 km de extensão - 115 ha - que vai do Moinho Central, na Barra Funda, à Estação Mooca.

Propõe-se um urbanismo dinâmico baseado em matrizes urbanas superpostas.


A intervenção em trecho central de 12 km da orla ferroviária.


A estratégia organiza-se em quatro matrizes urbanas complementares, que se sobrepõem e abrem a possibilidade de desenhos múltiplos dentro de suas várias combinações. Uma nova dinâmica urbana, mais flexível às demandas e aos programas múltiplos da metrópole contemporânea. A idéia das superposições atende à flexibilidade temporal, pois não impõe um desenho único. É variável no tempo e no espaço. É dinâmica e comporta variações múltiplas na sua composição para a construção de um território complexo.

Uma estratégia que poderia comportar, no seu desenvolvimento, diversas formas participativas por parte da comunidade envolvida. Sendo flexível, poderia agregar - efetivamente - o processo participativo de modo coerente.

Afinal, trata-se do estabelecimento de uma estratégia de urbanismo que prepare as condições para a construção do território. Que o prepare para receber, coerentemente, os diversos programas urbanos e arquitetônicos, sem, entretanto, definir formas arquitetônicas finais.
Estabelece-se uma dinâmica composta de quatro matrizes urbanas que se sobrepõem ao longo do tempo:


Propota para a área do Brás: rearticulação do território,
conexão dos sistemas de transporte e resgate do chão da cidade.
Possibilidade de implantação de cluster tecnológico
em área de transformação produtiva [em laranja].


[m1] Infra-estruturas
Configura-se pela reutilização das infra-estruturas e das estruturas urbanas históricas presentes no território como condições de campo existentes, insumos projetuais: modernização do sistema ferroviário e a sua transformação em metrô de superfície; modernização das estações existentes e criação de novas estações; reativação do patrimônio existente (edifícios históricos, galpões e moinhos permanecem como testemunhos da memória desse território e devem receber usos e programas atuais); recapacitação da área industrial em processo de reconversão por uma nova indústria de base tecnológica e unidades produtivas do tipo dos "clusters industriais"; recuperação do rio Tamanduateí e a sua utilização como meio de transporte de curta distância para cargas e lixo.

[m2] Fluxos
Combinação de projetos para o sistema de transportes: viário, de pedestres e coletivo, que resultem na otimização dos fluxos no eixo metropolitano; incentivo à intermodalidade entre os modos de transportes (rodo-metro-ferroviário); maior acessibilidade para o território (transposição transversal da ferrovia); continuidade do tecido urbano, permitindo a existência de uma rede de fluxos contínua do novo território com as suas bordas existentes e pré-configuradas; criação de uma "linha inteligente" enterrada (fibras óticas e canais de fluxos informacionais) junto à linha férrea, que possibilite o desenvolvimento dos novos programas, principalmente da nova indústria metropolitana.

[m3] O eixo verde
Ao longo de todo o território, junto à ferrovia, surge um eixo verde, um parque linear metropolitano, cuja imagem final constitua um gradiente verde que varie de densidade do corpo florestal central, para a sua diluição nos territórios urbanizados. Articulado ao parque linear, um conjunto de parques urbanos são propostos em pontos que se apropriam dos vazios mais significativos e articulam-se com os equipamentos já existentes na área lindeira. Sempre que possível, deverá ocorrer a maciça presença da água. Linhas, faixas e grandes espelhos d'água para a captação das águas pluviais, contenção do fluxo de águas fluviais e alternativa aos atuais "piscinões" subterrâneos.

[m4] Bordas urbanas
Procura possibilitar a consolidação do grande eixo público metropolitano - a orla ferroviária como integradora de atividades prioritariamente públicas - aos territórios lindeiros, às bordas urbanas. Implementação de habitação coletiva de interesse social, a "cidade para todos", nas franjas urbanas e junto ao parque linear. As tipologias habitacionais devem ser variadas e flexíveis. De modo geral, propõe-se o desenvolvimento de lâminas habitacionais de densidade média e grande altura, justificando a sua implantação junto ao parque linear: 1.298.500 m2 de área construída; 23.084 unidades; 67.810 moradores; densidade demográfica: 589 hab./ha.



O terreno vago típico na Mooca [área da Antarctica/gasômetro]:
a estratégia geral é manter o vazio como parque e ligações infraestruturais
[a marquise de 400 m conecta as estações de trem e VLP], reciclar alguns
edifícios existentes e adensar as bordas pela iniciativa privada.

 

Conclusão
O Brasil, como toda a América, é território novo. Permite fazer-se e experimentar-se com vigor. Trata-se de configurar o seu território através da construção de uma arquitetura nova.

Um urbanismo que construa o novo território.

Talvez a última possibilidade de construção de um território metropolitano. Público. De urbanismo coletivo. Da cidade para todos. Do grande parque linear sobre a orla. Das habitações coletivas construindo as novas bordas urbanas, enquanto se constrói o silêncio arquitetônico no eixo central. De se propor habitar na área central, junto às infra-estruturas existentes na cidade. De se privilegiar definitivamente o transporte público em detrimento do privado, automobilístico. Portanto, da incorporação ao plano de integração dos transportes públicos, da modernização da malha ferroviária e a sua possível transformação em metrô de superfície. Do poder público voltar a tomar as rédeas do processo de desenvolvimento metropolitano, de gerenciar a cidade com o permanente diálogo entre partes divergentes, porém com a firme determinação da defesa do interesse público.

Carlos Leite é arquiteto, professor do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie; sócio de Leite+Brooke Arquitetos Associados.

Todas as imagens são de autoria de Nelson Kon.

 
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Atualizado em 10/04/2004
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