Reportagens






 

Kernel Panic
(ou: Belas telas azuis e o verdadeiro amor)

Cesar Brod

Escrevi este artigo umas sete vezes. Lembrei de como tomei contato pela primeira vez com o software livre - por razões absolutamente práticas - e como hoje participo de uma cooperativa que vive de um modelo de negócios ainda em evolução. Enrolei tantas vezes para dizer, afinal, que o software livre é cada vez mais usado pela simples razão de que é melhor do que qualquer outra opção. Que seu modelo de negócios é viável pois é baseado no que é usado há muito tempo por universidades, que formatam um conhecimento existente para passá-lo adiante e criar conhecimento inédito a partir do que já existe. Busco a concisão, coisa de gaúcho que vive a "Estética do Frio" - tão bem definida pelo escritor e músico Vitor Ramil. Daí contei, em menos de mil toques, o que devia ter se tornado um texto dez vezes maior. Daqui pra frente, então, enrolo o leitor, buscando o que há de romântico e sutil em um universo que parece árido a tantos, assim como é o amor para quem, pela primeira vez, o descobre.

Passei boa parte da minha infância em Arroio do Meio, um pedacinho de terra que Deus escolheu para, a partir daí, modelar o Éden. Abria as janelas das manhãs da minha infância para um azul que não tem similar na codificação RGB ou CMYK. Anos mais tarde caí na informática por acaso, por oportunidade, pois eu queria mesmo era trabalhar com áudio. Cheguei a programar em Assembler IBM/360, Basic e, na USP, fui daqueles que comprou horas dos repetentes para passar madrugadas, em que podia estar namorando, traduzindo em Fortran movimentos de uma peça de xadrez. Mas antes que o leitor me abandone, deixe-me só com minha sopa de letrinhas, parto logo para uma época onde os computadores já se tornavam populares, e Windows, graças ao excelente marketing da Microsoft, passou a confundir-se com o próprio computador.

O bom foi que os computadores pessoais chegaram aos lares já acostumados com o videojogo Atari, videocassete e outras modernidades. Muita gente já tinha alguma familiaridade com a tecnologia e o computador com Windows logo virou um eletrodoméstico. Uma pena que, como no caso de tantos eletrodomésticos, a porção da população que tinha acesso ao computador ainda era pequena - o que, infelizmente, não mudou muito.

O suposto "baixo-custo" dos computadores com Windows levou muitas empresas a basearem seus negócios neste sistema. Na empresa onde eu trabalhava não foi diferente. A matriz americana tinha um acordo com a Microsoft e, basicamente, tudo o que usávamos de ferramentas de produtividade baseava-se em Windows. Eu administrava o sistema, que em resumo era um servidor de arquivos e impressão para umas dez máquinas que rodavam o MS Office e algumas aplicações específicas como o correio eletrônico corporativo e um programa que nos ajudava a dimensionar os equipamentos que comercializávamos. O ano era 1992. Eventualmente o sistema "travava" e eu tinha que verificar o que estava acontecendo.

Quando um jogo travava no Atari, ou quando uma fita de vídeo cismava em enroscar, a típica saída de recomeçar tudo, desligando e ligando de novo o equipamento, era bem aceita. Em uma empresa, de certa forma, quando um computador desistia de obedecer, um desligar e religar também era bem aceito. Mas as maquininhas passaram a ter responsabilidade cada vez maior e uma proposta para um cliente que aguardava informações da matriz tinha que se completar antes do final do expediente. Foi em um momento como esse que entendi que a tela azul de um servidor Windows NT era uma baita jogada de marketing. Fosse vermelha, eu teria me desesperado e trocado de profissão. Fosse preta ou verde eu logo tentaria digitar alguma coisa que me revelasse o que, no fundo, estava acontecendo, como já fazia com outros sistemas que nem tinham responsabilidade tão grande. Mas uma tela azul servia ao propósito do exercício de calma e contemplação perante algo maior. Era como abrir as janelas da minha infância e ver que havia um plano celestial muito acima do meu controle. Por quê explorar o erro, se o azul era tão bonito. Eu reiniciava a máquina porque os usuários não paravam de reclamar, mas por mim, eu ficaria contemplando por mais alguns minutos aquele profundo azul, com um texto em branco escrito em uma linguagem incompreensível ao fundo. Ainda bem que eu também prestava suporte a outros clientes da empresa, que usavam outros sistemas, porque logo todo o pessoal da empresa estava treinado na manutenção de nosso ambiente. Nunca escrevemos um manual, mas se o tivéssemos feito, ele seria assim: "Ao ver a tela azul, contemple-a brevemente e reinicie o sistema."

Em 1993 tínhamos um sistema Unix, tolerante a falhas, instalado em uma grande empresa de telecomunicações em Minas Gerais. O nome do sistema era Integrity. Empresas de telecomunicações têm essa idéia de que seus sistemas têm que funcionar como telefones: basta tirar do gancho para ouvir o sinal de linha e discar. E como é uma coisa sonora, não existe o equivalente da "tela azul". Se existisse, seria o equivalente a querermos ligar para o médico ou a polícia e ao invés do "tuuuuu" ouvíssemos uma música da Enya. Como eu trabalhava em São Paulo, e tinha minhas filhas pequenas, eu não estava muito disposto a viajar, e pedi ao meu chefe que comprasse um Unix que eu pudesse usar em meu laptop (o antecessor do notebook). Custava tão caro que seria mais barato continuar contrabandeando pão-de-queijo nas minhas idas e vindas.

Só que, em 1993, já tínhamos uma conexão via satélite com a matriz da empresa nos Estados Unidos e eu já havia sido iniciado em uma tal de internet, onde eu podia pesquisar por arquivos e notícias usando programas como Gopher, Archie e Usenet. Procurei por um Unix para o meu computador e descobri um tal de Linux com as ferramentas GNU. Instalei, funcionou, não paguei nada e passei a viajar menos para Minas Gerais. Como eu já estava acostumado com outros sistemas com os quais trabalhei, o Linux e as ferramentas GNU tinham o seu código aberto. Além de usar os programas, eu podia lê-los e modificá-los. Era como se o computador fosse o corpo, os programas fossem sua alma e eu pudesse moldar a alma ao meu contento. De certa forma, eu era um deus!

E como tinha que analisar os problemas que ocorriam em meu cliente mineiro, com alguma freqüência eu saía modificando alguma coisa. E não raro me aparecia um Kernel Panic em uma tela preta, onde eu podia interagir com o sistema e descobrir o que estava acontecendo. Ao contrário da contemplativa tela azul, a tela preta me instigava a analisar o problema, discutir a relação, melhorar a partir daí, ao invés de esquecer tudo, reiniciar para daí a pouco voltar à mesma tela azul. Os Kernel Panic me faziam rever meus princípios, me levavam à raiz dos problemas, o que nem sempre é fácil. Quantas vezes a raiz do problema estava em uma besteira que eu mesmo havia feito. Uma avaliação errada, uma correção feita sem o devido cuidado.

Até hoje não conheci ninguém que passou a conhecer o software livre e voltou atrás. Pelo contrário: cada novo usuário converte-se em um "evangelizador", buscando trazer mais "fiéis" à causa. Conhecer de verdade é amar, é ir além do lindo azul do céu visto apenas pela janela aberta. É sair porta afora, pegar um avião e ver que o mundo é cheio de possibilidades. É como não se contentar em ver a Daniela Cicarelli pela TV, mas tentar bater um papo com a guria e ver se ela é mesmo interessante e, se for, pedir a mão dela em casamento. E no caso de um Kernel Panic, vá lá, discuta a relação, quem sabe se, afinal, não foi culpa tua. Liberdade tem disso: a gente erra e conserta. Agora imagina estar casado com a Daniela Cicarelli e a cada problema conjungal ter que devolvê-la para o pai dela e esperar que ele conserte... Vai esperando...

Cesar Brod é vice-presidente da Cooperativa de Soluções Livres Solis.

 
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Atualizado em 10/06/2004
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