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Estado e ensino religioso no Brasil

Alexandre Brasil Fonseca

No maior país católico do mundo presenciamos uma beligerante disputa por fiéis. A Igreja Católica "perde" adeptos para os pentecostais, os quais satanizam os deuses do candomblé e da umbanda. A Renovação Carismática Católica ganha mais expressão, o espiritismo continua com marcante presença e em meio a tudo isso a Nova Era torna-se cada vez mais evidente. As religiões brasileiras se encontram de forma acirrada na disputa desse "mercado de bens simbólicos".

Ultimamente fala-se muito do crescimento evangélico. Pastores e bispos não poupam nas cifras e afirmam serem responsáveis pelo grupo religioso que mais cresce e que, conseqüentemente, merece maior atenção e respeito do poder público e dos meios de comunicação. Nas eleições mais e mais candidatos, não só proporcionais, se "credenciam" ostentando títulos religiosos e propondo a "evangelização" da campanha. Protagonista neste processo é o casal Garotinho, fiéis da Igreja Presbiteriana que constantemente acionam sua filiação religiosa como moeda político-eleitoral. Recentes episódios relacionando religião, educação em escolas públicas e ciências receberam atenção da sociedade, reascendendo discussão antiga sobre a relação entre o Estado e as religiões.

Neste artigo apresentamos sucintamente conflitos existentes na história brasileira em torno das disputas sobre a presença do ensino religioso nas escolas públicas. Na conclusão discutimos a necessidade do Estado assumir uma neutralidade positiva no que se refere à abordagem de temas relacionados à religiosidade e seus embates com outras esferas da sociedade.

Ensino religioso em disputa

Foi a Constituição de 1934 que selou a aproximação entre Igreja Católica e o Estado brasileiro após a ruptura ocorrida com a Proclamação da República e a decretação da separação Igreja-Estado em 1891. O Brasil presenciava a ascensão de um estado autoritário e de uma igreja que finalmente recuperava acesso ao poder após 40 anos de uma república laica, com ares positivistas. Três concessões caracterizavam a união: 1) proibição do divórcio e o reconhecimento do casamento religioso pela lei civil; 2) permissão do ensino religioso nas escolas públicas; 3) possibilidade do Estado financiar escolas, seminários, hospitais ou qualquer outra instituição pertencente à Igreja Católica que tratassem do "interesse coletivo".

Sobre a inclusão do ensino religioso houve reação dos modernistas e participantes da Escola Nova. A reação de Cecília Meireles na Página de Educação do Diário de Notícias é dura: "Depois veio o decretozinho do ensino religioso. Um decretozinho provinciano, para agradar alguns curas, e atrair algumas ovelhas... Porque não se acredita que nenhum espírito profundamente religioso - qualquer que seja a sua orientação religiosa - possa receber com alegria esse decreto em que fermentam os mais nocivos efeitos para a nossa pátria e para a humanidade".

O tema do ensino religioso voltou à baila nas disputas em torno dos projetos para a Lei de Diretrizes e Bases da Educação que ocuparam a década de 1950. A Igreja Católica se colocou contrária aos defensores da Escola Nova. Debates ásperos ocorreram e personalidades como Anísio Teixeira e Fernando Azevedo foram taxados de comunistas e materialistas. A corrente católica venceu mais esta batalha, fazendo prevalecer suas opiniões na legislação aprovada.

Se em 1931 e na década de 1950 a discussão sobre a introdução do ensino religioso nas escolas públicas esquentou os "brios secularizados" de setores da imberbe República, fato semelhante aconteceu em 1997 por ocasião da homologação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Em seu projeto inicial, a lei previa a existência de ensino religioso, conforme preconizava a Constituição, de caráter ecumênico ("assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil" no texto da lei). O texto inicialmente sancionado em dezembro de 1996 afirmava que o ensino religioso poderia ocorrer, mas sem "ônus para os cofres públicos". Uma nova versão, sancionada em julho de 1997, suprimiu essa frase e o Estado (laico) se viu obrigado a pagar professores para ensinarem religião nas escolas públicas.

Essa batalha contou com a negação de um padre católico em realizar uma missa no campus Darcy Ribeiro da Universidade Estadual do Norte Fluminense/RJ, pois o então senador foi autor de um projeto que retirava o ensino religioso das escolas. Até mesmo o papa João Paulo II teve sua participação nesse processo ao não perder a oportunidade de se pronunciar sobre o assunto durante a visita do presidente brasileiro ao Vaticano em fevereiro de 1997:

Para a consecução de um progresso que seja verdadeiramente integral, é necessário dedicar atenção à cultura e à educação nos autênticos valores morais e do espírito. É nessa direção que a Igreja, valendo-se do seu rico patrimônio de tradição plurissecular, quer contribuir para a elevação daqueles valores fundamentais enraizados na fé e nos princípios cristãos. De resto, o ensino religioso nas escolas públicas e privadas vai nesta direção, pois está previsto nas diversas constituições que o vosso país já teve desde a década de 30. A extraordinária importância de alicerçar toda estrutura individual e social sobre princípios perenes não consiste em dar somente informações, permanecendo distante da realidade vital da sociedade. Ao contrário, a Igreja está firmemente decidida a defender em concreto os valores do lar e da reta visão da família cristã (FSP, 15/3/97).

Apesar da República brasileira ter em sua origem um fundamento secular, no decorrer dos anos a ação realizada pela Igreja Católica se mostrou eficiente para que os desejos por ela almejados fossem sendo concretizados, especialmente no que se refere ao ensino religioso. Situação que nos sugere que a relação entre a Igreja Católica e o Estado tem sido demarcada pela percepção por parte do clero de uma "função histórica" especialmente reservada ao catolicismo.

Esta já antiga tensão religião-Estado-educação ganhou novos ares nos recentes episódios sobre ensino do criacionismo nas escolas públicas do Rio de Janeiro. Situação que inaugura uma nova fase dessa relação e que nos remete a disputas comuns no contexto norte-americano em que grupos protestantes buscam impor na arena pública suas posições. No caso carioca temos uma "re-leitura" da situação americana, já que aqui não temos uma tradição religiosa e política conservadora protestante arraigada em nossa cultura, mas sim uma forte tradição católica ao lado da emergência de novos grupos religiosos em um contexto de emergente diversidade religiosa.

Religiões e Estado: por uma relação neutra

O caminho brasileiro certamente será bem diferente do experimentado nos Estados Unidos, primeiramente pelas diferenças na composição do campo religioso nacional como também em relação à postura e a origem sócio-religiosa do casal Garotinho, permitindo-se a governadora práticas vistas como pouco usuais por seus irmãos da fé mais "ortodoxos", como a participação em uma apresentação de balé com símbolos do zodíaco ou mesmo a participação como cantora em shows de música popular.

Diante da maior diversidade religiosa existente em nosso país passamos a conviver com novas situações provenientes de nossa democracia. Não devemos temer um "retorno à idade das trevas", mas compreender que a vida em uma sociedade democrática pressupõe a presença de disputas e a busca de diferentes desejos pelos mais variados setores de nossa plural realidade. Neste contexto é que o papel do Estado precisa ser desempenhado de forma clara e efetiva, atuando a partir de suas esferas de poder e ao lado da sociedade civil organizada. Dessa forma, continuaremos nossa caminhada na direção de garantir o poder da maioria e os direitos das minorias.

Para tanto é papel dos governantes a promoção de diálogo e o incentivo à participação democrática nas diferentes decisões que são tomadas. Não é problema o fato de um político assumir suas convicções ou crenças desde que estas ocorram sob a perspectiva de um Estado secular. Num contexto em que a atuação do governo ocorra, conforme sugere a literatura sociológica, no sentido de uma "neutralidade positiva", onde haja isenção por parte do Estado tanto para entidades religiosas de amplo espectro como também para as não-religiosas. O governo não deve favorecer nem prejudicar qualquer grupo em particular, seja religioso, seja secular.

O problema que efetivamente precisa ser enfrentado é a presença de ensino religioso nas escolas públicas, seja ele confessional ou ecumênico, anacronismo que permanece na Constituição. Os sociólogos Stephen Monsma e Christopher Soper, após análise da relação religião e Estado em cinco países, afirmam: "Não acreditamos que as escolas públicas devam ser lugar para a inculcação de valores religiosos. A experiência dos países que incluem a educação religiosa patrocinada pelo Estado em escolas públicas sugere que a busca de uma opinião religiosa consensual está fadada ao fracasso (...) este é um mito buscado pelos reformadores educacionais liberais do décimo nono século que acreditavam equivocadamente que uma pessoa poderia suprimir sua opinião religiosa pessoal, retendo os valores chaves compartilhados por todas as tradições religiosas (...). Isto nega os direitos das minorias religiosas e seculares".

Diante da diversidade existente em nosso país é central que esta questão seja novamente discutida no sentido de que não haja mais nas escolas públicas espaços para a pregação/ensino de crenças religiosas patrocinadas pelo poder público. Não cabe ao Estado destinar energia e dinheiro para este fim, sendo esta uma responsabilidade das instituições religiosas e da família. Felizmente vivemos a cada dia uma maior diversidade religiosa e esperamos que esta em breve se materialize nos termos de um efetivo pluralismo. Com isso o papel regulador do Estado deve ser cada vez mais efetivo, resultando em maior laicidade do governo diante da existência de organizações religiosas mais diversas e fortes que passarão a exigir, cada vez mais, seus "direitos", sendo melhor para todas as partes envolvidas - como também para a consolidação democrática do Brasil - que sejam assumidas mais e mais posturas neutras consoantes com um Estado secular, como primeiramente preconizou a Constituição de 1891.

Alexandre Brasil Fonseca é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina.


Notas

Apud LAMEGO, V.. Farpa na lira: Cecília Meireles na revolução de 30. Rio de Janeiro: Record, 1986. (voltar)

A mentalidade da Igreja Católica é notadamente "surpelativa" quando se trata de afirmar sua influência na sociedade brasileira, como ilustra a fala de D. Eduardo Koaik ao tratar da discussão acerca do ensino religioso: "O Brasil não é um país ateu. A Lei Magna promulgada "'sob a proteção de Deus" confirma o valor da religião refletindo o sentimento da quase totalidade da população brasileira. Portanto, há que se ter muito cuidado quando se proclama a laicidade do Estado e, com menos sentido ainda, o ensino laico. Em que sentido se pode afirmar a laicidade do Estado? (...) O Estado é laico apenas no sentido de não adotar religião oficial. Compete-lhe a todas respeitar e proteger. No caso de privilegiar a religião católica, é por razões de tradição cultural do país. A tradição cultural compõe a identidade de uma nação. Em toda nação merece reconhecimento e respeito o que constitui as raízes da sua história. Nação sem raízes não tem história" (FSP, 15/4/96). (voltar)

MONSMA, S. & SOPER, C.. The challenge of pluralism: Church and State in five democracies. Lanham: Rowman & Littlefield, 1997. (voltar)

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Atualizado em 10/07/2004

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