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Arte, ciência e terrorismo:

a produção de conhecimento e o sagrado

Pedro Peixoto Ferreira

Cena 1: 11 de setembro de 2001, dois aviões são seqüestrados e jogados contra os prédios do World Trade Center em Nova Iorque, matando cerca de 3 mil pessoas. O mundo inteiro (ou pelo menos aquela parte dele conectada na rede de telecomunicações globais) assistiu às cenas dos choques, do desmoronamento dos prédios e de toda a comoção gerada. Enquanto o governo norte-americano (e, na seqüência, a maior parte do "mundo civilizado") definiu o acontecido como um ataque terrorista do grupo islâmico Al-Qaeda, instaurando oficialmente sua "guerra total contra o terrorismo", o músico alemão contemporâneo Karlheinz Stockhausen afirmou polemicamente que se tratava antes da "maior obra de arte de todos os tempos".

Cena 2: 11 de maio de 2004, Steven J. Kurtz, professor de arte na Universidade Estadual de Buffalo (Nova Iorque) e membro fundador do coletivo de artistas mundialmente reconhecido Critical Art Ensemble (CAE) acorda e encontra sua esposa vitimada por um ataque cardíaco. Ele tecla 911 no telefone e, quando a polícia chega, encontra diversos instrumentos de laboratório, substâncias químicas e diferentes tipos de bactérias, sugerindo o planejamento de um atentado terrorista com armas químicas. De nada adianta Kurtz argumentar que se tratava apenas da mais recente performance do CAE. Ele é intimado a se explicar perante a justiça, seu material de trabalho é confiscado, o quarteirão onde fica sua casa é isolado e declarado "área de risco" e até mesmo o corpo de sua mulher é retido para análise.

O que faz com que um artista veja como arte aquilo que todos viram como terrorismo? O que faz com que a polícia veja como terrorismo aquilo que todos viram como arte? Não estariam Stockhausen e o CAE trabalhando justamente no limite entre arte e terrorismo, questionando o que se entende por cada uma dessas palavras ao exacerbar as implicações mútuas entre estética e política? E não estaria o governo norte-americano (e a maior parte do "mundo civilizado") trabalhando justamente na eliminação de qualquer questionamento acerca da natureza do terrorismo e da arte, como numa espécie de "juízo final" onde tudo deve ser dividido entre as "forças do mal" e as "forças da liberdade"?

Os impasses ético-estéticos provocados pelas situações relatadas ganham ainda mais complexidade quando percebemos que, se por um lado eles têm como condição de possibilidade o desenvolvimento vertiginoso da ciência e da tecnologia, na segunda metade do século XX, por outro, todos eles evocam de alguma forma a dimensão do sagrado. A neutralidade científica, consolidada no iluminismo como a secularização do conhecimento, é necessariamente colocada em questão quando a religião e o sagrado passam a se manifestar através do aparato tecnológico mobilizado pelos terroristas na organização e coordenação de seus atentados, da variedade de equipamentos empregados por artistas para produzirem suas obras e da complexa "máquina de guerra" mobilizada pelo governo norte-americano em sua "guerra total contra o terror".

A defesa de Kurtz perante a justiça vem enfatizando sempre, é claro, a legalidade e segurança de todas as ações do CAE, ressaltando que eles sempre consultaram especialistas e nunca infringiram a lei - tentando, enfim, provar que o CAE não é um grupo terrorista. Mas não seria interessante, numa linha mais stockenhauseniana, enxergar o triste acontecimento como uma espécie de performance per se? Se o objetivo do CAE é trazer à tona as implicações mútuas entre tecnociência, capitalismo e sociedade, então talvez este imbróglio seja uma oportunidade e tanto para isso. Afinal, se, como bem mostrou John Pilger, o governo norte-americano encarou o 11 de setembro como uma "oportunidade imperdível" a ser "capitalizada" na forma de legitimação da dominação de nações e controle de recursos energéticos globais, então por que não fazer do 11 de maio uma oportunidade para questionar justamente esta capitalização do terrorismo?

O fato é que a atitude do governo norte-americano neste caso exacerba aquilo que já era visível em todas as suas outras ações "anti-terroristas": aquilo que é apresentado como uma luta do "bem" contra o "mal" acaba sendo, de fato, uma luta do real contra o virtual, do provável contra o possível, do ser contra o devir. A intimação de Kurtz (além de cerca de 10 outros artistas e professores) comprova mais uma vez, que a "guerra total contra o terrorismo" apenas esconde o fato de que a totalidade é, pela sua própria ambição totalitária, fascista e em muitos casos terrorista. O que se perde, na detenção de Kurtz e no cerceamento das atividades do CAE é a possibilidade de questionar, de colocar em debate público, de trazer para o palco principal justamente os graus da diferença (os tons de cinza) que o "apocalipse anti-terrorista" tenta eliminar através de sua estética do contraste total, de sua divisão do mundo entre "bons" ou "maus" (preto-ou-branco). Mas o que se pode ganhar com tudo isso?

Quando Stockhausen propôs que as colisões de 11 de setembro fossem vistas como "a maior obra de arte de todos os tempos", ele se referia ao grau de arrebatamento absolutamente único provocado pelo acontecimento, inacessível a qualquer obra de arte conhecida. Uma obra de arte, nessa perspectiva, deveria ser capaz de transformar o mundo e as pessoas de tal maneira que elas de fato morressem, junto com o mundo conhecido, para renascerem em uma "nova terra", criada a partir do contato com a obra. Esse é o único verdadeiro "acontecimento", onde a criação é possível pois vai além da previsibilidade causal do dado (o depois não poderia ser explicado pelo antes), onde encontramos a "aura" de uma obra de arte. O arrebatamento verdadeiro nunca deixa as coisas como elas estavam, mas também nunca garante nada. Tudo está em jogo e tudo pode acontecer. O acontecimento é o lugar do novo, mas também o lugar do risco extremo.

Stockhausen foi obrigado a qualificar melhor seu argumento quando viu suas palavras provocarem a ira da opinião pública e motivarem o cancelamento de seus concertos. No entanto, a idéia central do compositor é relevante para compreendermos como o sagrado pode ser uma fonte de conhecimento e, portanto, como a confusão entre arte, ciência e terrorismo pode ser muito mais reveladora de nossa atual situação do que a sua separação paranóico-fascista.

Onde se situam os limites entre arte, ciência e terrorismo? Quando a polícia isolou o quarteirão da casa de Kurtz declarando-o "área de risco", mais uma vez se fez presente a estética de alto-contraste da "guerra total contra o terrorismo", isolando a vida cotidiana daquele foco de confusão de arte, ciência e terrorismo. É preciso escolher: "ou" se é um cientista, utilizando biotecnologia para produzir conhecimento neutro e benéfico para a humanidade; "ou" se é um artista produzindo conhecimento inofensivo sobre o espírito humano e suas emoções; "ou" se é um terrorista ameaçando os valores da liberdade e da democracia. A lógica da digitalização (ou, ou, ou...) coloca nos bastidores justamente aquelas dimensões que extrapolam a taxa de amostragem, aqueles elementos que não se excluem, mas se sobrepõe enquanto tendências e virtualidades (e, e, e...). Quando Kurtz digitou 911 em seu telefone, ele estava disparando o código da digitalização apocalíptica norte-americana, capitalização tecnocientífica exponencial do acontecimento cuja data é, simultaneamente, o telefone da polícia.

Atentado terrorista "e" obra de arte, artista "e" cientista, policial "e" terrorista, telefone da polícia "e" data do acontecimento. Diferentemente da lógica digital do "apocalipse de Bush", que busca expulsar toda sobreposição, toda confusão, tudo aquilo, enfim, que não pode ser codificado, em busca de um "controle total" da situação, iniciativas como as de Stockhausen e do CAE trabalham contra toda redução ao controle e a favor da multiplicação de conexões, da produção de possibilidades e da criação. Se a ciência pôde ser vista muitas vezes como a "religião da modernidade", isto se deu geralmente através do recrudescimento do aspecto excludente de toda e qualquer análise, i.e., da valorização desmesurada da "parte" e daquilo que pode ser "partido" em detrimento das totalidades indivisíveis. Trata-se da religião em seus aspectos negativos, apocalipse de ódio e ruptura, pois que relega o "indivisível"/"não-analisável" às trevas, como se o único conhecimento válido fosse aquele claramente analisável, quantificável, e acessível ao controle instrumental.

Ora, a arte também é freqüentemente apontada como sendo um dos últimos redutos da religião em tempos dessacralizados, como se apenas nela o contato com o sagrado ainda fosse possível. Mas neste caso, trata-se de um outro aspecto da religião, não o que divide tudo em "salvo ou condenado" mas aquele que, pelo contrário, produz um contato entre o sagrado e o profano, uma comunhão que, justamente pela transdução entre planos, permite a transformação, a revelação direta do novo.

O "apocalipse de Bush" é um apocalipse do ódio, que conta apenas metade da história (aquilo que já sabemos, a recombinação dos dados), escondendo a melhor parte nos bastidores (o movimento, a transformação, a criação). O que Stockhausen evidencia em sua frase polêmica é justamente o lado oculto do "apocalipse de Bush", a verdadeira "revelação" que o sacrifício traz para aqueles que, por intermédio dele, entram em contato com o sagrado. E o que propomos aqui é justamente motivar a interpretação de mais esse desdobramento do "apocalipse de Bush" (o processo contra o CAE) como mais uma fonte de conhecimento sobre o nosso mundo atual. Um conhecimento que não pode ser chamado de científico, pois não é analítico e não permite o controle sobre a situação (o risco é inerente ao processo), mas que também não é inofensivo ou apenas subjetivo, como normalmente se interpreta o conhecimento produzido pela arte, pois trabalha no limite entre o velho e o novo, entre o atual e o virtual, entre a morte e a vida.

Como comprovam os místicos, xamãs e mestres religiosos de todo o mundo, toda revelação cósmica envolve algum tipo de sacrifício. É pela provação, pela morte do antigo homem e pelo nascimento do novo que se dá a transformação existencial. A polêmica frase de Stockhausen só seria compreendida se considerássemos a possibilidade de se interpretar o sacrifício maciço de 11 de setembro como a criação de um axis mundi, um contato vertical entre diferentes planos cósmicos, capazes de nos revelar dimensões virtuais de nossa própria realidade, normalmente escondidas pelo cotidiano. Arte e terrorismo encontrando-se na hierofania do sacrifício e produzindo um conhecimento existencial sobre nossa condição atual, inacessível a qualquer análise científica ou a qualquer obra de arte convencional.

A produção de conhecimento do tipo religioso foi há muito deslegitimada pelo racionalismo e pela ideologia da objetividade. E não foi sem motivo, pois como bem mostrou Max Weber, quando a religião se torna uma instituição ao lado de outras, ela necessariamente substitui seu caráter carismático, baseado na experiência direta, pela tradição e pela burocratização. No entanto, o bebê foi jogado junto com a água do banho quando junto com a deslegitimação do conhecimento produzido pelas religiões institucionalizadas, jogou-se fora também aquele produzido pelas experiências religiosas que são a própria origem de toda religião. O conhecimento revelatório, produzido por experiências religiosas de comunhão, transe e êxtase pode não ser analítico ou totalmente controlável e previsível, mas é tão experimental quanto o conhecimento científico, e geralmente muito mais próximo da situação concreta de vida das pessoas do que ele.

Stockhausen chega ao cerne da questão quando diz que, quando comparados com o arrebatamento provocado pelas colisões de 11 de setembro, "nós, compositores, somos nada". Arte sem sacrifício já não basta quando se é capaz de ver o sacrifício como arte. E quando Denise Muller, vice-reitora do Corcoran College of Art and Design, justificou sua decisão por abrigar uma exposição do CAE dizendo que, mais do que trabalhos de ponta ("cutting edge"), nós queremos trabalhos perfurantes ("bleeding edge"), ela de certa forma evidencia o motivo pelo qual certos artistas não passam pela malha do "apocalipse de Bush": ao ir além do conhecido, ao usar a ciência para produzir conhecimento sobre aquilo que ela precisa excluir para se constituir (seu exterior imanente), esse tipo de arte se torna potencialmente sacrificial, pois que ameaça e coloca em risco os limites do conhecido, sem oferecer nenhuma garantia a não ser a mais crua evidência da experiência.

Em um mundo acostumado a ver arte como pano de fundo para relações sociais, ciência como progresso neutro da razão e terrorismo como uma ameaça mortífera que vem de fora, é preciso ficar atento ao conhecimento produzido pela confusão momentânea desses três termos. O élan apocalíptico do governo norte-americano de eliminar qualquer confusão entre esses termos não pode ser reduzido, como de praxe, ao maniqueísmo de seu próprio discurso. Quando a arte salta à frente e transforma as relações sociais, quando a ciência se revela implicada em um dos lados do conflito, quando o terrorismo passa a ser uma ameaça imanente ao próprio sistema que o conjura, já não estamos mais em um mundo totalmente dessacralizado e racional, tampouco em um mundo de religiões institucionalizadas, estamos então no próprio campo da hierofania, experiência revelatória que nos coloca em contato produtivo com a heterogeneidade irredutível do real.

Pedro Peixoto Ferreira é doutorando em Ciências Sociais - IFCH/Unicamp, bolsista da Fapesp, e integrante do grupo de pesquisa CTeMe.

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Atualizado em 10/07/2004

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