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A Origem das espécies:

diálogo de imagens na trilha de uma teoria

Anna Carolina K. P. Regner

Imagens muitas vezes possuem uma força conceitual catalisadora e, ao mesmo tempo, geradora de novas conceitualizações que lhes asseguram o papel de uma "visão" com os "olhos da alma", filha da razão sensibilizada pela imaginação, criadora e não apenas reprodutora, fazendo da metáfora mais do que uma figura de linguagem com funções estéticas ou ilustrativas.

Imagens desempenham um papel argumentativo central no pensamento do naturalista Charles Darwin que culmina em a Origem das espécies, têm função estruturante e corroboradora do argumento geral da Origem. Como eixos estruturantes do seu "um longo argumento", estiveram presentes no desenvolvimento de questões nodais à maturação de seu pensamento - sua visão de natureza, de "seleção natural", de "luta pela existência", dos "registros geológicos", dos "seres orgânicos", da "classificação dos seres orgânicos", do "modelo da astronomia" - acompanhando Darwin desde os registros de seu diário de viagem à bordo do Beagle (1831 a 1836), de seus Notebooks de 1834 a 1836, onde encontramos um programa para todo seu trabalho posterior, nos Ensaios de 1842 e 1844, onde expõe a sua teoria (que só viria a ser publicada em 1859) e no seu longo manuscrito de 1856-1858, até a Origem das espécies, publicada em 1859, e em suas sucessivas edições revisadas pelo próprio Darwin, sendo a última a 6ª. edição inglesa de 1872.

À guisa de exemplo da função esclarecedora dessas imagens-chave na elaboração de conceitos fundamentais, podemos identificar na trajetória intelectual de Darwin a constância articuladora de traços da concepção de Natureza que preside sua obra mestra. Desde 1842, a Natureza é concebida como um sujeito, vindo ao encontro de sua definição como um poder ativo (Darwin, 1875, p. 65), na medida em que nos mostra uma "face" alegre, embora também possua outra, que não vemos sempre, de milhares de cunhas pressionando ou de luta recorrente, na "economia da Natureza". Junto à imagem da "face" está a de uma "economia", evocando a idéia de um "sujeito" (algo que possui uma face) e, como tal, de um "agente", bem como a de um "sistema econômico", que, enquanto "sujeito", dispõe de autonomia. Desse modo, leva-nos a pensar em algo como um "fim" do sistema, aquilo pelo qual o sistema mantém sua complexa unidade. Uma tal imagem já se encontra no Notebook D de 1838 (entrada 135), onde a "causa final" da intromissão de todas aquelas cunhas deve ser o "selecionar a estrutura apropriada e adaptá-la à mudança" (Darwin, 1987, p.375-376) e passa pelo longo Manuscrito de 1856-1858, onde a imagem das "milhares de cunhas" explicita-se representando as diferentes espécies (Darwin, 1987, p.631). Na 6ª edição inglesa da Origem permanece a referência à face alegre e sombria da Natureza, à sua economia, retratada agora não mais em termos de cunhas aguçadas que avançam, buscando o seu espaço, mas como "luta pela existência", cuja visão em sentido amplo e metafórico (presente desde a 1ª edição da Origem) permite vê-la atuando em situações bem mais detalhadas. Assim, a imagem de Natureza fundante do pensamento de Darwin, cresce em sua explicitação e força explicativa ao longo de seu pensamento. E, nesse processo de esclarecimento, a própria visão de conceitos inter-relacionados, como o de uma causalidade final sofre transformações.

Como exemplo do aspecto de corroboração/sustentação que imagens centrais à teoria fornecem para sua teia argumentativa, é significativa a resposta de Darwin à dificuldade referente à ausência dos desejados registros geológicos que atestassem, no número e grau requerido, as formas transicionais que, segundo sua teoria, deveriam ter existido. Em sua resposta, Darwin conclui suas considerações, ao final do capítulo X, valendo-se explicitamente de uma metáfora, a "metáfora de Lyell", que vê o registro geológico como uma história do mundo imperfeitamente conservada em um livro com vários volumes, capítulos, parágrafos, linhas perdidas (Darwin, 1875, p. 289). Tanto pela força catalisadora dessa "visão", quanto pela sua posição no argumento, fechando com a prestigiosa referência a Lyell toda uma longa discussão, essa situação exemplifica o papel corroborador de certas imagens. A metáfora referida à visão de Lyell, trazida na Origem, a respeito da imperfeição dos registros geológicos, como se fossem esparsos fragmentos de um livro a contar uma história, já aparece, de forma reduzida, nos Ensaios de 1842 (de Beer, 1971, p.63) e de 1844 (de Beer, 1971, p.161).

A conclusão do pensamento exposto tanto nos Ensaios como na Origem, permite ver o fecho argumentativo proporcionado por uma imagem presente em Darwin desde os Notebooks. Na Origem, com uma expressão um pouco mais exuberante do que nos Ensaios:

"Há uma grandeza nessa visão da vida, com seus diversos poderes tendo sido originalmente insuflados pelo criador em poucas formas ou numa; e que, enquanto esse planeta tem seguido circulando de acordo com as leis fixas da gravidade, de um início tão simples uma infinidade das mais belas e maravilhosas formas tenha evolvido e esteja evolvendo." (Darwin, 1875, p.429)

Nos Notebooks:

"Os astrônomos poderiam ter inicialmente dito que Deus ordenou a cada planeta mover-se em seu particular destino. - Do mesmo modo, Deus ordena a cada animal criado com certa forma, num certo lugar, mas quão mais simples e sublime, poder deixar a atração agir de acordo com certas leis, tais como conseqüentes inevitáveis, deixar os animais serem criados, então, pelas leis fixas da geração, tais como serão seus sucessores" (Notebook B de 1837, entrada 101 - Darwin, 1987, p.195).

O exame do papel da metáfora na argumentação darwiniana permite-nos igualmente aí rastrear indicações para uma teoria da metáfora que foge às análises usuais. Especialmente elucidativa para tanto, é a passagem em que Darwin comenta o modo de falar da maioria dos naturalistas

"Os naturalistas freqüentemente falam do crânio como se fosse formado de vértebras metamorfoseadas; das mandíbulas dos caranguejos como de pernas metamorfoseadas; dos estames e pistilos nas flores como de folhas metamorfoseadas; mas, na maioria dos casos, como o Professor Huxley observou, seria mais correto falar, do crânio e das vértebras, das mandíbulas e das pernas, etc., não como tendo sido metarmofoseadas umas das outras, na sua forma atual, mas como metamorfoseadas de algum elemento comum e mais simples. A maioria dos naturalistas, todavia, usa uma tal linguagem apenas em sentido metafórico; estão longe de querer dizer que, durante um longo curso de descendência, órgãos primordiais de qualquer tipo - vértebras, num caso, e pernas, no outro - tenham atualmente sido convertidos em crânios ou mandíbulas. Todavia, tão forte é a aparência de que assim tenha ocorrido, que os naturalistas dificilmente podem evitar empregar uma linguagem tendo essa plena significação. De acordo com as visões aqui mantidas, tal linguagem pode ser usada literalmente; e é em parte explicado o fato maravilhoso das mandíbulas de um caranguejo, por exemplo, reterem numerosos caracteres, que provavelmente teriam retido por hereditariedade, se tivessem sido realmente metamorfoseados de verdadeiras embora extremamente simples pernas."(Darwin, 1875, p. 386)

Nessa passagem, encontramos uma distinção em termos de "metafórico/literal (real)", em relação à qual: (1) inicialmente, há um reconhecimento de que os naturalistas usam o modo de falar metafórico como parte de seu trabalho rotineiro e fundamental, pois a utilizam na própria categorização e identificação de seu objeto de investigação; (2) há o reconhecimento de uma distinção entre uso "metafórico" e "literal" da linguagem, esse último expressando uma condição "real", ou seja, supostamente fundada no objeto enquanto tal e não no modo de falar sobre ele (no caso em apreço, tal condição objetiva estaria dada pela comunidade de descendência com modificação); (3) todavia, também é reconhecido, nessa mesma passagem, que o uso da linguagem será "metafórico" ou "literal" em virtude da visão teórica que nela se faça presente e a conduza (as ressalvas de Huxley são aí sugestivas). Não há, pois, um critério absoluto, independente do modo de ver as coisas em questão, para o "metafórico" e o "literal" ("real"). Talvez o que esteja em jogo, nessa distinção seja o confronto entre diferentes visões teóricas, redes de significações que, por sua vez, sofrem modificações, elucidações e alterações no curso da tarefa explicativa. É possível que a própria distinção seja um modo de falar acerca de diferentes momentos de elucidação e constituição teórico-explicativa no interior de uma mesma visão. A metáfora cumpre seu papel explicativo enquanto imagem que concentra toda uma riqueza de representação conceitual e sensível, ensejando desdobramentos que, por sua vez, esclarecem ou oferecem sustentação à teoria. Ao longo do percurso, o "metafórico" pode vir a se converter no "real", não por uma simples troca de papéis, mas fruto de um processo elucidativo.

À luz desse processo, podemos entender as ressalvas que Darwin faz, ao início de seu capítulo IV, ao modo metafórico de falar, apesar do papel crucial das metáforas em seu "um longo argumento". Darwin está defendendo-se de acusações feitas à sua expressão "seleção natural". Diz Darwin: "Todos sabem qual o significado e o que é implicado por tais expressões metafóricas; e elas são quase necessárias por brevidade"(Darwin, 1875, p.63). Antes que mero recurso de estilo, essa brevidade é a da necessária condensação da riqueza argumentativa da metáfora, capaz de, em seus desdobramentos, desvelar o "real" à base da expressão metafórica. Esse "estar à base" confere ao "significado que todos sabem" a condição de pano-de-fundo que, veladamente talvez, orienta a classificação e descobertas desse saber, permitindo uma (re)avaliação do próprio pano-de-fundo - da "visão" presente no uso da linguagem.

Anna Carolina K. P. Regner (aregner "arroba" portoweb.com.br) é professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), do Rio Grande do Sul.


Bibliografia

DARWIN, Charles. Charles Darwin and Alfred Russel Wallace: Evolution by natural selection [by] Charles Darwin and Alfred Russel Wallace. With a foreword by Gavin de Beer. London: Johson Reprint, 1971.

----.Charles Darwin's notebooks, 1836-1844. Ed. Paul H. Barret et al. Ithaca: Cornell University Press, 1987.

----. Natural selection - Being the second part of his big species book written from 1856-1858. Ed. R. C. Stauffer. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

----. On the Origin of species by means of natural selection or the preservation of favored races in the struggle for life. New York: Appleton, 1875.

----. The autobiography of Charles Darwin and selected letters. Ed. Francis Darwin. New York: Dover Publications Inc., 1958.

----. The Beagle diary 1831-1836. Ed. Nora Barlow. Cambridge: Cambridge University Press, 1934.

----. The voyage of the Beagle. Ed. Leonard Engel. New York: Doubleday / The American Museum of Natural History, 1962.

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Atualizado em 10/07/2004

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