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http://www.comciencia.br/reportagens/2004/08/09.shtml

Data de publicação: 10/08/2004

Política de ciência, tecnologia e inovação em saúde

Reinaldo Guimarães

Desde janeiro de 2003 o Brasil possui um novo governo, eleito numa forte perspectiva de mudança nos rumos políticos do país. No campo da saúde, o sentido da mudança é o aprofundamento do processo da reforma sanitária brasileira, com o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, núcleo daquela reforma.

Existe um consenso bastante amplo de que a pesquisa em saúde tem sido um componente negligenciado nas políticas de saúde e de que é tarefa do momento presente uma mudança importante nos padrões da política de pesquisa em saúde no país.

Uma visão geral da pesquisa em saúde no Brasil

Atualmente a pesquisa em saúde no Brasil é realizada por cerca de 4.900 grupos de pesquisa, com 18.000 pesquisadores (11.000 detentores de titulação doutoral) e circunscreve entre 25% e 30% do esforço global de pesquisa no Brasil[1]. Trata-se do maior componente científico-tecnológico do país. Cerca de 50% do esforço de pesquisa em saúde provêm de grupos vinculados às ciências da saúde, cerca de 25% provêm de grupos vinculados às ciências biológicas e os 25% restantes de grupos das demais grandes áreas do conhecimento. Os 25% das ciências biológicas referem-se quase exclusivamente a grupos pertencentes às áreas de bioquímica, biofísica, fisiologia, farmacologia, imunologia, neurociências, investigação clínica, genética, microbiologia e parasitologia. Dentre as demais grandes áreas do conhecimento, as ciências agrárias, as ciências humanas e as ciências sociais aplicadas possuem uma presença maior. As engenharias e as ciências exatas e da Terra estão presentes em grau bastante pequeno. São precárias as estimativas sobre gastos com pesquisa em saúde no Brasil. Levantamento preliminar do fluxo de recursos públicos para a pesquisa em saúde em 2001 atingiu um volume de R$ 500 milhões.

As estimativas dos recursos financeiros privados destinados a financiar pesquisa em saúde são ainda mais precárias. Pesquisa recente realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística sobre o panorama nacional da inovação tecnológica[2] revelou, para todos os segmentos industriais, que a taxa de inovação no Brasil é similar à da Espanha, valendo cerca de 35%. No entanto, cerca de 60% das inovações relatadas foram compras de novas máquinas para melhorar produtos já existentes no mercado nacional ou na própria carteira de produtos da firma. Quanto às atividades de pesquisa e desenvolvimento nas empresas, a situação parece ser ainda muito mais precária.

Uma outra forma de analisar a situação nas empresas é medir a presença de recursos humanos envolvidos com atividades de pesquisa e desenvolvimento. No ano da realização da pesquisa (2001), para todos os segmentos industriais pesquisados, foram contabilizados menos de mil empregados com titulação doutoral[3] envolvidos com atividades de pesquisa e desenvolvimento. Apenas para comparar, em 2001 existiam cerca de 35.000 pesquisadores doutores em atividade no país.

No quadro geral dos países em desenvolvimento, tanto para recursos financeiros públicos destinados à pesquisa em saúde, quanto para recursos humanos envolvidos com ela, a situação do Brasil não parece ser muito desconfortável. No entanto, numa visão mais aprofundada, problemas importantes começam a aparecer. Quanto aos recursos humanos, esses problemas ficam mais claros quando se estabelece a seguinte pergunta: "quantos dentre os 18.000 pesquisadores envolvidos com pesquisa em saúde estabelecem suas prioridades de pesquisa a partir de prioridades explícitas oriundas da Política Nacional de Saúde?"

Embora um inquérito entre pesquisadores em saúde não tenha sido realizado, as evidências disponíveis sugerem que os que estabelecem suas prioridades em consonância com diretrizes emanadas das políticas de saúde do país são menos do que o desejável. E, tradicionalmente, as explicações para este fato terminam por condenar os próprios pesquisadores. Seja por avaliações individuais (elitismo, alienação, etc.), seja por entender que a dinâmica globalizada da pesquisa científica, mediada pela pauta das revistas internacionais de maior impacto, determina essas escolhas, quase sempre voltadas para os interesses do mundo desenvolvido. É possível que haja pesquisadores elitistas ou afastados dos problemas de seu país, bem como é também verdade que a pressão do "publish or perish" é capaz de determinar escolhas de temas de pesquisa. No entanto, é possível que as explicações mais importantes para o padrão de escolha dos pesquisadores brasileiros em saúde seja mais simples. É possível que as escolhas sejam afastadas das prioridades da política de saúde porque essas políticas, no Brasil, apenas muito raramente geraram pautas de pesquisa prioritária. E provavelmente isso ocorreu porque a instituição responsável pela construção e implementação das políticas de saúde - o Ministério da Saúde - historicamente vem negligenciando a importância da pesquisa em saúde como ferramenta para a melhoria das condições de saúde da população. Algumas evidências sobre essa afirmativa serão apresentadas a seguir, ao discutirmos o perfil do financiamento público à pesquisa.

Pode-se dizer que, em termos setoriais, a pesquisa brasileira de maior sucesso hoje em dia é a pesquisa agropecuária. Este sucesso pode ser medido em termos de impacto científico, pois enquanto a presença de endereços brasileiros para o conjunto da pesquisa na base ISI situa-se em torno a 1,3%, no campo específico da pesquisa agropecuária está próximo de 3%. Mas podemos também medir aquele sucesso a partir da contribuição dessa pesquisa com as conquistas do agrobusiness no Brasil, que o colocam hoje na situação de grande produtor e exportador de um conjunto significativo de commodities. Para várias delas, a começar pela soja, a pesquisa científica e tecnológica teve um papel central.

Este resultado é produto de uma longa história, mas a articulação da pesquisa com as políticas públicas de desenvolvimento agropecuário ocorreu nos últimos 30 anos quando, em 1973, o Ministério da Agricultura criou uma agência de apoio à pesquisa agropecuária[4] e estabeleceu uma agenda de pesquisa prioritária. Faço essa digressão com vistas a comparar o financiamento público atual neste setor com o financiamento à pesquisa em saúde.

Em 2001, o investimento anual per capita nos pesquisadores em agropecuária foi quase 40% maior do que o destinado a cada pesquisador em saúde. Além disso, a diferença no perfil do financiamento à pesquisa nos dois setores encontra-se exatamente na participação dos ministérios responsáveis pelos mesmos. Enquanto o Ministério da Saúde participa com 20% do total de investimentos públicos na pesquisa em saúde, o Ministério da Agricultura, através de sua agência, comparece com cerca de 40%.

As diferenças são evidentes. Pelo lado da pesquisa agropecuária temos o ministério responsável pelo setor numa posição central na gestão da política de pesquisa, uma agência de apoio, uma agenda de pesquisa prioritária, mais recursos per capita e melhores resultados de pesquisa. Pelo lado da pesquisa em saúde essa seqüência de eventos deve ainda ser conquistada.

Em conclusão desse breve diagnóstico da situação da pesquisa em saúde no Brasil, podemos afirmar que o país possui um bom estoque de recursos humanos em pesquisa, uma infra-estrutura razoável para os padrões do mundo em desenvolvimento e um financiamento público não desprezível. O que está faltando fazer será apresentado a seguir.

Uma política de ciência, tecnologia e inovação em saúde.

A desigualdade é o calcanhar de Aquiles da civilização brasileira. Todo o progresso conquistado por gerações, em todos os campos em que isso foi observado, esbarra na marca da desigualdade. Não é diferente no campo da saúde. Os indicadores regionais e os referentes a diferentes grupos sociais dentro de cada região demonstram a profunda discriminação social quanto à saúde, seja nos padrões de morbidade, de mortalidade, no acesso aos serviços, na qualidade do atendimento, na disponibilidade de infra-estrutura sanitária, enfim em qualquer aspecto da intervenção pública ou privada atinente à mesma. O compromisso de combater a marca da desigualdade no campo da saúde (aumentar os padrões de eqüidade do sistema de saúde) é o fundamento básico da política a ser desenvolvida.

Em artigo recente, publicado no Bulletin of the World Health Organization, lê-se: "Se o sistema de pesquisa em saúde de um país pode ser considerado como o "cérebro" do seu sistema de saúde, então a ética constitui a sua "consciência". É imperativo que sistemas de saúde operem segundo as mais altas aspirações éticas e de justiça distributiva"[5]. Não resta dúvida de que as crescentes restrições observadas nos países centrais quanto a experimentos in anima nobile dentro de suas fronteiras têm estimulado a exportação de projetos de pesquisa, em particular de protocolos de ensaios clínicos e terapêuticos para serem executados em populações de países em desenvolvimento, em condições que seriam legalmente proibidas porque eticamente inaceitáveis no país de origem. O respeito estrito a padrões éticos na pesquisa deve ser o segundo fundamento dessa política.

Uma PNCT&I/S voltada para as necessidades de saúde da população deveria ter como objetivo principal desenvolver e otimizar os processos de absorção de conhecimento científico e tecnológico pelas indústrias, pelos serviços de saúde e pela sociedade. O acatamento desta assertiva implica em analisar o esforço nacional de C&T em saúde como um componente setorial do sistema de inovação brasileiro. Reconhecendo a complexidade dos processos de produção de conhecimento científico e tecnológico neste setor, a política deve levar em conta de todas as dimensões da cadeia do conhecimento envolvida na pesquisa em saúde, desde a pesquisa que objetiva exclusivamente fazer avançar o conhecimento até a pesquisa operacional. Da mesma forma, deve incorporar a maioria dos atores envolvidos no processo de pesquisa no país, que podem ser englobados em quatro subconjuntos: biociências, pesquisa clínica, saúde coletiva e P&D no Complexo Industrial da Saúde.

Finalmente, a política deve adotar como diretriz a necessidade de estabelecer prioridades. Para isso, o ponto mais importante a ser contemplado é a necessidade de construção de uma agenda de prioridades para a pesquisa em saúde. Uma das principais características históricas do sistema brasileiro de fomento à pesquisa é sua baixa seletividade, significando uma insuficiente capacidade de estabelecer prioridades e segui-las. E para que esta política mais seletiva possa ocorrer num ambiente de maior racionalidade, na perspectiva do interesse do país, é necessária a organização das necessidades de pesquisa segundo um padrão de prioridades.

A agenda de pesquisa prioritária deverá governar a aplicação da totalidade dos recursos do Ministério da Saúde para a pesquisa científica e tecnológica. Para que isto seja feito de modo eficiente, na perspectiva do aumento do volume de recursos para o apoio à pesquisa, será necessário o desenvolvimento de novos instrumentos. No Brasil, com exceção da pesquisa agropecuária, não há uma tradição de agências setoriais de financiamento à pesquisa. Tanto no plano federal quanto nos estados, as agências são "generalistas", ocupando-se da totalidade do campo científico e tecnológico. Em paralelo ao processo de construção da agenda de prioridades, está também sendo discutida a criação de uma agência de financiamento específica para a pesquisa em saúde, vinculada ao Ministério da Saúde. Embora ainda não haja uma decisão tomada quanto à sua forma, é certo que a organização da agência deverá estar integralmente a serviço da agenda de prioridades de pesquisa em saúde.

O complexo industrial da saúde

Por fim, é preciso mencionar que uma política de pesquisa num país com as características do Brasil deverá dar uma atenção especial ao desenvolvimento tecnológico e à inovação e, para tanto, deverá incorporar propostas e ações especificamente dirigidas ao Complexo Industrial da Saúde. Essa atenção decorre do fato de possuirmos uma estrutura industrial complexa e, em alguns setores, competitiva e, como já vimos, uma importante capacidade instalada de pesquisa acadêmica e em alguns institutos de pesquisa. Esta ênfase decorre também do fato do país ter grande necessidade de utilização dos principais insumos industriais destinados à saúde - medicamentos, vacinas, soros, hemoderivados, kits diagnósticos e equipamentos - e de que um atendimento adequado dessas necessidades exige um máximo de capacitação tecnológica e, em vários aspectos, autonomia e auto-suficiência tecnológicas. Não deve ser desprezado o fato de que, nesse conjunto de produtos industriais o país apresenta hoje em dia um déficit comercial anual de US$ 3,5 bilhões.

Cada um desses insumos à saúde apresenta características industriais e mercadológicas particulares, muito embora todos eles tenham, em comum, o fato de serem segmentos industriais de grande dinamismo e lucratividade em termos mundiais. Além disso, no que se refere aos medicamentos e às vacinas pode-se testemunhar uma verdadeira revolução tecnológica nas últimas décadas. No plano da estrutura industrial, essa revolução vem promovendo um movimento de concentração de capital e de tecnologia que resulta em imensos conglomerados multinacionais que competem/repartem o mercado mundial de medicamentos e também de vacinas. Este é o terreno sobre o qual teremos que construir nossa política tecnológica e de inovação em saúde e que, por si só, sugere o tamanho das dificuldades a serem enfrentadas.

Sem dúvida, o campo mais desafiador e difícil é o dos medicamentos e fármacos, aonde o processo de concentração e repartição do mercado mundial vai mais avançado e que, em conseqüência da abertura comercial indiscriminada observada no Brasil durante a década de 90, fez o país recuar em relação ao que já havíamos conquistado em períodos anteriores. Este recuo nos fez perder terreno não apenas para os países líderes, mas também para outros países em desenvolvimento como a Índia e a China. Cerca de 30% das importações de fármacos e medicamentos realizadas atualmente pelo Brasil tem como origem países não pertencentes à OECD. A retomada de uma posição competitiva em relação ao mundo em desenvolvimento é uma tarefa básica da política tecnológica em saúde. O fortalecimento da empresa privada nacional e sua capacitação tecnológica é a rota mais importante para realizá-la. O grau de internacionalização do mercado de fármacos sugere que associações com empresas multinacionais onde estejam incluídos mecanismos de transferência tecnológica também sejam cogitados. Finalmente, não deve deixar de ser mencionada a necessidade de ampliar, capacitar tecnologicamente e melhorar os modelos de gestão das poucas, muito embora importantes, instituições públicas produtoras de medicamentos.

Diferentemente do que se observa para os medicamentos, a produção de vacinas e soros é predominantemente pública, havendo, portanto, melhores condições para a construção de uma política tecnológica focada nas necessidades nacionais. Nesse terreno, talvez o desafio mais importante seja o de não deixar aumentar excessivamente a distância entre o Brasil e o conjunto de países produtores no que se refere à tecnologia de novas gerações de vacinas. Com ainda maior razão do que no caso dos medicamentos, as ações voltadas ao fortalecimento, capacitação tecnológica e melhoria da gestão dos produtores públicos é uma tarefa essencial.

Hemoderivados, kits diagnósticos e equipamentos possuem, cada um, suas especificidades de mercado e essas devem ser estabelecidas, examinadas e detalhadas de per si. O importante é que a construção do componente tecnológico da política de pesquisa em saúde seja realizada com base em evidências concretas da situação de mercado, das possibilidades tecnológicas autóctones e, principalmente, das necessidades nacionais. Para tanto, é de especial importância a realização de estudos prospectivos que orientem informadamente a construção da política, com a mobilização dos principais atores e tomadores de decisão públicos e privados envolvidos.

Uma das principais características de uma política de tecnologia e inovação em saúde é a sua flexibilidade. A definição dos alvos prioritários, os arranjos institucionais mais adequados para cada objetivo e os mecanismos de fomento a serem acionados devem obedecer à avaliação de cada situação específica. A definição dos alvos prioritários deve ser produto dos mencionados estudos de prospecção e deverão compor a agenda de prioridades de pesquisa em saúde. Os arranjos institucionais deverão, sempre que possível, privilegiar as empresas públicas e privadas, agentes decisivos no desenvolvimento tecnológico e, principalmente, na inovação. Quanto aos mecanismos de apoio financeiro, o leque deve ser aberto desde o apoio direto ao desenvolvimento de projetos nas empresas, passando pelo financiamento de arranjos onde se componham instituições de pesquisa e empresas até a encomenda de projetos específicos a institutos de pesquisa e universidades. Além do financiamento direto, deve ser utilizada no limite do possível a capacidade de regulação do mercado por parte do Ministério da Saúde, através de suas compras de medicamentos, vacinas e outros insumos.

Reinaldo Guimarães é diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia em Saúde. Ministério da Saúde.



[1] CNPq/PRE/AEI - Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil. Censo 2002.

[2] IBGE. PINTEC - Pesquisa de Inovação Tecnológica. 2002.

[3] Equivalente em tempo integral.

[4] Embrapa - Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.

[5] Buttha, A. - Bulletin of the World Health Organization. 2002

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Atualizado em 10/08/2004

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