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O novo marco regulatório de biossegurança de organismos geneticamente modificados: será que desta vez vai?

Marcio de Miranda Santos

No momento em que este artigo é escrito, encontra-se na Câmara dos Deputados a proposta de uma nova Lei de Biossegurança de organismos geneticamente modificados – OGMs. Vale a torcida para que o processo legislativo se encerre em breve, para que se intensifique, com regras claras e estáveis, o fomento à pesquisa e desenvolvimento de OGMs e o estímulo aos investimentos públicos e privados relacionados com a sua utilização comercial. Será que desta vez vai?

O processo de harmonização e desenvolvimento da legislação nacional sobre biossegurança e sua efetiva aplicação pelos órgãos de controle e fiscalização, constitui desafio institucional complexo. Aspectos de natureza técnico-científica, econômica, legal, política, ética, moral e religiosa, entre outras, contribuem para a o acirrado debate em torno do desenvolvimento de legislação específica e respondem, em parte, pelo atraso verificado na sua definição no Brasil. Enquanto isso impera o interesse particular e de curto prazo de grupos de interesse, em detrimento de medidas que visam criar uma institucionalidade voltada para lidar com o interesse coletivo e de longo prazo. Até quando?

O termo ‘biossegurança’ refere-se a um conjunto amplo de medidas que visam avaliar os riscos e propor procedimentos efetivos para que sejam evitados ou contornados os impactos negativos para a saúde humana e para o meio ambiente causados, dentre outras possibilidades, (1) pela introdução indevida no país de organismos exóticos (sejam eles plantas, animais ou microorganismos) ou (2) pela liberação de organismos geneticamente modificados (OGMs) no meio ambiente, obtidos pelo emprego da técnica do DNA recombinante. Adicionalmente, a pesquisa biológica e o desenvolvimento de produtos envolvendo organismos patogênicos são submetidos a rigorosos procedimentos de biossegurança, definidos na legislação nacional pertinente. Ações terroristas que utilizam agentes biológicos patogênicos são, igualmente, fontes permanentes de preocupação e em relação às quais medidas efetivas de biossegurança são requeridas, para o bem estar da população e da economia de países alvos. Exemplo recente refere-se ao contrato firmado pelo governo americano e uma multinacional do setor farmacêutico para a produção de cerca de 25 milhões de doses de vacinas contra o Antrax, no contexto de medidas que visam preparar os EUA para ataques potenciais de bioterroristas.

Enquanto nos EUA o debate sobre biossegurança é dominado pelas questões relacionadas com ameaças de ataques por parte de bioterroristas, no Brasil a discussão central refere-se, ainda, ao desenvolvimento do marco regulatório para a realização da pesquisa, desenvolvimento e comercialização de OGMs, questão que já se estende, sem solução, por pelo menos quinze anos. Mais recentemente, discute-se, também, em que condições células-tronco podem ser utilizadas para a solução de graves problemas na área de saúde humana.

O imbróglio jurídico desenvolvido no entorno das questões legais de biossegurança de OGMs no Brasil é de causar perplexidade a qualquer democracia do planeta e tem como uma de suas principais causas as disputas governamentais sobre as competências setoriais no processo de harmonização da legislação vigente, perante os novos marcos legais em debate no legislativo nacional ou definidos em âmbito internacional. Adicionalmente, a distância entre os posicionamentos das comunidades ambientalista e empresarial é muito grande, o que acaba por influenciar e dificultar a tomada de decisão governamental e o próprio processo legislativo. Tema como a aplicação do princípio da precaução, trazido pela Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB, associado às incertezas inerentes à aplicação segura dos desenvolvimentos de OGMs na agricultura, saúde humana e desenvolvimento industrial alimentam, de forma apaixonada, as idas e vindas que tem caracterizado a indefinição da legislação nacional de biossegurança de OGMs.

Grande parte dessa polêmica foi alimentada, também, pelo fato do primeiro produto a atingir o mercado agropecuário ter sido a soja resistente a um tipo de herbicida, e a forma como esse avanço foi percebido pela sociedade em geral. Apesar dos ganhos econômicos incontestes para o setor produtivo, essa tecnologia não agrega valor ao grão de soja e aos seus derivados (óleo, por exemplo), uma vez que estes são essencialmente iguais aos obtidos pela produção de soja convencional. Aproveitando-se desse caso isolado, grupos de interesse contrários ao uso dessa tecnologia alardeiam, com grande ênfase, que os benefícios econômicos trazidos pela soja transgênica e pela transgenia em geral tendem a fluir com maior intensidade para o setor empresarial do que para o consumidor em geral.

O que não foi ainda devidamente explicado para a sociedade brasileira é o que ela tem a ganhar com o emprego seguro dessa tecnologia e o que pode ser perdido com a situação diametralmente oposta.

Um país de dimensões continentais como o Brasil, com vocação natural para o agronegócio, não pode virar as costas para os desenvolvimentos tecnológicos que conferem maior competitividade econômica aos produtos do campo e da agroindústria. Por outro lado, não se pode abrir mão de um gerenciamento rigoroso dos impactos potenciais de OGMs para a saúde humana e para o meio ambiente, em país reconhecidamente detentor da maior diversidade biológica do planeta. Na prática, a mensagem é muito clara: alguns produtos transgênicos podem e outros não podem fazer parte da agenda brasileira de desenvolvimento sustentável, devendo ser tratados caso a caso à luz das especificidades do país e do interesse nacional.

Vale destacar, que a agenda brasileira de pesquisa e desenvolvimento vai para muito além da produção de soja resistente a herbicidas e deve, urgentemente, voltar-se para outras demandas, definidas a partir de problemas característicos do nosso país e de grande significado econômico e social.

Parte muito significativa das importações do Brasil refere-se a fertilizantes usados na agricultura. Viabilizar ou estabilizar a produção de alimentos básicos, em áreas sujeitas à seca, é um problema de dimensões ainda mais dramáticas, que afeta de forma implacável a agricultura no semi-árido nordestino. Mais ainda, parcela muito significativa das crianças deste país sofrem de desnutrição, necessitando de alimentos enriquecidos e de baixo custo. Trata-se de temas que podem, em grande medida, serem solucionados de forma segura pelo uso da transgenia.

O fato é que as possibilidades abertas pelo uso de OGMs jamais chegarão a quem precisa sem um marco regulatório adequado, implementado a partir de instituições fortes e bem assistidas pelo poder público. Além disso, muita pesquisa em biossegurança terá que necessariamente ser feita pelas nossa instituições de pesquisa, de forma a embasar o processo de liberação comercial de produtos da biotecnologia moderna de maior interesse para o nosso país, como os mencionados acima. Nesse sentido, preocupa muito o depauperamento da pesquisa nacional nessa área, em função de embates ideológicos, falta de foco e orientação estratégica, e o movimento pendular da liberação comercial de produtos considerados seguros e que já chegaram ao mercado.

Para ilustrar nossa fragilidade institucional, assistimos recentemente à introdução ilegal no país da soja trasgênica produzida na Argentina, situação de fato que exigiu do governo a edição de sucessivas medidas provisórias para ‘legalizar’ o plantio e as safras deste grão de 2003 e 2004. Pelo menos, nesse caso, o governo agiu com base em parecer positivo da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio quanto à sua liberação para uso comercial, ainda que objeto de animada pendenga judicial.

Mais preocupantes são os movimentos relacionados à introdução de algodão transgênico no país. O fato de ser o Brasil centro de diversidade de espécies do gênero Gossypium (o gênero do algodão cultivado) implica na adoção de medidas concretas de contenção e confinamento, tanto na fase de pesquisa a campo como em plantios comerciais, para que variedades de algodão transgênicas venham a ser no futuro, eventualmente, cultivadas no país.

Caso esses movimentos sejam constatados, medidas exemplares previstas em lei devem ser tomadas pelos órgãos de controle e fiscalização, para que nossas autoridades não corram o risco de freqüentar a imprensa local e mundial como gestores de uma terra de ninguém, onde o lucro se sobrepõe facilmente ao bem estar coletivo, ao arrepio da lei. Por outro lado, não se pode aceitar uma indefinição tão longa em relação ao desenvolvimento do marco regulatório de biossegurança de OGMs, sob pena de ver comprometida, nos casos de aplicação segura da tecnologia em questão, a liderança do país na produção de grãos e matérias primas em mercados de grande volume.

nApesar das dificuldades observadas, mantém-se a expectativa positiva de que, desta vez, o processo legislativo chegará a bom termo, aprimorando as condições existentes para a gestão competente da biossegurança de OGMs no país.

Marcio de Miranda Santos é diretor executivo do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos-CGEE.

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Atualizado em 10/11/2004

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