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Aqüicultura: desafios para fazer peixes
para os rios sem peixes

Juliana Schober

Sandra Postel, uma expert em recursos hídricos de água doce, diz que a água é a base da vida e as artérias azuis da Terra. Artérias azuis entupidas por conflitos violentos e guerra, vale acrescentar. Conflitos entre, mas principalmente dentro, dos próprios países. Conflitos de natureza política e econômica que são originados, geralmente, pela divergência de interesses pelo uso dos recursos hídricos. É nesse cenário que a aqüicultura vem se desenvolvendo e despontando como o setor produtor de alimento de maior crescimento no mundo.

Segundo o Estado mundial da pesca e aqüicultura em 2002 publicado pela FAO, a aqüicultura mundial vem apresentando crescimento médio anual de 9,2 %, comparados com 1,4 % na pesca extrativa e 2,8% na produção de animais terrestres. A China permanece como o maior produtor, com 71 % do volume e cerca de 50 % em termos de valor econômico.

Não é por acaso que o Brasil é visto hoje como um dos países com maior potencial para o desenvolvimento dessa atividade: o país possui a maior disponibilidade hídrica do planeta com bacias hidrológicas cobrindo grandes extensões do território e centenas de rios. Essa abundância – que na vida de muitas populações economicamente desfavorecidas em nada se aplica – fomenta a idéia de um país repleto de tanques e viveiros lucrativos fornecendo a bom preço o pescado para a alta demanda de consumidores mundiais.

Observando mais de perto, grande parte da aqüicultura de água doce no mundo é praticada em águas doces superficiais, que constituem apenas 0,3% da água disponível no planeta.

É verdade que o potencial brasileiro para o desenvolvimento da aqüicultura ainda é sub explorado. O desafio é expandir sustentavelmente. A aqüicultura pode causar impactos econômicos, sociais e ambientais positivos ou negativos, dependendo da situação. Os rios, integralizadores de fenômenos que ocorrem nas vertentes das bacias, estão expostos aos impactos causados pelas atividades agropecuárias que alteram os processos biológicos, físicos e químicos dos sistemas naturais.

O tipo e escala dos impactos causados pela aqüicultura dependem da intensidade do sistema produtivo e condições físicas, químicas e biológicas da área em questão. Geralmente, quanto mais intensivo o sistema, maiores os impactos ambientais.

Efluentes da aqüicultura

Os rios e águas adjacentes às fazendas de aqüicultura podem receber, via efluentes, cargas elevadas de nutrientes acelerando o processo de eutrofização. Esse é um dos maiores problemas ambientais relacionados à aqüicultura. A ração, que é adicionada aos viveiros para que o peixes cresçam o mais rápido possível, contribui para a eutrofização das águas dentro e fora das fazendas.

Economicamente, os sistemas intensivos são inviáveis sem o uso de ração. Apenas parte da desse alimento que entra no viveiro é consumida. A amônia é o principal produto final da quebra de proteína após a ingestão e digestão da ração, e é eliminada pelos peixes na água. A parcela da ração adicionada aos viveiros e não consumida também é transformada em amônia, através da decomposição por determinadas bactérias. A amônia é fonte de nitrogênio nos efluentes da aqüicultura. Além do nitrogênio, as concentrações de fósforo nos viveiros também aumentam durante o tempo de cultivo.

O impacto ambiental dos efluentes da aqüicultura depende das espécies que estão sendo cultivadas, intensidade do cultivo, densidade de animais, composição da ração utilizada, técnicas de alimentação dos animais e hidrografia da região. Algumas pesquisas mostram que os viveiros de aqüicultura podem lançar quantidades significativas de N e P em corpos de água adjacentes. Estudos realizados em fazendas de bagres do canal (Ictalurus punctatus), por exemplo, apontam que, em média, para cada tonelada do peixe produzida são liberados no meio ambiente 9,2 Kg de N e 0,57 kg de P.

Enquanto os sistemas extensivos geralmente são minimamante impactantes devido à baixa densidade de organismos cultivados e ao não uso de ração, os sistemas intensivos podem causar graves danos ambientais.

As criações intensivas são completamente dependentes de ração. Nos sistemas semi-intensivos e extensivos, que são os sistemas mais utilizados nos trópicos, além da densidade de peixes ser menor tambem há o aproveitamento da alimentação natural dos viveiros e, conseqüentemente, menor utilização de ração. Dependendo da espécie cultivada e da técnica utilizada, mais de 85% do fósforo e 52-95% do nitrogênio que entram nos viveiros através da adição de ração podem ser eliminados no meio ambiente. Quanto maior as taxas de alimentação através de ração, maior o impacto ambiental.

Impactos genéticos

As tilápias, hoje em dia muito importantes para a aqüicultura brasiliera, são originárias da África. De fácil adaptação, a tilápia já foi disseminada pelo Brasil inteiro não somente dentro das fazendas de aqüicultura mas também fora delas – apesar da precaução é muito comum peixes fugirem das fazendas e atingirem as bacias hidrográficas causando diversos impactos ecológicos. Do ponto de vista produtivo as tilápias apresentam muitas vantagens para o cultivo em território brasileiro, mas é dificil estimar precisamente as conseqüências negativas da introdução de espécies exóticas em geral sobre os rios e bacias hidrográficas. Estudos já apontaram que pode haver competição por espaço e alimento, transferência de doenças para as espécies de peixes endógenas e modificações de habitat.

Pesquisadores têm discutido também a “poluição genética” causada por cruzamentos entre as espécies cultivadas e as polulações de peixes selvagens que habitam os rios e corpos de água adjacentes. As respostas das interações genéticas, nesse contexto têm sido abordadas por vários cientistas. Uma das conclusões é que nem todas as modificações genéticas induzidas nos peixes cultivados que visam melhorar a produtividade são benéficas para os peixes selvagens. O cruzamento entre espécies selvagens e cultivadas pode originar indivíduos inaptos para sobreviver em ambiente natural.

Um exemplo interessante sobre o impacto da aqüicultura sobre a variabilidade genética dos peixes é o tambaqui (Colossoma macropomum) que habita a bacia amazônica e é uma das principais espécies da piscicultura brasileira. A pesquisadora Vera Val e sua equipe do Laboratório de Ecofisiologia e Evolução Molecular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) compararam populações de tambaquis provenientes da natureza nas proximidades de Manaus e populações confinadas de diferentes regiões do Brasil. O estudo mostrou que os tambaquis confinados estão perdendo a variabilidade genética que permite a espécie sobreviver nos rios amazônicos.

Discussões sobre a sustentabilidade

A percepção pública da indústria da aqüicultura costuma ser negativa. Os cientistas, ambientalistas, políticos e demais atores engajados na busca pela sustentabilidade têm chamado a atenção para os impactos negativos da atividade como a destruição dos habitats naturais, eutrofização e sedimentação dos corpos de água naturais pelos efluentes da aqüicultura. Além do uso excessivo de água, energia e ração, efeitos negativos sobre os estoques de peixes dos rios e sobre a biodiversidade em geral, existem, ainda, os impactos sociais e econômicos.

É importante notar que muitos impactos negativos da atividade não são comparáveis aos danos causados aos rios pelas indústrias de outros setores ou mesmo pela agricultura. Nesse contexto, alguns pesquisadores têm evidenciado a necessidade de se discutir os sistemas produtivos rurais, onde se inserem os projetos de aqüicultura, de forma integrada, contabilizando os ganhos e as perdas econômicas e ambientais do sistema como um todo. Nessas situações a aqüicultura integrada com outras atividades produtivas tem se mostrado muito eficaz para aumentar a sustentabilidade dos sistemas rurais e reduzir a pressão ambiental sobre os rios.

A discussão sobre o desenvolvimento sustentável da aqüicultura faz parte de uma discussão maior sobre os dilemas do desenvolvimento econômico nos tempos modernos. Desde a Technical Conference on Aquaculture realizada pela FAO em 1976, em Quioto, muitos progressos técnicos-científicos foram alcancados e têm contribuído definitivamente para a sustentabilidade ambiental dos sistemas de aqüicultura. As discussões sobre aqüicultura e sustentabilidade também evoluíram. Enquanto a Conferência de Quioto foi focada em desenvolvimento científico e tecnológico, treinamento e desenvolvimento institucional, a Conferência de Bangkok, em 2000, além de dar continuidade aos temas tratados em Quioto, deu também especial atenção às estratégias para o desenvolvimento sustentável da aqüicultura.

As discussões acerca da inserção da aqüicultura no mundo moderno sob o paradigma da sustentabilidade ambiental, têm conseqüências diretas para os rios e bacias hidrográficas alem de contribuírem para o desenvolvimento de um meio rural mais sustentável. Alguns estudos apontam caminhos para isso mostrando que a aqüicultura, com suas várias funções pode desempenhar um papel fundamental no meio rural. Além de produzir peixes para restaurar os estoques de peixes super explorados nos rios a aqüicultura tem gerado trabalho e renda para as populações ribeirinhas e aumentando a sustentabilidade dos sistemas rurais integrando-se às outras atividades produtivas. Documentos da FAO mostram também que nas últimas décadas a aqüicultura integrou-se às economias de muitos países do terceiro mundo, contribuindo cada vez mais para a geração de divisas e segurança alimentar no meio rural.

Juliana Schober é mestre em aqüicultura pelo Centro de Aqüicultura da Unesp.

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Atualizado em 10/02/2005

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