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http://www.comciencia.br/reportagens/2005/04/13.shtml

Autor: Sérgio de Régules
Data depublicação: 10/03/2005

A fragilidade de um sistema de conhecimento
O cristianismo entre os índios Palikur

Artionka Capiberibe

Os Palikur são uma população indígena de aproximadamente 2.000 pessoas que possui uma língua própria filiada à família lingüística Arawak e está localizada na Amazônia setentrional, na fronteira Brasil/Guiana Francesa. No lado brasileiro, habitam as margens do rio Urukauá, na bacia do rio Uaçá, no município de Oiapoque, extremo norte do estado do Amapá. No lado francês, vivem principalmente em bairros dentro da cidade fronteiriça de Saint Georges e de Caiena, capital da Guiana Francesa. Há pelo menos quatro séculos, a região em que habitam é palco de intensas relações entre índios e não-índios, não só oriundos de nações diferentes (portugueses, franceses, holandeses, ingleses, escravos fugidos da Guiana, brasileiros etc.), mas exercendo atividades diferentes como missionários jesuítas franceses, caçadores de escravos, comerciantes, militares brasileiros, gendarmes franceses, garimpeiros, inspetores de aduana, padres etc.

Hoje, a região do baixo rio Oiapoque, outrora palco de guerras e disputas entre os vários povos indígenas que nela viviam, e entre estes e europeus, é habitada por apenas quatro etnias – Palikur, Galibi do Oiapoque, Karipuna e Galibi-Marworno. Estes povos compartilham de uma história econômica, política e religiosa em comum. Dentro desse quadro de influências compartilhadas, o catolicismo aparece como um pano de fundo geral, cuja presenca é antiga na região. Segundo fontes históricas, a missão católica entra no baixo Oiapoque no primeiro quarto do século XVIII, por meio da ação de jesuítas franceses. Embora os registros dessas missões apontem para uma falência precoce de sua atuação, o fato e que, ao longo dos séculos, as populações indígenas do baixo Oiapoque tiveram sempre algum tipo de assistência católica. Atualmente, o catolicismo está representado por duas vertentes diferentes: um catolicismo conduzido por festas de santo que convive com rituais xamânicos, presente entre os Karipuna e Galibi-Marworno; e um catolicismo avesso tanto às festas de santo, quanto ao xamanismo, mais próximo ao catolicismo romano, exercido pelos Galibi do Oiapoque.

Embora um dia os Palikur também tenham sustentado práticas católicas similares ao que se observa hoje entre seus vizinhos Karipuna e Galibi-Marworno, e que o catolicismo esteja fortemente presente em suas narrativas, são o único povo na região que se afirma evangélico. A partir de 1965, os Palikur começaram a ter contato com missões evangélicas e nos quarenta anos que se seguiram desde o estabelecimento da primeira missão foi se consolidando entre eles um tipo de religiosidade evangélica pentecostal. Os Palikur são hoje, em sua maioria, filiados à Igreja Evangélica Assembléia de Deus, esta Igreja possui duas sedes no Urukauá e duas na Guiana Francesa, todas com pastores nativos e o Novo Testamento integralmente traduzido para a língua vernácula.

Desde a década de 1980, os Palikur do Urukauá empreendem cruzadas evangelizadoras entre seus vizinhos indígenas. Seu primeiro feito foi introduzir o evangelho entre os Palikur residentes na Guiana Francesa e levar a Assembléia de Deus para as aldeias de Caiena e Saint Georges, onde passaram a disputar os fiéis com a Igreja Adventista do Sétimo Dia, já presente entre os Palikur da Guiana Francesa. Atualmente, estão levando sua missão aos católicos Karipuna e apóiam o trabalho da Missão Novas Tribos do Brasil entre os Galibi-Marworno.

A introdução da doutrina evangélica é um marco para essa população. As histórias de vida são sempre balizadas por um antes de Cristo e um depois de Cristo particulares e coletivos. Vidas, que antes da conversão eram atormentadas por brigas conjugais, bebedeiras que terminavam em agressões, ameaças de malefícios por feitiçaria, passaram a desfrutar de uma certa harmonia e de paz nas relações sociais. Na imagem coletiva destaca-se a maneira positiva como é vista a mudança na ocupação espacial do Urukauá pós-evangelização, geradora de uma grande concentração populacional em uma única aldeia, Kumenê, hoje habitada por cerca de 545 do total de 1011 Palikur em território brasileiro.

Fotos: Divulgação Ponte entre Povos
 

A concentração populacional é diretamente atribuída ao desaparecimento dos xamãs e, com eles, da feitiçaria. Nas narrativas Palikur os xamãs são vistos como desagregadores, pois alimentavam, por meio da feiticaria, um estado permanente de vendeta. As vinganças seriam motivadas pelas mortes causadas, em geral, por doenças, mas sempre reputadas à feitiçaria. Como relata o Palikur Emiliano Iaparrá:

“Antigamente tinha muito pajé aqui, o pajé era mentiroso... antigamente não tinha doutor, quando o pajé chegava, ele olhava o doente, acendia seu cigarro de tawary, ficava olhando e dizia: – teu filho não tá melhorando porque tem outro pajé... que faz a doença. Quando saía o pajé, era chamado outro, ele acendia o tawary e dizia que a culpa era do outro. Não tinha jeito de curar, quando a criança morria o pai ia vingar”.

Com o cristianismo evangélico operou-se, pelo menos no plano das idéias, a substituição de um sistema de vinganças por um sistema do perdão. Essa é a imagem fundamental que caracteriza o antes e o depois coletivo dos crentes. Diante de tanta pressão e da forma negativa pela qual os xamãs passaram a ser vistos, o único Palikur que se manteve atuando como xamã foi viver longe do núcleo crente, entre a população indígena Galibi-Marworno.

Mas, se, por um lado, a proposta de substituir um sistema ancestral de vinganças pela instituição do perdão foi uma estratégia que encontrou resposta inicial positiva, por outro lado, não parece ter sido suficiente como meio de sustentação da religião, em parte porque nunca chegou a eliminar a presença do sistema de agressões, localizado principalmente nas tensas relações de parentesco entre os parentes consangüíneos e os parentes por afinidade (sogros (as), cunhados (as), genros, noras). A noção de irmandade, que vem junto com a possibilidade de perdoar, confrontou-se com o sistema de idéias preexistente, demonstrando a impossibilidade de transformar uma sociedade instituída por consangüíneos e afins em uma utópica “comunidade de irmãos”.

O perdão cristão auxiliou na evangelização mas, nas narrativas de conversão destaca-se um outro elemento cuja força arrebatadora foi fundamental no estabelecimento e manutenção da religião pentecostal no Urukauá. Trata-se do batismo com o Espírito Santo, uma experiência de êxtase religioso que é descrita como um momento de grande prazer no qual as pessoas sentem uma vontade irrepreensível de chorar e se alegrar. Esse transe religioso é o que diferencia os pentecostais dos outros cristãos. Para essa religião evangélica, Deus se apresenta próximo, manifesto, e é chamado de “Deus vivo” ou “Deus verdadeiro”, Ele toma conta do corpo do fiel, proporcionando-lhe grande prazer:

“...quando eu senti a mão do homem passou na minha cabeça, mas aquela mão do homem, dava pra você gritar, alegrar, cantar, orar, chorar, mas que gozo! mas que alegria que a gente recebe! aí eu quase não suportava mais, eu queria chorar, eu queria gritar, cantar,orar, dançar, correr pra dentro da igreja pra ajoelhar e pra orar, cantar, pregar, pra fazer tudo!” (Manoel Labonté Kumenê 1996).

Numa sociedade indígena o paralelo desse tipo de experiência de contato com um plano espiritual é encontrado no xamanismo. Os meios de comunicação de Deus com os homens que aparecem nas narrativa de conversão - o transe religioso, a manifestação em seres da natureza, os sonhos e o canto - se assemelham a um universo de conhecimento xamânico. Por meio do batismo com o Espírito Santo operou-se uma aproximação entre a religião que acabava de chegar e um referencial de contato com o mundo dos espíritos previamente conhecido pelos Palikur. Além disso, o batismo com o Espírito Santo é visto como uma prova da existência concreta de Deus.

A experiência de êxtase religioso é, não só a força de atração, mas a mantenedora dos laços com a Igreja, porque é considerada como um caso particular daquilo que se vai vivenciar na vida eterna: gozo, alegria, vida sem infortúnios. O perdão é a chave para essa vida eterna, pois permite a todo aquele que se arrepende de seus pecados reaproximar-se da Igreja e estar novamente apto ao Éden.

O projeto "Ponte entre Povos” e o registro de uma língua em vias de desaparecer

Na medida em que a Igreja foi se consolidando, o universo xamânico foi ficando cada vez mais restrito, os rituais foram praticamente abolidos e tudo que restou do universo do xamã foram alguns objetos de cultura material que passaram a ser produzidos para a venda como artesanato, como é o caso dos bancos cerimoniais e dos cocares utilizados nos mais diversos tipos de rituais (de iniciação de meninos e meninas, funerários, etc). A contar que essa situação já está solidamente estabelecida, há pelo menos vinte anos, é fácil imaginar as conseqüências da quebra no sistema xamânico. Atualmente, duas gerações desconhecem completamente o universo de conhecimento envolvido nos rituais tradicionais. Apenas algumas pessoas da geração que está hoje acima dos cinqüenta anos possuem algum domínio sobre esse conhecimento.

No entanto, embora “crentes”, os Palikur têm exata noção do valor daquilo que chamam de “nossa história”, o que os faz sentir orgulho em relação às suas “tradições”. Foi esse sentimento que os impulsionou a participar do projeto “Ponte entre Povos”, um projeto de valorização da música indígena e da relação entre o conhecimento musical indígena e o ocidental, que envolve a participação dos Palikur, de quatro povos indígenas da região do Tumucumaque (Amapá/norte do Pará) e de uma orquestra sinfônica. A decisão de participar foi movida pela vontade de relembrar os cantos que faziam parte dos rituais, pelo temor em perder esse conhecimento e pelo desejo de registrá-lo para as novas e futuras gerações, por isso escolheram como título de seu CD a palavra “kiyeminaki” ou “recordar”.

No CD Kiyeminaki são apresentados apenas trechos de rituais, mas já é possível ter idéia do quão vasto pode ser o repertório ritualístico Palikur. Nas músicas também há um pouco da história da região: os cantos que falam sobre os negros ou Mekohro - faixas 4 e 5 -, referem-se às relações históricas estabelecidas com os negros da Guiana Francesa, revelando uma época em que não existiam fronteiras territoriais, étnicas ou culturais.

Todos os cantos são criações dos xamãs e estão na língua kiyavuyhka ou kiyaptuhka e na língua de um dos clãs Palikur – eles estão hoje divididos em seis clãs: Wayveyene, Kwakyieyene, Wakavunhene, Paramyune, Waxeyene, Wadahyone. O kiyavuyhka é definido tanto como uma língua cerimonial, utilizada pelo xamã na criação dos cantos, quanto como uma “língua de respeito”, que um dia pode ter sido de uso corrente pelo conjunto da população, mas na memória da geração que tem hoje mais de quarenta anos era a língua utilizada para se falar com os mais velhos, cercada de regras e proibições. Atualmente, essas línguas são mal conhecidas pelos mais velhos e completamente desconhecida aos jovens, são pouquíssimas as pessoas que possuem um domínio completo de seus vocabulários. Por isso, no momento de fazer as traduções para o livro que acompanha o CD foi necessário fazer uma dupla tradução: primeiro, da língua dos cantos para o parikwaki, a língua corrente palikur, e, em seguida, do parikwaki para o português.

O projeto “Ponte entre Povos” explicita a fragilidade daquilo que se chama conhecimento tradicional. Ao abraçar a religião evangélica, os Palikur abriram mão de um conhecimento ancestral. Durante o processo de conversão não lhes pareceu que teriam perdas, miravam apenas os ganhos - como por exemplo, a paz que o sistema do perdão traria a sociedade -, hoje, quarenta anos depois, é preciso fazer um grande esforço para “rememorar” aquilo que um dia acontecia rotineiramente na vida da aldeia. Hoje, xamãs, kiyavuyhka, cantos e rituais parecem cada vez mais fazer parte daquilo que os Palikur chamam de “história dos antigos”.

Artionka Capiberibe é doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ.

Leia também, nesta edição, a entrevista com Marlui Miranda, coordenadora do projeto Ponte entre Povos.


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Atualizado em 10/04/2005

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