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http://www.comciencia.br/reportagens/2005/09/03.shtml

Autor: André Gardini
Data de publicação: 10/09/2005

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Matar a fome e cuidar do coração

No início do ano, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou dados segundo os quais a população adulta (95 milhões de pessoas) do Brasil, país de Fome Zero, é formada mais por pessoas acima do que abaixo do peso. São 10,5 milhões de obesos e 38,8 milhões com excesso de peso contra 3,8 milhões com déficit. Somam-se a esses dados os números da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), segundo a qual 21,6 % dos brasileiros possui colesteral alto. Nos EUA, país campeão do colesterol, essa taxa é de 25%.

A  partir dessas informações colocou-se a pergunta: será que o Brasil precisa mais da ajuda dos Vigilantes do Peso do que de um Fome Zero? Um olhar mais atento dos especialistas mostra que esse não é um ângulo correto para se ver o problema. Longe de significar que o problema da fome está resolvido, os números mostram que quando a população brasileira tem dinheiro para se alimentar o faz de forma incorreta, privilegiando os alimentos mais calóricos, que por sua vez são os mais baratos. Assim, a falta de dinheiro para comprar alimentos causa dois problemas opostos que são faces de uma mesma moeda: as doenças causadas pela falta pura e simples de comida e os malefícios causados por uma alimentação inadequada.

Enquanto o primeiro problema tem sido combatido com programas como o Fome Zero, o último só tem se agravado. De acordo com a SBC  as doenças do coração e sistema circulatório já são responsáveis por 35% de todas as mortes no país. Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam para um crescimento de 28% das mortes por problemas cardiovasculares até 2020.

Esses números colocam o Brasil entre os países com índices de colesterol mais elevados do mundo. Uma radiografia inédita mostra que um em cada cinco brasileiros tem taxa de colesterol considerada perigosa pelas entidades internacionais de saúde. Esses resultados fazem parte do maior levantamento da história brasileira sobre a incidência do colesterol. Hoje, aproximadamente 38,9 milhões de pessoas têm colesterol alto no país.  A pesquisa percorreu todos os estados brasileiros, mobilizou mais de 800 profissionais da saúde e mediu o colesterol de 1.239 pessoas.

Para Raimundo Marques do Nascimento Neto, diretor-executivo da SBC/Funcor, esses números apontam para uma epidemia. Para tentar conter esse avanço ele explica que há uma interlocução entre o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e a SBC no sentido de adequar os programas de distribuição de alimentos e renda do governo com essa nova realidade que o brasileiro está vivendo. Para ele, o programa de distribuição de renda é excelente, mas a atuação do governo na prevenção dos índices de colesterol é urgente e necessária.

“Temos que matar a fome, mas não podemos matar a pessoa do coração”, destaca. “Nós temos uma população pobre que está faminta e temos uma população que está sendo mal alimentada, isso é muito grave”. Para ele, não saber se alimentar é como ler e escrever sem compreender. “Não podemos admitir que a pessoa passe a se alimentar de uma forma inadequada”. Ele explica que a SBC está desenvolvendo uma parceria preventiva com o MDS com o objetivo de educar e informar sobre a composição nutricional dos alimentos. O nome da campanha é “Fome Zero, Coração Dez”. “A idéia é atingir a população mais pobre, que são aqueles que apresentam os maiores níveis de colesterol”, explica.

O alto colesterol da população pobre está diretamente relacionado com os preços dos alimentos, ou seja, os mais baratos são os com maior colesterol. “O que acontece é que a população mais pobre é levada a comer mais carne gorda e miúdos, que contém níveis mais altos de colesterol. É um problema desde a infância, mas o impacto do colesterol é em longo prazo”. A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF – 2002/03) traz uma importante informação para entendermos o que Nascimento Neto afirma. A tabela abaixo mostra a compra de alimentos por domicílio per capita anual conforme a renda das famílias. Nela, podemos notar que o consumo dos alimentos que oferecem menos riscos à saúde da população aumenta de acordo com a renda.

Produtos
Aquisição alimentar domiciliar per capita anual (KG)
Classes de rendimento monetário e não-monetário mensal familiar (R$)
Até 400
Mais de 400 a 600
Mais de 3000
Hortaliças
15,696
22,397
42,269
Hortaliças folhosas e florais (acelga, agrião, alface...)
1,034
1,475
4,720
Hortaliças frutosas
7,909
11,621
19,790
Frutas de clima tropical (abacaxi, acerola, goiaba...)
10,362
12,714
38,677
Frutas de clima temperado (ameixa, morango, pêssego, etc...)
0,701
1,345
7,179
Carnes
16,859
20,171
31,026
Carnes bovinas de primeira
2,285
3,459
10,669
Carnes bovinas de segunda
5,969
6,976
5,580
Toucinho fresco
0,347
0,249
0,138
Toucinho defumado
0,009
0,049
0,272
Leite de vaca fresco
15,225
17,639
8,952
Leite de vaca pasteurizado
8,579
13,581
50,153
Fonte: IBGE (adaptada pelo autor)

Alimento mata a fome, não o problema

O programa Fome Zero, principal bandeira de eleição do governo Lula, é uma política pública que visa a erradicação da fome e da exclusão social. Muitas críticas foram dirigidas ao programa devido ao seu caráter assistencialista: os alimentos seriam oferecidos em lugar de se proporcionar condições (emprego, renda) para que a própria população fosse às compras. Mas para Walter Belik, professor do Instituto de Economia da Unicamp, uma política pública precisa também resolver alguns problemas imediatos. “Hoje, o nível de mortalidade infantil no Brasil está em torno de 28 por mil habitantes nascidos vivos. É altíssimo. No município com o pior IDH [Índice de Desenvolvimento Humano], Manari, morrem 90 crianças em cada mil nascidas vivas. É preciso haver uma política assistencial direta”. O pesquisador defende uma política de distribuição de renda “pesada” no país. “Se por um lado o governo Lula avançou nas políticas pontuais de segurança alimentar por outro lado a política econômica só concentrou a renda. Com uma mão você dá e com a outra você tira”, avalia.

De acordo com os números oficiais, o Fome Zero avança não apenas num sentido de apoio assistencial, mas num conjunto de ações estruturantes que, além de ampliar o acesso aos alimentos, articula ações de fortalecimento da agricultura familiar e de geração de emprego e renda. O Grupo de Trabalho Fome Zero, reunido em junho, avaliou o programa como uma estratégia real de erradicação da fome por meio da inclusão social. Para o grupo, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) é a melhor tradução dos objetivos do Fome Zero, atuando desde a compra até a distribuição dos alimentos. O Governo Federal compra os produtos da agricultura familiar e destina às populações vulneráveis (quilombolas, indígenas, acampados de reforma agrária, atingidos por barragens). Em 2004, o governo investiu R$ 91,2 milhões e beneficiou 45,5 mil famílias de agricultores familiares. Em 2005, a meta é atender 100 mil. Outra ação é a compra de produção de leite dos agricultores familiares e a distribuição para pessoas de baixa renda. Até março de 2005, cerca de 17 mil famílias venderam sua produção ao Fome Zero, que atendeu cerca de 717 mil famílias. Em 2005, o volume de recursos destinado ao programa será de R$ 12 bilhões, 33% maior que em 2004, quando foi de R$ 9 bilhões.

Fome Zero – 2003 a junho de 2005
Programas
Investimentos
Atendimento
Produção
Municípios
Bolsa Família R$ 13 bilhões 7 milhões de famílias 70% dos recursos são gastos com alimentação 5542
Programa de Aquisição de Alimentos R$ 494 milhões 150 mil agricultores 222 mil toneladas de produtos diversos ao ano; 638 mil litros de leite por dia Todos os estados
Restaurantes populares R$ 20 milhões 2 mil por dia (cada um) Dois em funcionamento 32 em construção, 78 em fase de pré seleção 95 municipios e 5 estados
Cisternas R$ 100 milhões 295 mil pessoas 71,2 mil unidades 872
Cestas Básicas R$ 42 milhões 300 mil famílias 650 mil cestas Comunidades indígenas, quilombolas e atingidos por barragens
Banco de Alimentos R$ 5 milhões 2.500 pessoas por unidade 25 unidades 25

 

O sociólogo Herbert de Souza, Betinho, que ficou conhecido por sua trajetória política de combate à fome, dizia: “quem tem fome tem pressa”. Se estivesse vivo, no dia 03 de novembro completaria 70 anos. Betinho escreveu no artigo “A alma da fome é política” que para acabar com a fome não basta dar comida; e para acabar com a miséria não basta dar empregos; é necessário reconstruir radicalmente toda a sociedade.

Entre os dias 16 a 22 de outubro, o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) realizará a Semana Mundial da Alimentação, no qual o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) comemorará o aniversário de Betinho, que foi um dos fundadores do Instituto. Para Vivian Braga, uma das organizadoras do evento, essas comemorações visam contribuir para um processo de sensibilização e mobilização contra a fome e em favor da segurança alimentar e nutricional. Braga lembra que, em meados dos anos 1990, houve um trabalho no sentido da conscientização e “desnaturalização” desse problema social, desencadeado pela Campanha da Ação da Cidadania, que culminou na doação de alimentos e da formação de centenas de comitês de doações. Passados 10 anos, os desafios hoje seriam ainda maiores. “Tanto as comemorações do aniversário do Betinho e do Dia Mundial da Alimentação procuram trazer como tema fundamental a luta pelos direitos sociais e entre eles o direito humano à alimentação como central. Como estratégia de luta pela garantia desses direitos está a participação social, principalmente aquela que se dedica à discussão e proposição de políticas públicas para a área.

Alimentos não faltam

O problema da distribuição de renda há muito envergonha a sociedade brasileira. Um número exageradamente grande de pessoas – 49,8 milhões de brasileiros, ou 29,3% da população – eram considerados indigentes em 1999. De acordo com o artigo¹ “Políticas de combate à fome no Brasil” esse número é, em parte, generoso, pois são entendidos como indigentes “pessoas ou famílias com renda abaixo do necessário para adquirir uma cesta de alimentos com quantidades energéticas mínimas ou recomendadas. A linha da pobreza é superior à de indigência, pois inclui, além do valor dos alimentos, outras despesas não alimentares como vestuário, moradia, transporte etc”.

A Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD 2003) mostra números assustadores para um país como o Brasil, com renda per capita alta. Entre os anos de 2002 e 2003 ocorreu a maior redução no rendimento médio mensal, com uma queda de 7,4%. De forma geral, a população brasileira está ficando mais pobre. A PNAD mostra que, em 2003, os 10% com os maiores salários ficaram com 45,3% do total dos rendimentos no país, enquanto que os 10% com menores salários ficaram com apenas 1%. No país, quase um terço da população, algo em torno de 60 milhões de brasileiros, sobreviveria com dois salários mínimos.

Para Walter Belik, da Unicamp, uma sociedade que assiste passivamente sua população morrer de fome não pode ser chamada de democrática. Vivian Braga, do Ibase, concorda e destaca que uma sociedade com fome é uma sociedade de exclusão e desigualdades. “A fome acabará no dia em que superarmos questões e dificuldades, sobretudo políticas, na luta pelos direitos. Para isso é preciso haver um comprometimento efetivo dos governos e da sociedade civil, não somente a organizada, mas essa com a responsabilidade de exercer pressão permanentemente sobre os governos”.

O termo segurança alimentar seria insuficiente para explicar a fome pois, segundo Belik, esse é um conceito que envolve quantidade, qualidade e regularidade de ingestão de alimentos. O acesso aos alimentos é a questão que deve ser enfrentada e aí entra a variável renda. A proposta do professor é trabalhar com o conceito de “vulnerabilidade à fome”, ou seja, aquelas pessoas que, por insuficiência de renda, não conseguem comprar alimentos. A fome caracterizaria um país ou uma região onde a produção de alimentos é insuficiente. “Por exemplo, na África há uma grande quantidade de pessoas passando fome por falta de alimentos. Não tendo alimentos suficientes teria que aumentar a produção. No Brasil, a questão não é produção. Inclusive somos um grande exportador de alimentos da produção agrícola. Não tem falta, não tem problema de disponibilidade, mas tem problema de acesso”, explica Belik.

Dados publicados pelo IBGE, em agosto, apontam para uma produção, em 2005, de 113,507 milhões de toneladas de grãos. Um pouco inferior, é verdade, à safra de 2004, que foi de 119,370 milhões de toneladas. Mas nas cinco grandes macro-regiões do Brasil, a única que demonstra um decréscimo na produção é a região Sul, devido ao período de estiagem. As demais, como o Nordeste, apresentam um aumento de 9,62% na produção de grãos e as regiões Norte, Sudeste e Cento-Oeste apresentaram acréscimo de 14,77%, 3,39% e 5,46% respectivamente, em sua produção de grãos. Ou seja, com exceção da região Sul que foi alvo de um problema atípico, a produção cresceu.

Josué de Castro, foi um dos primeiros pesquisadores a “desnaturalizar” o problema da fome no Brasil, ainda na década de 1930. Foi deputado federal e presidente da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentos (FAO, na sigla em inglês). Para Castro, a natureza não é ingrata, mas generosa, a origem do problema estaria nos grupos humanos que se apoderam dos recursos naturais e fazem uma divisão injusta e ilegal. “A miséria e a fome”, escreveu, “não são fenômenos naturais, são uma criação humana, um produto da injustiça social, o produto de uma estrutura sócio-econômica que jamais investiu no bem estar da coletividade”.

Para saber mais:
Veja mais sobre o aumento da população x produção de alimentos
PNAD

POF

¹-BELIK, Walter., GRAZIANO da Silva, J., e TAKAGI, Maya. “Políticas de Combate à fome no Brasil”. In Josué de Castro e o Brasil. Manuel Correia de Andrade [et. al] São Paulo: Ed. Perseu Abramo, 2003.

(AG)

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Atualizado em 10/09/2005

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