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Segurança alimentar e nutricional – algumas considerações

Maria do Carmo Soares de Freitas

O Brasil, desde muito, convive com imensas diferenças entre o crescimento econômico e o social. O econômico se apóia em um modelo de modernização conservadora que, por sua vez, se constitui em uma matriz pouco favorável à generalização da cidadania e dos padrões fundamentais para uma proposta de eqüidade social. Com isso, observa-se a dificuldade de acesso ao alimento, em quantidade e qualidade, para uma parte considerável da população.

A política econômica concentradora de renda e sem relevantes investimentos sociais prescreve uma espécie de perversão no nível da qualidade de vida em setores médios e populares, emergindo uma maior pobreza urbana, violência e deterioração dos serviços. Nos últimos anos, a persistência desse modelo produz mudanças significativas no papel do Estado, em que ocorre o deslocamento do social institucional para uma espécie de vazio social para a população. A deficiência de projetos estatais nas periferias urbanas e em regiões pobres do campo dificulta ainda mais a obtenção dos direitos sociais e converte as questões políticas em questões técnicas (Ivo, 2004). Cito como exemplo, um projeto de segurança alimentar concebido pelo Estado como transferência de renda aos mais pobres, o Programa Fome-Zero, que na realidade é mais uma política pública divorciada do direito social ao alimento seguro. Isso porque, ações como essas, não afetam a continuidade da produção histórica de desigualdades sociais e fome.

Dados do IBGE (2004) confirmam a tendência de concentração da renda, e mostram o crescimento do número de pessoas que vivem em condições de extrema pobreza. São 33% da população os que ganham o equivalente a menos de trinta dólares por mês (FIBGE, 2004). Também, a racionalidade dos gastos sociais instituídos pelas incertezas do mercado financeiro (re) produz situações incertas e inseguras para a população carente de serviços em educação, saúde, nutrição, saneamento, habitação, política pública, etc..

Em termos conceituais, segurança alimentar e nutricional significa a segurança individual e coletiva em obter de modo permanente o alimento de qualidade, como uma espécie de certeza construída na complexidade do cotidiano. A noção de segurança sócio-econômica, vinculada à qualidade sanitária do alimento e ao respeito ao meio ambiente geram significados que se traduzem em condições de estabilidade em relação à nutrição do corpo e da família. O inverso corresponde à persistência da insegurança e da fome crônica.

Enquanto uma produção histórica, a fome crônica e coletiva é uma forma de perversão social definida por processos de exclusão, os quais se revelam em cada contexto de dominação política e econômica. A degradação social dentro dos setores mais pobres da sociedade brasileira é um fenômeno visível do agravamento produzido por um modelo estrutural de economia que mantém a alta capitalização no campo e a industrialização com uma geração menor de empregos. Com isso, há um excedente de força de trabalho que não tem chance de participar na divisão da renda nacional.

Nesse sentido, o conceito de segurança alimentar e nutricional no Brasil nos remete ao entendimento das questões estruturais em que a desigualdade social expressa o sinônimo essencial do termo (Consea, 1994; 2004). Expressões como acesso, qualidade de alimentos, satisfação psico-fisiológica, nutrientes básicos, produção, emprego, transição demográfica, qualidade de vida, entre tantas outras expressões conjugadas e contextualizadas, podem trazer a imagem interdisciplinar do termo segurança alimentar. Sentidos inversos, como: insegurança, precariedade, incerteza, exclusão social, sofrimento e vergonha de viver com fome, são expressões semânticas para significar falta de condições materiais.

As precárias condições de sobrevivência atingem as referências mais profundas do ser humano. A vida em carência não pode ser qualificada ou quantificada de modo simples, e sem conhecer significados e associações dos conteúdos humanos que envolvem explicações sobre o provisório, o incerto, o inseguro. O sofrimento de quem vive nas condições extremas da pobreza é determinante de como a pessoa consegue se manter e suportar as condições adversas, com as quais se depara ao não ter o suficiente para comer, em seu mundo diário e em um futuro imediato pelas incertezas. Nesse confronto entre a realidade externa e a subjetividade da fome, o sujeito agencia e interpreta sua fome em seu cotidiano.

A percepção dos sentidos, de quem não tem garantia de alimentar-se com qualidade e quantidade suficientes, anuncia sensações vivenciadas pelo corpo condicionado e debilitado pelas condições de seu mundo de miséria. Com essa percepção, o sofrimento do faminto não se esgota ao comer três vezes ao dia como assinala o Programa Fome Zero, mas, antes, ele quer obter a segurança de comer num tempo da automatização do cotidiano, sem que se permita perceber carente de sua comida, em seu próprio corpo e em seu imaginário. Para ele, segurança é mudança do habitual de fome. Ou seja, trata-se da mudança das sensações habituais e a inscrição de novas.

A segurança alimentar e nutricional é uma questão política na medida em que é um direito social a ser assegurado pelo Estado, um direito cidadão que afaste a ameaça de fome (Freitas, 2003). Ter acesso ao alimento de qualidade, cultivar hábitos alimentares saudáveis, etc. são questões que pertencem ao universo micro-social e que se confundem ou refletem as dimensões macro-econômicas e políticas. Desse modo, qualquer que seja o projeto de segurança alimentar e nutricional para as multidões famintas do Brasil, será real para os sujeitos, se for sustentado por uma política segura de redistribuição de renda e não vulnerável num tempo provisório que logo se esgote.

A segurança significa a autonomia salarial para o acesso ao alimento. Uma autonomia que quer dizer cidadania, ou seja, uma inscrição do direito social à liberdade de viver sem fome. Nesse entendimento, a produção de novas sensações se tornaria real quando intersubjetivada ao lado dos que têm semelhantes realidades. As mudanças do habitual de fome necessitam estar também no plano coletivo, com as muitas histórias individuais em interação. A passagem da condição de fome para a segurança alimentar e nutricional tem a ver com ganhos sociais, redistribuição de renda que possibilite o sujeito perder a sensação de insegurança social ou ameaça de retornar às sensações que antes o habitavam.

Na transição entre fome e não-fome ou segurança de acesso ao alimento, o Brasil necessita construir uma nova cultura que contemple a cidadania como um direito de todos. Os brasileiros necessitam crer neste direito como uma necessidade para a melhoria da qualidade da vida.

Maria do Carmo Soares de Freitas é professora do Departamento da Ciência da Nutrição da Universidade Federal da Bahia.

Referência Bibliográfica

Brasil, FIBGE, Indicadores Sociais, DF 2004.
Brasil, Consea - I Conferência Nacional de Segurança Alimentar, Secretaria da Ação Nacional de Segurança Alimentar, DF 1994.
Brasil, Consea - II Conferência Nacional de Segurança Alimentar – Carta de Recife, 2004.
Brasil, Ministério de Desenvolvimento Social, Programa Fome Zero, Manual do Mutirão, 2003.
Freitas, Maria C. S. Agonia da Fome. Salvador/ RJ Edufba/Fiocruz, 2003.
Ivo, Anete Brito L. Políticas sociais de combate à pobreza nos anos 1990: novas teses, novos paradigmas. In. Pobreza e desigualdades sociais; Série Estudos e Pesquisas. Salvador, Gov. Estado da Bahia, 2003 .

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Atualizado em 10/09/2005

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