Dois projetos audio-visuais, duas formas de refletir sobre os 500 Anos
   
 
Outros Quinhentos: Carlos Vogt
Projeto Resgate reencontra a História

500 anos impulsiona memória arquitetônica

Cultura como patrimônio histórico

Ritual dos 500 anos também é objeto de pesquisa

Objetos contam a história do Brasil
Outros 500 quer construir um novo país

Índios ainda lutam por direitos básicos

Pataxós lutam pelo Monte Pascoal
Interesse por mapas históricos cresceu com os 500 anos

Nau Capitânia, o símbolo que não navegou

Piada de brasileiro:
Paulo Miceli

A História e os interesses da nação:
Ulisses Capozoli

Dois projetos audiovisuais, duas formas de refletir:
Andrea Molfetta

As comemorações na mídia:
Eneida Leal Cunha

Na mídia portuguesa, alguma crítica, muito ufanismo:
Igor Machado
O Brasil em português de Portugal:
Jesiel de Oliveira Filho

Histórias & Personagens:
Zélio Alves Pinto

Poema
 

Andrea Molfetta

Em função das comemorações dos 500 anos da colonização da América desenvolveram-se vários projetos audiovisuais no formato de vídeo. Em particular, interessa-me neste artigo comparar as características de dois deles: um promovido por uma instituição não-governamental nacional e, o outro, por uma instituição governamental estrangeira. O primeiro deles foi o Projeto Fronteiras, desenvolvido pelo Itaú Cultural em 1998. O segundo, o Projeto Diários de Viagem, organizado pelo Ministério de Assuntos Estrangeiros da França entre 1985 e 1995.

No Projeto Fronteiras, cinco vídeo-artistas brasileiros foram convidados a percorrer os respectivos cinco pontos dos nossos limites geográficos. O propósito foi desenvolver o que Ricardo Ribenboim, superintendente do Itaú Cultural, chamou de "ação prospectiva": a instituição promovendo ações e oferecendo os recursos para a produção de trabalhos que possibilitem a reunião do campo intelectual em torno de um assunto. Neste caso, a reflexão sobre a identidade brasileira com motivo dos 500 anos da colonização do Brasil. O resultado foi uma coleção de vídeos que, longe de abordar esta questão na forma do documentário clássico, trouxe uma reflexão a respeito das difusas fronteiras geográficas e humanas do nosso país, assim como sobre as próprias fronteiras estilísticas do gênero documentário.

As obras mostram o caráter abstrato desta dupla questão fronteiriça. Fazem da identidade nacional algo líquido, aberto, sem limites claros entre o brasileiro e o sul-americano. Fazem do documentário moderno uma fronteira porosa e vaga entre o registro observacional e a intervenção poética do autor sobre sua realidade. Os cinco vídeos produzidos possuem um forte traço experimental, fazendo com que a reflexão sobre nossa identidade comporte, ao mesmo tempo, uma argumentação explícita e assertiva, assim como visões singulares, anedóticas, poéticas e até ficcionais sobre o tema.

Um dos vídeos do Projeto Fronteiras foi Chuí - Chuy, Lecy e Humberto nos Campos Neutrais, de Sandra Kogut (SP, 8min, 1998,Betacam/DVCam/Super 8). A obra de Kogut permite compreender a fronteira como um lugar de sonho, onde o fantástico revela-se infiltrado em imagens corriqueiras das ruas de ambos os lados do limite. A questão da identidade nacional aparece incrustada na história privada de um casal, a história de um amor conflituado pela linha divisória entre o Uruguay e o Brasil.

Em São Gabriel da Cachoeira - San Felipe, de Carlos Nader (SP, 1998,7min, Betacam/DVCam) relata-se uma viagem com o poeta Waly Salomão até a Cabeça do Cachorro, região onde o Brasil faz fronteira com a Colômbia, mas ninguém parece se importar com isso, já que a fronteira se encontra numa região alagada, onde é impossível trazer limites.

Pode-se concluir a partir destas narrativas que a proposta nacional tem um objetivo centrado e definido, reunindo efetivamente a reflexão criativa e intelectual em torno deste assunto, focalizado pontualmente na nossa geografia. Nos termos de Rimbemboin, o projeto "(...)é um programa que busca se aproximar do mercado e da sociedade, para a organização e estruturação do setor audiovisual no Brasil, especificamente o do documentário. Ao mesmo tempo, acredita estar dando um passo para que o gênero se desenvolva e também para que obras artísticas e culturais brasileiras possam melhor se inserir no circuito nacional e internacional de produção e difusão."

O Projeto Diários de Viagem apoiou-se numa ação cultural já iniciada pelo Ministério de Assuntos Estrangeiros da França, o Festival Franco-Latino-americano de Vídeo-arte, que desenvolveu o contato entre os realizadores e animadores culturais da Argentina, Brasil, Colômbia, Chile e França. Ao longo de dez edições deste evento, 21 artistas premiados (franceses e sul-americanos) receberam o convite para realizar um diário de viagem sobre suas vivências do outro lado do Atlântico. Assim, os diários franceses relatam experiências vividas no nosso continente, e os diários sul-americanos, a de viajar para Paris e tomar contato com um grande centro de experimentação com novas tecnologias, o Centre International de Creátion-Vídeo "Pierre Schäeffer".

Neste caso, o cruzamento simétrico e racional das experiências promoveu um conjunto extremamente heterogêneo de trabalhos, todos ancorados na intenção de reeditar, o talvez, mais praticado dos gêneros na época da conquista: a crônica contida nos diários de viagem literários dos primeiros viajantes. Assim, a proposta européia foi definida a partir do estado das pesquisas acadêmicas na França, especificamente em relação à influência das novas tecnologias da comunicação nas formas narrativas mais tradicionais. O evento, de cunho comemorativo dos 500 anos de descobrimento da América, serviu somente como ponto de partida para este conjunto que, ao todo, situa-se muito distante da reflexão sobre a questão da nossa identidade e as conseqüências da colonização.

O resultado deste projeto, foram duas linhas de produção bastante diferenciadas. Os diários sul-americanos na França (13 ao todo) apresentam, em geral, a visão do sujeito viajante encerrado dentro da esfera da sua subjetividade, dando lugar a relatos íntimos, de cunho formal e abstrato. Está presente neles certo deslumbramento diante da variedade de recursos para a distorção eletrônica e digital das imagens e sons, fazendo um uso nem sempre controlado destes recursos, o que, na maioria dos casos, descaracterizou os traços autorais e dos trabalhos. Nos termos de Bill Nichols, são filmes que pertencem a uma modalidade reflexiva do documentário, caracterizada pela obstrução do acesso ao mundo devida à consciência meta-lingüística e desconstrutiva da própria linguagem poética. Estes vídeos inscrevem-se na tradição do cinema experimental e do cinema documentarista mais moderno, fazendo da produção videográfica sul-americana sua continuação histórica.

Em troca disso, os diários franceses oferecem uma visão do sujeito extremamente relacionada com o contexto, onde o próprio dispositivo da câmara é utilizado como ferramenta para a troca e a interação. Dá a impressão de que os estrangeiros sentiram-se "como em casa". Os realizadores franceses falam diante da câmara (em francês), conversam com os colegas sul-americanos (que se esforçam para falar o francês), com as pessoas da rua, e a grande maioria deles se valem do recurso da entrevista ou do depoimento para construir um relato assertivo sobre a experiência de um europeu na América Latina. O uso dos efeitos eletrônicos e digitais é controlado (é notável o aprofundamento no uso de somente um recurso em cada diário) e dirigido especificamente a algumas questões da enunciação, como a construção do quadro ou os efeitos de passagem entre um plano e outro. Dentro da taxonomia dos relatos documentários já citada, os vídeos franceses situam-se dentro da modalidade interativa documentária, inscrevendo-se na tradição do cinema-verdade francês da década de 50-60, que questiona o estatuto do gênero, sem por este motivo perder de vista uma indagação antropológica.

Não há lugar para o "fascínio" pelos recursos das novas tecnologias da comunicação, simplesmente pelo fato de que possuem contato cotidiano com as mesmas. Este é outro ponto marcante da comparação: neste projeto, o conjunto da produção foi realizado e finalizado com recursos do centro acima citado, não viabilizando recursos para a produção no nosso território - os artistas sul-americanos foram convidados a finalizar seus trabalhos na França - e, sim, se interessando por estabelecer metas institucionais na distribuição e legitimação cultural do nosso contexto.

A visão do sujeito auto-biográfico que os diários franceses transmitem é aquela segundo a qual o europeu se sente a vontade dentro do nosso contexto, usando o vídeo enquanto ferramenta de intercâmbio. Embora a agilidade da câmara e a democratização do recurso sejam duas das características mais marcantes que o formato eletrônico introduziu na mídia audiovisual, o artista da nossa região fez do vídeo um aparelho que por sobre todas as coisas revela a condição discursiva da sua mensagem, obstruindo a comunicação mais direta.

Os diários sul-americanos não explicitam em nenhum momento alguma possível causa deste seu recuo - facilmente dedutível a partir da nossa experiência cultural periférica e dominada - , embora transpirem uma situação de isolamento e falta de troca de diálogos raramente presente em outros trabalhos dos mesmos realizadores. Trata-se de sua condição discriminada, que pouco contribuiu à reflexão sobre nós mesmos, e isto guarda uma relação direta com as condições e as características do projeto cultural dentro do qual estas obras foram encomendadas.

O propósito de refletir sobre nossa identidade em função das comemorações dos 500 anos de colonização existiu somente na proposta brasileira do Projeto Fronteiras. A proposta francesa promoveu um falso intercâmbio, que de fato atuou como entre cruzamento simétrico de produtores, e não promoveu um contato efetivo. Os artistas de ambos continentes não trabalharam juntos, revelando que este projeto, longe de promover um intercâmbio cultural e tecnológico, funcionou como um verdadeiro esconde-esconde entre as duas margens - políticas - do Atlântico. A reflexão sobre as identidades nacionais e suas características humanas e geográficas após os 500 anos da colonização não foi o objetivo central do Projeto Diários de Viagens. A justificativa da ação do ministério francês apoiou-se no discurso da nossa necessidade de promoção cultural e tecnológica forâneas. Mais especificamente, os artistas trocaram informações tecnológicas dentro do centro de experimentação parisiense, mas não vivenciaram, em conjunto, uma experiência que envolvesse, tanto o caráter técnico, quanto poético do trabalho e, muito menos uma abordagem comparativa da produção destas duas regiões. Ficou claro, que as diretrizes do projeto francês dirigiram-se à continuação de uma relação de dependência tecnológica e, sobretudo, ao controle do sistema de distribuição e legitimação cultural da arte eletrônica local, baseando-se num discurso tecnocrático e globalizante que confunde, sem inocência, o novo com o bom. A diferença entre "descobrir" e "colonizar" é a mesma que está presente entre estes dois projetos culturais. Com descobrimento, fazem do nosso papel na história um lugar passivo. Com o termo "colonização", admitimos uma visão ativa do nosso papel histórico, no caso, o de ter enfrentado uma miscigenação e assumido seus resultados. Em síntese, o descobridor não admite na sua visão mais do que uma relação de troca paternalista. Por sorte ou, mais do que por sorte, por inteligência dos nossos agentes culturais, a promoção de projetos que indagam sobre nossa identidade só poderia dar certo quando promovida por nossas próprias instituições, conquistando a ação cultural do nosso território.

Andrea Molfetta é professora e pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes da USP

   
           
     

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Atualizado em 10/04/2001

   
     

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