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Programa de acesso à terra não é reforma agrária

Os programas de crédito fundiário criados a partir do projeto-piloto Cédula da Terra e o Plano Nacional de Reforma Agrária partem de concepções diferentes para garantir o acesso dos trabalhadores rurais a uma propriedade agrícola. Em princípio, deveriam ser destinados a públicos distintos. Mas isso não vem ocorrendo desde o período em que passaram a coexistir, em meados de 1996. A partir daí o Cédula da Terra, por meio de uma parceria do Governo Federal com o Banco Mundial, passou a atender os estados do nordeste e ganhou alcance nacional em 1998, com a criação do Banco da Terra, que teve suas atividades suspensas no início deste ano.

Segundo a pesquisadora Guiomar Germani, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), levando-se em conta essas duas vias principais de aquisição de propriedades rurais, fala-se equivocadamente em "reformas agrárias", como se os programas de crédito fundiário fossem uma reforma agrária. "Na verdade não são, pois crédito fundiário é um programa de acesso à terra pela compra e venda, dá-se pela lógica do mercado, enquanto a reforma agrária é um programa de acesso à terra através da desapropriação. Sua lógica é a pressão dos movimentos sociais" - explica.

Germani chama a atenção para o fato de que, na Bahia, o Cédula da Terra alcançou um público que deveria ser beneficiado pela reforma agrária. Ela cita como exemplo o projeto de implantação do programa, que atendeu inicialmente pequenos grupos de produtores do litoral norte do estado, cuja maioria já era proprietária de terras e que estava organizada em associações, um dos pré-requisitos para a aquisição do crédito. Mas quando o programa se estendeu ao extremo sul baiano, onde a atuação dos movimentos sociais é muito intensa, em especial do Movimento Sem Terra (MST), deparou-se com um público diferente, principalmente pelo fato de os agricultores locais, a maioria não proprietários, organizados ou não em movimentos sociais, não terem associações formadas, embora existisse uma forte demanda pela reforma agrária. Assim, esses trabalhadores rurais tiveram que se organizar, não para se beneficiar da desapropriação de terras, mas sim para comprar propriedades através do Cédula da Terra.

A pesquisadora conta que a criação dessas associações obedeceu a um processo não espontâneo por parte dos trabalhadores, que envolveu pessoas que tinham interesse direto na venda das terras e que articulavam a organização de grupos de sem terra. Os donos de fazendas, políticos, técnicos agrícolas e engenheiros agrônomos estavam cientes de que a garantia de acesso desses trabalhadores a uma determinada propriedade poderia lhes trazer benefícios.

Essa artificialidade, segundo Germani, abriu precedentes para uma série de irregularidades, a começar pelo preço pago pelas terras, acima do valor de mercado. A área era por vezes insuficiente ou maior do que o necessário para o número de associados. Outro problema foi a aquisição de terras de baixo potencial agrícola, bem como de áreas em que o cultivo da terra era inviável pelo fato de ocuparem parte da Mata Atlântica. Além disso, tais problemas se refletiam na própria sistematização do trabalho agrícola dos grupos que ocuparam a terra e que assumiram as dívidas com os bancos financiadores da compra, mas que não puderam saldar a sua dívida no prazo devido, o que significou um ônus para esses grupos e também para o Estado, que era responsável pela vistoria da área a ser adquirida. "Quanto ao proprietário que vendeu a terra, este ficava com o dinheiro", acrescenta Germani.

Em 2001, foi aprovado o Projeto de Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural, que veio substituir o Cédula da Terra, por iniciativa do Ministério do Desenvolvimento Agrário, com apoio do Banco Mundial e participação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) no delineamento do programa. Para Germani, a linha básica desse projeto, que é o acesso à terra por meio do financiamento para aquisição de imóveis por associações de trabalhadores sem terra, é a mesma do Cédula da Terra. Seu diferencial está apenas no modo pelo qual as associações de trabalhadores são organizadas. Nesse caso, a assistência da Contag procura evitar as artificialidades na constituição de grupos de trabalhadores rurais.

Para o vice-presidente da Contag, Alberto Ercílio Broch, os programas de crédito fundiário do governo passado foram concebidos como um instrumento de substituição da reforma agrária. "O crédito pelo qual nós lutamos, e queremos que seja implementado no governo Lula, não é algo para substituir a reforma agrária, ou seja, as desapropriações. O que nós queremos é uma política séria e transparente de crédito fundiário que seja complementar à reforma agrária e que venha nos ajudar no reordenamento fundiário, beneficiando os agricultores familiares de todas as regiões do Brasil", destaca Broch.

Assentamentos
Em 2002, foram implementados na Bahia 132 projetos. Em alguns casos o programa Cédula da Terra foi bem sucedido, mas em outros acabou acarretando o endividamento dos pequenos agricultores. Para Germani, o sucesso ou fracasso nessas localidades resulta do tipo de organização dos trabalhadores rurais e, em menor medida, do programa em si. "Uma coisa é ter um programa de acesso à terra para quem tem condições de pagar, que são os pequenos proprietários que querem ampliar sua produção, que tenham filhos que queiram comprar outras terras, ou seja, pessoas que já tenham uma capitalização e uma outra trajetória de vida. Outra coisa é atender o trabalhador rural sem terra, desprovido de condições para dar a largada inicial em sua produção para pagar a sua dívida com o banco", explica a pesquisadora.

Nos casos em que a produção agrícola não prosperou, criaram-se diferentes impasses, segundo Germani. De um lado estão os produtores rurais inadimplentes que devem, como garantia ao banco, a própria terra e que afirmam que não deixarão a propriedade que ocupam. De outro, está o banco que, por sua vez, não é capaz de arcar com os custos sociais referentes à desapropriação da área. O Estado, mediador entre essas duas instâncias, além do custo social, tem de lidar com o ônus financeiro do empreendimento, sendo que, ao reconhecer qualquer das reivindicações desses atores, ele pode referendar o insucesso do programa de acesso à terra. Somadas essas posições, "quem acaba respondendo por tudo isso é a própria sociedade", afirma Germani.

No caso dos produtores baianos endividados, uma das conseqüências foi a restrição de seu acesso a linhas de crédito para o desenvolvimento da agricultura e para a aquisição de outras propriedades. Desse modo, ficaram presos à terra, sem condições de produzir e de se fixarem em outras regiões. Aliás, as políticas públicas de incentivo à agricultura, segundo Germani, não possuem a agilidade suficiente para que esses trabalhadores assentados dêem o impulso necessário a sua produção, o que lhes permitiria honrar seus compromissos com o banco.

Um programa diferenciado para o trabalhador rural assentado foi o Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária (Procera) que, no entanto, foi incorporado ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), em 1996 (saiba mais sobre o Pronaf na reportagem "Agricultura familiar predomina no Brasil"). O Procera garantia um tratamento especial, quanto à política de financiamento, para os assentados viabilizarem a sua produção agrícola inicial. Segundo Germani, essa incorporação criou uma distorção na utilização de recursos pelos trabalhadores beneficiados pela reforma agrária. Esses trabalhadores foram integrados ao Pronaf com uma linha especial de crédito correspondente ao grupo A. Porém, dentro do programa de crédito oferecido pelo programa, eles passaram a disputar por recursos oriundos de um mesmo fundo, cujas regras principais valem para todos os demais beneficiários, incluindo os do grupo B (mini agricultores familiares, com renda bruta anual de até mil e quinhentos reais, sem o uso de mão-de-obra contratada), do grupo C (agricultores familiares com renda bruta anual entre mil e quinhentos e oito mil reais, com empregados temporários) e do grupo D (agricultores familiares com renda bruta anual entre oito mil e vinte e sete mil e quinhentos reais, com até dois empregados).

Porém, para o pesquisador Antônio César Ortega (da Universidade Federal de Uberlândia), devido a sua estruturação, o Pronaf acaba privilegiando os agricultores mais organizados e capitalizados, deixando desamparados aqueles que não possuem infra-estrutura técnica e produtiva para garantirem que o seu trabalho no campo preencha os requisitos para a liberação de financiamentos bancários. Para Ortega, um dos problemas desse programa é que agricultores muito pobres não têm acesso aos empréstimos bancários devido à própria burocracia desse sistema, que exige uma série de contrapartidas como garantia aos recursos financiados.

Inclusive, na opinião de Ortega, o acesso ao Pronaf passa por uma grande agilidade do Banco do Brasil nas regiões Sul e Sudeste do país, no sentido de ampliar seus postos de atendimento objetivando atender as demandas de pequenos agricultores. O pesquisador cita como exemplo o caso do município de Patos de Minas, no triângulo mineiro, onde a prefeitura, junto à Superintendência Regional do Banco do Brasil, instalou na Central de Abastecimento (Ceasa) local um posto avançado para o atendimento de demandas do Pronaf. "Essa foi uma ação de custo baixíssimo e muito eficaz. Apesar disso, é preciso levar em conta a existência de um problema muito sério na distribuição de recursos devido às restrições ao crédito impostas pelas agências bancárias do Banco do Brasil. O Pronaf é um recurso que leva a uma inadimplência muito baixa, os empréstimos têm valores baixos, porém são solicitações em grande quantidade, o que dá muito trabalho ao banco, criando uma resistência na ponta da cadeia do programa, prejudicando a sua oferta" - afirma Ortega.

Um problema, em geral, permeia o assentamento de trabalhadores sem terra  é a assistência técnica às atividades do trabalhador rural. Nesse sentido, tanto Guiomar, como Ortega, enfatizam que a assistência técnica deve estar presente em todas as fases de produção no campo, a fim de viabilizar o manejo da terra para que a produção seja comercializada, gerando riquezas e satisfazendo as necessidades individuais e coletivas dos agricultores.

O Cédula da Terra
O projeto Cédula da Terra foi instituído em 1997. Inicialmente com o nome de Projeto São José (1996), ele atendeu algumas regiões do estado do Ceará e, no ano seguinte, estendeu-se para os estados do Maranhão, Pernambuco, Bahia e Minas Gerais.

Chamado de "reforma agrária de mercado", o Cédula da Terra, em linhas gerais, foi o processo de compra de propriedades por meio da negociação direta entre uma organização de trabalhadores rurais associados e o proprietário da terra. A intermediação ficava a cargo do governo estadual,  que avaliava o imóvel, definia seu valor de mercado e o teto para financiamento. Nos casos em que a proposta era aceita, o valor da terra nua mais as benfeitorias era pago ao proprietário do imóvel e a associação de trabalhadores contraía um empréstimo junto ao banco, tendo o prazo de três anos de carência para começar a pagar as prestações da dívida. O tamanho dessas propriedades deveria ser menor do que quinze módulos fiscais, ou seja, estar abaixo do valor estipulado para as áreas de reforma agrária.

O Cédula da Terra fez parte de uma associação do Governo Federal e do Banco Mundial, que financiava, em outros países da África e da América do Sul, projetos desse tipo. Entre seus principais objetivos estão: a descentralização da reforma agrária através da criação de um mercado de terras e a melhora da renda e do bem-estar das famílias rurais.

O projeto sofreu duras críticas durante a sua implementação, dentre as quais se destacam as reivindicações dos movimentos sociais pela terra, em especial as da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O argumento principal era de que o Cédula da Terra iria deixar em segundo plano a via tradicional de reforma agrária, que é a desapropriação, provocando uma mudança na estrutura fundiária nacional que tornaria o acesso da terra ainda mais problemático.

Em 1999, foi preparada a Avaliação do Programa Cédula da Terra por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Esse documento apontava uma série de irregularidades do programa, dentre as quais se destacam: a artificialidade na formação de associações de trabalhadores rurais, a ignorância destes com relação aos objetivos e à concepção do projeto, a aquisição de terras que ultrapassavam o limite estabelecido de quinze módulos fiscais e a sobrevalorização das terras em alguns casos.

Apesar de estar ainda em sua fase piloto e de ser alvo de inúmeras críticas, o Cédula da Terra ganhou abrangência nacional em 1998 através da criação do Banco da Terra. As irregularidades observadas em sua fase de implementação também foram observadas durante a ação do banco. Em março de 2001, o Cédula da Terra ganhou o nome de Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural, contando com uma forte participação da Contag para a sua implementação. Contudo, o Banco da Terra, responsável pela a viabilização desse crédito, teve suas atividades suspensas em fevereiro de 2003, pelo então ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, devido a denúncias de desvio e de má aplicação dos recursos.

(AZ)

 
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Atualizado em 10/06/2003
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