Reportagens






 
Produtividade caracteriza assentamento

Os quase 20 quilômetros da BR-153 que ligam a cidade de Promissão (interior de São Paulo) ao assentamento da fazenda Reunidas são margeados por uma paisagem comum naquela região: os acampamentos sem terra. Dois deles ocupam grande parte do lado direito da estrada. A caminho do assentamento, que há 15 anos se instalou na cidade, e que hoje é considerado um "modelo" no Brasil, muitas famílias aguardam para terem também a sua terra e, quem sabe, alcançarem toda a produtividade que se observa na Reunidas. O assentamento, oficializado em 02 de novembro de 1987, data da desapropriação da fazenda, chama a atenção por seus números. De acordo com o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) são 820 famílias, distribuídas em 629 lotes, num total de 3.127 pessoas morando, e mais de 300 trabalhando na área. Grande parte das famílias que atualmente moram na Reunidas chegaram à região ainda em 1985, vindas de 12 cidades do interior de São Paulo, e ficaram acampadas por quase 2 anos nas redondezas da fazenda.

De acordo com Maria de Lourdes Pereira, moradora e uma das líderes do movimento desde seu princípio, o trabalho inicial de plantação foi muito difícil porque a fazenda era coberta por cerrado. "Como não tínhamos nenhum maquinário, arrancamos os arbustos com as mãos", revelou. Os primeiros equipamentos agrícolas chegaram por meio de doações e de campanhas promovidas pelos próprios assentados. "Fomos nos organizando em pequenos grupos, até a formação das atuais agrovilas", contou. Hoje, a Reunidas é dividida em sete agrovilas e conta com uma escola que atende alunos até a quarta-série. Os professores fazem parte da rede municipal de ensino. Há também um posto de saúde, que recebe visitas semanais de alguns médicos dos hospitais estaduais e de estudantes de odontologia da Universidade Metodista (Unimep) de Lins. Algumas agrovilas levam o nome das cidades de origem dos assentados, como Campinas, Penápolis, Birigui, São Pedro e José Bonifácio. As outras duas recebem nomes específicos: a Central, que fica no meio da fazenda, e a "Dos 44", que representa o número de famílias assentadas. Não existem fronteiras entre as agrovilas e a alta produtividade faz esse assentamento ser considerado um modelo.

No assentamento de Promissão cada família tem um lote médio de 8 hectares. A maioria comercializa sua produção e tem seus próprios compradores. Diariamente chegam caminhões vindos de cidades próximas como Lins, Marília, São José do Rio Preto, Bauru, entre outras, para levarem a produção. Algumas famílias, poucas, preferem vender sua produção na feira livre de Promissão.


O uso de equipamentos de forma cooperativa não deu bons resultados na Reunidas. Conduzindo seu trator próprio, comprado há 3 meses, Pedro de Oliveira, morador desde 1988, contou que 10 a 12 famílias utilizavam o mesmo trator, comprado com o dinheiro do grupo. A experiência não deu certo. "Sempre tinha um monte de gente querendo usar o trator na mesma hora", contou. De acordo com Oliveira, cada família foi comprando aos poucos seus equipamentos por meio de sistemas de créditos e com o dinheiro da venda da produção. "Hoje em dia cada um tem o seu", afirma.

Com exceção de alguns bares espalhados nas agrovilas, não há estabelecimentos comerciais na Reunidas e as compras, seja um remédio ou uma lata de óleo, são feitas no centro de Promissão. De acordo com o vereador Aparecido Rodrigues (PT), o assentamento produz  alimentos a baixos preços para a cidade e consome os produtos do comércio local, aumentando a entrada de capital. "Desde que o assentamento veio para cá, a taxa da Declaração para o Índice de Participação dos Municípios (DIPAM) já aumentou cerca de 40%", afirmou.

Mesmo assim, o assentamento não dispõe de saneamento básico e nem de abastecimento de água. Para a instalação de luz e construção de poços artesianos, as famílias assumiram dívidas em créditos especiais e a grande maioria ainda está pagando as parcelas. No início do ano, a dívida foi reparcelada mas, por causa dela, muitas famílias não conseguem ter acesso a programas de crédito agrícola.

A falta de saneamento básico na região causou a contaminação de um lençol freático, segundo um levantamento técnico feito por especialistas da Unimep no ano passado.

Cooperativismo
A história da Reunidas é marcada pelo fracasso das cooperativas, comum nos assentamentos. "Há uma maldade intencional por parte do governo para quebrar as cooperativas". A frase é do Padre Severino Leite Diniz, integrante da Comunidade Pastoral da Terra (CPT), entidade que apoia a luta pela terra e defende que os assentados tenham acesso aos meios de trabalho após adquirida a terra, além dos direitos do trabalhador rural. De acordo com ele, não há incentivo, por meio de créditos agrícolas, à formação e manutenção do sistema cooperativo. "O governo quer que os assentamentos produzam somente a matéria-prima e não os industrializados", afirma. O padre citou o caso de uma das cooperativas que não deu certo, a Cooperativa Regional de Reforma Agrária de Promissão (Coorap). Em 1998, seus 120 associados assumiram uma dívida de R$ 300mil junto ao Procera, hoje incorporado ao Pronaf. (leia reportagem que explica como funciona esse programa). O dinheiro, correspondente à primeira parte do crédito, foi usado na compra de sementes e na plantação da mandioca. A segunda parte, que seria destinada à compra de maquinaria para a produção de farinha de mandioca, não foi cedida. Com isso, a Coorap acabou vendendo toda a produção por um valor simbólico, fechou suas portas e seus associados estão endividados até hoje.
Mas o assentamento resiste, mesmo com essas adversidades.


Na Reunidas também funciona a Rádio Camponesa, que solucionou o problema de comunicação na Reunidas. A rádio  foi fundada em 1996 e sua programação vai das seis e meia da manhã até às sete da noite. "Além de ter programas educacionais, a comunidade pode se interar das notícias sobre o movimento", afirma Lourdes Maria Pereira, uma das fundadoras. Em frente à rádio, um prédio está sendo construído para abrigar um Centro de Memória do Assentamento, onde ficarão expostas as fotos e as fitas de vídeo que retratam sua história. Junto ao Centro, deverá existir um local para receber as visitas nacionais e internacionais, principalmente universitários.

Dados da produção da fazenda Reunidas (safra 2002/2003)
  • 3.444,4 sacas de 60 kg de milho. São 398 produtores numa área total de 4200ha
  • 1452 toneladas de mandioca. São 20 produtores numa área de 48,4 ha
  • 6500 sacas de 40kg de café convencional, o que gera R$292.500,00
  • 5.895.640L de leite, num total de 5075 vacas, o que gera R$2.063.473,65
Fonte: ITESP de Promissão

Impactos regionais
Os projetos de assentamento rural das duas últimas décadas não produziram alterações profundas no quadro nacional, estadual ou mesmo regional de concentração da propriedade fundiária. Mas mudanças localizadas, como a de Promissão, são visíveis.

O município de Paracatu, em Minas Gerais, é um exemplo do que vem acontecendo. Em 1996, quando não existiam assentamentos, os 500 estabelecimentos agropecuários com menos de 50 hectares representavam 31,6% do número de estabelecimentos e 1,8% da área total. Desde então, até 1999, propriedades com mais de mil hectares foram desmembradas em assentamentos, elevando em 239,8% o número de estabelecimentos. As propriedades com menos de 50 hectares passaram a representar 52,5% dos estabelecimentos e 7,4% da área total.

Uma das mudanças trazidas pelos assentamentos diz respeito à diversificação de produtos em áreas antes monocultoras ou de pecuária extensiva, pois as famílias geralmente optam pela coexistência de uma produção para a subsistência e outra destinada ao mercado. No caso do Pará, a participação na área total dos estabelecimentos agropecuários combinada a inovações introduzidas pelos assentados conduziu a um impacto relevante no perfil produtivo regional. Mais do que diversificar e ampliar a oferta de produtos para o mercado local, como feijão, arroz, mandioca, milho para criação de aves e suínos, hortaliças, frutas, entre outros, os assentados introduziram o gengibre e a laranja. Foram ainda determinantes para a implantação de agroindústrias. Essa nova produção é voltada tanto para os mercados locais (caso do beneficiamento de arroz e laticínios), quanto regionais ou nacional (laticínios, abatedouros e polpa de abacaxi).

Apesar da diversidade de produção nos assentamentos, milho, mandioca e feijão são os produtos de cultivo mais generalizado. Os assentados consideram esses produtos como os mais importantes, pois são facilmente comercializáveis e compõem a alimentação básica da família. Seguem-se na classificação: inhame, banana, arroz, algodão, cana-de-açúcar, abacaxi e fumo. A criação de gado bovino tem especial importância no sudeste do Pará (por causa da venda de bezerros e produção de leite), oeste de Santa Catarina e Distrito Federal. A criação de aves e suínos, bastante comuns, destina-se principalmente ao próprio consumo. Comparando a produção dos assentamentos com a de seus municípios (pelos dados do Censo Agropecuário de 1996), nota-se que os assentamentos contribuem para diversificar a produção agropecuária local, introduzindo novos cultivos e incrementando itens tradicionais. Porém, ao avaliar a produtividade é preciso considerar a dificuldade e demora na obtenção de crédito para ter acesso à tecnologia e assistência técnica adequadas.

Os assentamentos geraram uma alteração também nas feiras livres dos municípios, que ficaram maiores e mais freqüentes com a inserção de assentados como feirantes em concorrência com os "profissionais". Além das vendas internas para outros assentados, vêm sendo experimentadas formas associativas de comercialização, com a criação de pontos de venda e marcas próprios.

A renda familiar circula na economia local, como em Promissão. Na fase inicial de implantação, com o dinheiro recebido do governo para habitação, alimentação e investimento na produção, os assentados compram material de construção, insumos e alimentos na cidade. Com o tempo, o aumento da renda dos assentados em relação à sua renda anterior se verifica no aumento da posse de bens duráveis: fogão a gás, geladeira, televisão, antena parabólica, máquina de lavar e meio de transporte próprio, sobretudo bicicletas e animais. Essa ampliação da capacidade de consumo se reflete na dinamização do comércio local.

Enquanto um número crescente de estudos têm se ocupado das condições internas dos assentamentos, poucos se preocupam em analisar a importância dos assentamentos para a região em que foram implantados, as mudanças sócio-econômicas, políticas e ambientais de curto, médio e longo prazo que se imprimem na vida dos assentados e também no seu entorno. Por isso o Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (Nead) encomendou à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a pesquisa "Os impactos regionais da reforma agrária", realizado de janeiro de 2000 a dezembro de 2001 e coordenado por Beatriz Heredia, Leonilde Medeiros, Moacir Palmeira, Sérgio Leite e Rosângela Cintrão.

Para abarcar a diversidade de experiências brasileiras, foram selecionadas, a partir da distribuição espacial dos assentamentos implantados pelo Incra entre 1985 e 1997, seis regiões de concentração significativa: Sul da Bahia, Entorno do Distrito Federal, Sertão do Ceará, Sudeste do Pará, Oeste de Santa Catarina e Zona Canavieira Nordestina. As áreas pesquisadas totalizam 92 projetos de assentamento em 39 municípios, com 15.113 famílias assentadas no período de 12 anos, sendo que dois terços foram criados de 1995 a 1997. Foram aplicados questionários aos responsáveis por 10% das famílias (1.568 questionários).

Além do debate acadêmico, estudos como esse contribuem com elementos para o diálogo com o governo (federal e estadual), organizações não-governamentais, movimentos sociais e sindicatos envolvidos na questão da reforma agrária nacional. No entanto, Sérgio Leite, um dos coordenadores da pesquisa do Nead, adverte: "A diversidade regional e os diferentes movimentos e programas governamentais por trás dessas iniciativas, impedem que se faça uma avaliação homogeneizadora para o país, pois num determinado local um tipo de impacto pode ser mais importante ou visível do que em outro."

Leite acredita no potencial de transformação dos projetos de assentamento rural na vida dos agricultores. "De uma maneira geral, o principal impacto que esses programas proporcionam é a transformação de uma parcela da população excluída em cidadãos. Isso fica muito evidente nos relatos que colhemos durante as pesquisas. 'Deixei de ser escravo' e 'saí do cativeiro' são expressões freqüentes na fala dos assentados."

(SR e VS)

 
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Atualizado em 10/06/2003
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